5. FORMALISMO PROCESSUAL E INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS
Segundo Carlos Alberto Alvaro de Oliveira[27] o formalismo processual refere-se à totalidade formal do processo, compreendendo não só as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, e estabelece o começo e fim do processo, estabelecendo limites de cooperação e ação das pessoas atuantes no processo. Dessa forma, o formalismo processual atua como verdadeiro delimitador de eventuais excessos de uma parte em face da outra, sendo um fator de equiparação, pelo menos do ponto de vista ente os atores do processo. Para o referido autor o formalismo ao contrário do que se pensa geralmente constitui verdadeiro elemento fundador da efetividade e da segurança do processo, sendo a efetividade decorrente do poder organizador e ordenador do formalismo, a segurança do poder disciplinador[28].
Para Dinamarco,
“no exame do processo a partir de um ângulo exterior, diz-se que todo o sistema não vale por si, mas pelos objetivos que é chamado a cultuar; e depois, em perspectiva interna, examinam-se os atos do processo e deles diz-se o mesmo. Cada um deles tem uma função perante o processo e este tem funções perante o direito substancial, a sociedade e o Estado”[29].
Para Samuel Meira Brasil Júnior o processo é um instrumento para aplicação do direito material, voltado, sempre, para os resultados que deve produzir. Não se pode esquecer sua função precípua, de solução de conflitos. Portanto, a norma processual é mero instrumento, para permitir a solução mais justa na aplicação do direito material[30]. Nesse mesmo sentido esclarece José dos Santos Bedaque,[31]que
“o processualismo exagerado normalmente acaba por criar enormes dificuldades para o próprio escopo do processo. A grande atenção que se dá para os conceitos processuais configura inversão de valores, pois o que realmente importa são os resultados alcançados pelo processo no plano do ordenamento material e da pacificação”.
A instrumentalidade está prevista nos artigos 154[32] e 254[33] do Código de Processo Civil. Sendo assim, não basta que o ato jurídico processual atinja a finalidade prevista na lei, também se faz necessário que não resulte em prejuízo para a parte.
Também é esse o magistério de Humberto Theodoro Júnior: “Do princípio da instrumentalidade das formas e dos atos do processo, decorre a irrelevância dos vícios do ato processual, mesmo em caso de nulidade absoluta, se o ato atingir o fim a que se achava destinado no processo[34].
Portanto, ainda que o ato jurídico processual possa ser reputado inválido em virtude de sua desconformidade com prescrição legal, não se pode falar em invalidade se a sua finalidade foi atingida, isto é, o valor jurídico da situação final for obtido. É o que se extrai da prescrição contida nos artigos 154 e 244 do CPC.
Sendo assim, o primeiro elemento para aplicação da instrumentalidade das formas é o escopo do ato jurídico processual ser alcançado, ainda que de maneira diversa da prevista na lei.
O segundo elemento é a ausência de prejuízo para as partes, é a aplicação do princípio pas de nullité sans grief. Dessa forma, restando evidenciado prejuízo para as partes, torna-se inviável o princípio da instrumentalidade das formas.
Para José Roberto dos Santos Bedaque[35] o princípio da instrumentalidade é aplicável a qualquer de nulidade, mesmo às absolutas, pois nenhum defeito acarretará a nulidade do ato se o escopo a que se destinava o ato, foi alcançado. Bedaque esclarece para verificar a existência de prejuízo decorrente do vício processual tem que se pautar no direito material. Portanto, se uma sentença de mérito puder ser proferida em favor daquele a quem o reconhecimento da nulidade poderia favorecer, não há como decretar a nulidade. Enfatiza o autor que a instrumentalidade das formas deve ser projetada no plano substancial.
A tendência dos tribunais é aplicar o princípio da instrumentalidade das formas e considerar sanado o vício se do ato não houve prejuízo decorrente do não cumprimento de algum requisito formal do ato, do procedimento ou da própria relação processual[36].
Portanto, em princípio, não se decreta nulidade se inexiste prejuízo, nem pode a parte que lhe deu causa valer-se desse resultado.
Tudo leva a conclusão de que qualquer vício no processo, inclusive a inexistência, pode acabar tornando-se irrelevante se considerados os princípios que norteiam o sistema das nulidades processuais. Exemplo de tal situação é a nulidade absoluta da citação ou até inexistência desta, se o réu apresentar contestar o vício está sanado, nos termos do art. 214, §1º, 244 e 249, §1º, do CPC.
Bedaque,[37]apresenta ainda a importância do estudo dos vícios relativos à citação e sentença, esclarecendo que a não observância da forma legal pode comprometer o contraditório e a própria tutela jurisdicional. Em relação à a falta de citação entende que o vício é de nulidade absoluta e não inexistência, que deve ser reconhecido de ofício pelo juiz, pois ainda que o réu não citado permaneça ausente o processo existiu. Por outro lado, não detectado o vício, eventual sentença poderá torná-lo irrelevante e apta a produzir efeitos, ocorrendo improcedência do pedido do autor. Portanto, embora o réu não esteja realmente sujeito à imutabilidade da sentença, tendo em vista os limites subjetivos da coisa julgada. Para ele, portanto, afirmar que o processo e a sentença devem ser considerados inexistentes em relação ao réu não citado não condiz com a visão instrumentalista do processo. Pois, se o vício não impediu que o resultado beneficiasse substancialmente aquele que, do ponto de vista técnico-processual, foi prejudicado, não há motivos para se insistir na inexistência do instrumento, pois apesar de não ter sido observado o contraditório e a ampla defesa, em relação ao réu, este obteve resultado favorável no plano material. Portanto, a sentença existe e é apta a vincular definitivamente o autor. Circunstância que reforça a concepção defendida por Bedaque é a introdução do artigo 285-A[38], no CPC, através da Lei nº 11.277, de 07.02.2006, DOU de 08.02.2006, pois pela atual prescrição normativa, sequer o réu precisa ser citado, para que sentença produza resultados em desfavor do autor.
Portanto, embora o réu não esteja sujeito as forças da coisa julgada, não tem interesse processual em impugná-la, podendo, valer-se do comando nela contido para impedir nova investida do autor contra sua esfera jurídica. Por outro lado, se o processo for contrário aos interesses do réu que não foi citado, este poderá impugnar a sentença a qualquer tempo.
Não se deve, portanto, interpretar as regras sobre forma sem levar em conta os valores maiores que as inspiram.
Por outro lado, em relação à importância das formas processuais, não podemos perder de vista o ensinamento de Roque Komatsu, no sentido elas correspondem uma necessidade de ordem, certeza e eficiência e a sua observância representa uma garantia de andamento regular do processo e respeito ao direito das partes[39]. Portanto, as formas processuais se mostram importantes instrumentos de controle do arbítrio.
Luiz Fux apesar de nos informar que no IX Congresso mundial de Processo Civil em Portugal, a regra do artigo 244 do CPC brasileiro foi considerada a mais bela de nosso planeta, por legalizar o princípio da instrumentalidade, por outro lado, esclarece que as formas são necessárias visando evitar a desordem processual e incertezas, para que o resultado do mesmo não seja fruto de equívoco formais[40].
6. A NULIDADE PELA NÃO INTERVENÇÃO OBRIGATÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO E O AVANÇO NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Piero Calamandrei[41]enfatiza a necessidade de participação ativa do Ministério Público nos casos que exista alta significação do direito em jogo, revelada pelas relações indisponíveis.
Para Fredie Didier Jr. a participação do Ministério Público, nas ações em que sua intervenção é obrigatória constitui um pressuposto processual objetivo intrínseco de validade[42].
Inspirado no princípio da instrumentalidade das formas e dos atos processuais, segundo o art. 244, CPC, somente será declarado nulo um ato se não atendeu a sua finalidade ou causou prejuízo (arts. 249, § 1º e 250, CPC)[43].
Entende Humberto Theodoro Júnior[44], que em caso de ausência de intimação do Ministério Público, não havendo prejuízo ao interesse tutelado, será injustificável será anulação do processo, pois faltará a parte pressuposto de interesse legítimo para obter tal decretação de nulidade, estando o juiz, logicamente, impedido de agir de ofício pois estaria contrariando a essência da norma que institui a tutela especial dos interesses em tela.
É certo, que o Código de Processo Civil tem previsão de nulidades cominadas (art. 245, CPC) ou não cominadas, mas conforme já exposto, os defeitos dos atos processuais, por mais graves que sejam, jamais causarão a nulidade absoluta ou insanável, e tem sido este o posicionamento dos nossos tribunais acerca dos o arts. 84 e 246 do CPC,[45] ou seja, a falta de intervenção do Ministério Público.
Como bem assevera Bedaque[46]mais complexa se mostra a ausência de intervenção do Ministério Público no processo civil em razão da natureza da relação material, ou seja, de interesses indisponíveis não identificados com um dos polos da relação processual, como nas ações de estado, casamento, litígios coletivos pela posse da terra rural (CPC, art. 82, II e III). Para Bedaque, mesmo em tais situações caberia ao membro do Ministério Público, para obter a anulação, em sede de apelação ou ação rescisória, demonstrar que a não intervenção gerou dano. É certo que em tais situações, não é fácil a mera utilização dos princípios relativizadores da nulidade.
O projeto do Novo Código de Processo Civil está procurando trilhar o caminho da instrumentalidade das formas, especialmente no que diz respeito à intervenção do Ministério Público. A redação do Projeto de Lei do Senado de nº 166 de 2010, na redação do caput do artigo 246 do Código de Processo Civil, atribuía ao membro do Ministério a última a palavra sobre a valoração da ausência de prejuízo em processos que deveria ter sido intimado e não foi. Cabe esclarecer que tal redação sofria sérios problemas, inclusive uma possível inconstitucionalidade, pois estaria por vias transversas violando as disposições do art.5º, XXXV, da Constituição Federal, pois a lei estaria excluindo da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito. Ademais, o posicionamento do membro do Ministério Público não estaria sujeito a qualquer controle.
As alterações apresentadas ao referido projeto pelo Senador Valter Pereira corrigiu tal situação, sendo feliz ao fazer a seguinte previsão: “A nulidade só pode ser decretada após a oitiva do Ministério Público, que se manifestará sobre a existência ou a inexistência de prejuízo”. Portanto, existe uma grande tendência do princípio da instrumentalidade das formas ficar ainda mais fortalecido.
7. CONLUSÃO
É evidente que as nulidades processuais são diferentes das nulidades no direito privado. O caráter instrumental das normas processuais interferem nos preceitos normativos dos arts. 84 e 246 do CPC.
Embora seja reputado por muitos como nulidade absoluta a não intervenção (intimação) do Ministério Público nos feitos em que devia intervir, tem-se admitido que o vício seja sanado se constatado a não ocorrência de prejuízo ao interesse público defendido pelo Parquet, pois o processo civil deve ser encarado como um instrumento eficiente de realização da justiça.
O projeto do Novo Código de Processo Civil, no que diz respeito à intervenção do Ministério Público, está mais condizente com a visão de processo como instrumento para efetivação do direito material.
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