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Limitação de responsabilidade do transportador marítimo: inconstitucionalidade e ilegalidade

O não reconhecimento de qualquer fonte instituidora da limitação de responsabilidade em favor do transportador marítimo

08/11/2013 às 14:15
Leia nesta página:

O artigo é uma carta aberta aos legisladores e magistrados brasileiros no sentido de os alertar contra a tentativa de grupos ligados aos transportadores marítimos estrangeiros de inserirem no sistema legal pátrio a figura danosa da limitação tarifada.

A INCONSTITUCIONALIDADE, A ILEGALIDADE SISTÊMICA E A IMORALIDADE DE QUALQUER NORMA LIMITADORA DA RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR MARÍTIMO.

CARTA ABERTA AOS EXCELENTÍSSIMOS SENHORES SENADORES E DEPUTADOS FEDERAIS E AOS MAGISTRADOS BRASILEIROS

Tomo a liberdade de me dirigir aos Excelentíssimos Senhores Congressistas e Magistrados brasileiros porque são os responsáveis diretos pela construção e aplicação do Direito no país.

O objetivo é respeitosamente alertar os Ilustres agentes políticos a respeito de um perigo que ronda o cenário jurídico brasileiro: a tentativa, por parte de representantes diretos e indiretos dos transportadores marítimos e afins, de instituição de uma figura legal tradicionalmente repudiada pelo Direito e pela Jurisprudência nacionais: a limitação de responsabilidade (responsabilidade tarifada) do transportador marítimo.

Com todo e máximo respeito aos partidários de tal entendimento, profissionais extremamente qualificados e honrados, todos muito melhores do que eu, não posso concordar com tal tentativa porque manifestamente prejudicial aos legítimos direitos e interesses de muitos setores vitais para a economia do Brasil.

O tom contundente deste expediente, em alguns momentos duros, não pode e não deve ser interpretado como desrespeito aos partidários da tese da limitação de responsabilidade do transportador marítimo. Não, muito pelo contrário: justamente porque reconheço o enorme valor de cada oponente é que me esforço em alertar os agentes políticos do Estado brasileiro, evitando o eventual sucesso do que, em sã consciência, considero ser um grande mal para os importadores, exportadores, produtores, trabalhadores, seguradores e consumidores brasileiros, estes últimos, também, eleitores e jurisdicionados.

Minha voz é pequena e tímida, inferior qualitativamente às vozes dos defensores do mercado maritimista, na medida em que sou apenas um modesto advogado prestador de serviços do mercado segurador, mas ela é amplificada por causa daqueles que direta ou indiretamente defendo e represento: seguradores de cargas e seus clientes, segurados, ou seja, exportadores e importadores brasileiros, bem como, ainda mais reflexamente, os que se conectam aos referidos grupos.

Em outras palavras: meus oponentes representam um importante segmento, o dos transportadores marítimos. Não obstante é um segmento com pouco ou nenhum compromisso com o Brasil. Poucos são os armadores com patrimônio no país e que geram empregos e riquezas aqui. Por outro lado, represento um dos mais importantes segmentos econômicos do Brasil, um setor que gera receitas estrondosas e milhares e milhares de postos de trabalho. Um setor diretamente controlado pelo Estado brasileiro, com ricos acervos patrimoniais no país e que recolhe anualmente bilhões de reais ao Erário. Um setor que assegura as relações negociais de milhares de empresários brasileiros e de milhões de pessoas naturais, contribuintes, consumidores e eleitores. Um setor que se mostra ainda mais importante quando considerado o que ele protege. Todos os exportadores e importadores brasileiros, produtores e circuladores de riquezas, encontram-se, de algum modo, tutelados pelo mercado segurador.

Assim, ao defender o mercado segurador, defendo os agentes econômicos nacionais e a sociedade brasileira por via reflexa. O mercado que represento e que indiretamente defende vários setores da sociedade brasileira, encontra-se sediado no país, segue à risca as leis brasileiras e ostenta orgulhosamente a bandeira nacional. O setor que meus ilustres oponentes representam é um setor que opera em seu seio com as chamadas bandeiras de aluguel e quase sem nenhum vínculo efetivo com o Brasil. Isso, por si só, ouso imaginar, é muito significativo e diz quem é quem no tabuleiro de xadrez dos jogos de interesses.

Aos legisladores brasileiros compete e competirá manter a longa tradição do país de não se intimidar por pressões de grupos econômicos estrangeiros específicos e que em nada se alinham aos conceitos de modernidade, globalização e de função social das obrigações contratuais e relações empresariais. Aos Ilustres Magistrados, compete e competirá manter a zelosa vigilância da Constituição e a garantia fundamental da reparação civil ampla e integral, uma conquista da sociedade brasileira, elemento de justiça e de equilíbrio das relações econômicas e sociais.

Aos advogados (mesmo os donos de vozes modestas, como eu) compete e competirá sempre lutar pela defesa dos legítimos direitos e interesses dos seus representados, especialmente quando estes representados, de uma forma ou de outra, representam setores diversos da sociedade brasileira e são essenciais para a vitalidade da economia e para o desenvolvimento do país.

Peço antecipadamente perdão aos Ilustres agentes políticos do Estado e aos que se dispuserem ler este trabalho pela extensão relativa do seu conteúdo, justificando a necessidade de expor a melhor versão do Direito e a verdade fenomênica. Peço perdão, também, o fato de ter feito uso, em alguns momentos, de certa dose de necessária força, mesmo sem descortinar da importância de não se abandonar a elegância com os oponentes. A contundência, inflacionada por certa dose de paixão ao ofício, deu-se e se dá pela convicção pia de empunhar a bandeira da verdade, que nem de longe é uma bandeira de aluguel, mas própria, fincada no solo brasileiro, tingida com as cores da justiça e do bom senso.

Agradeço, desde logo, a gentil e honrosa atenção.

Pois bem:

Tenho lido e ouvido muita coisa a respeito do conceito de limitação de responsabilidade no transporte marítimo de cargas e de pessoas.

Impressiona-me a capacidade de os defensores do conceito de limitação de responsabilidade chamar de interesse da sociedade aquilo que não passa do próprio interesse.

Observo isso com todo e máximo respeito, mas não sem algum e justificável constrangimento.

Tenta-se transmitir a idéia, distanciada da verdade, de que todo o Brasil ganhará com a adoção da limitação de responsabilidade (ou responsabilidade tarifada), quando, em verdade, somente os transportadores marítimos é que serão beneficiados com sua adoção.

Ao contrário do que afirmam os partidários do conceito, se a limitação de responsabilidade se tornar uma realidade no cenário jurídico nacional, os brasileiros perderão e muito.

Empresários, trabalhadores, consumidores, todos serão os grandes perdedores. Até mesmo o Estado brasileiro perderá se a limitação de responsabilidade, algo inconstitucional e imoral, for, de algum modo, inserido no ordenamento jurídico brasileiro.

A limitação de responsabilidade é inconstitucional porque fere de morte a regra da reparação civil ampla e integral, estampada no artigo 5º, que trata exatamente dos direitos e garantias fundamentais.

E é imoral (lembrando sempre que a experiência da ordem moral se revela sobremodo importante na construção do Direito) porque permite ao causador do dano a possibilidade de não responder de forma plena por sua incúria operacional e sua desídia administrativa, desprezando a máxima de que a ninguém é dado causar dano a outrem.

Algum defensor da limitação de responsabilidade poderá alegar que eu afirmo isso porque defendo, profissionalmente, os direitos e interesses do mercado segurador (especialmente no que diz respeito ao seguro de transporte de carga).

Há razão, em parte, na hipotética alegação. Eu não pinto com cores alegóricas o que acredito a fim de transmitir imagem distanciada da realidade.

Eu, ao contrário, admito o que penso e o que defendo, fazendo, se necessário, com tons densos e solenes. Não escondo a defesa, absolutamente legítima, de um dado interesse jurídico-econômico com um manto de suposto desprendimento, chamando-o de interesse de todos e de bem comum da sociedade, embora, no meu caso em particular, esteja absolutamente seguro, sem recair no mesmo erro dos meus adversários, de indiretamente também defender os interesses da maior parte da sociedade brasileira, como mais adiante será devidamente exposto.

Acho estranho, para dizer o mínimo, aquele que atua profissionalmente em favor do chamado “mercado maritimista” dizer que não se ocupa em defender transportadores, armadores e clubes de proteção e de indenização, mas o Brasil como um todo.

Ora, não existe discurso que não tenha em sua gênese algum tipo de interesse.

E observo isso, sempre é bom repetir, com todo e máximo respeito, pois o Direito é dialético por excelência e existe exatamente para o bom debate.

Quem defende a validade e a eficácia do conceito de limitação de responsabilidade não está preocupado, em verdade, com o bem da sociedade brasileira como um todo, mas apenas e tão-somente com o bem do lado para quem trabalha.

E isso, a bem da verdade, além de absolutamente legítimo, não é algo necessariamente ruim, desde que quem o faça se deixe bem claro o que de fato defende, a fim de esclarecer, não confundir.

Tendo-se isso em conta, existem dois lados a serem considerados.

Um lado é o dos transportadores marítimos, outro é o dos seguradores de cargas.

Se existe um conflito de interesses entre ambos e tal conflito é aparentemente inconciliável, qual lado deverá ser contemplado?

Para que o leitor possa fomentar uma opinião segura, discorro rapidamente sobre os dois lados.

O lado dos transportadores marítimos é, sem dúvida, muito importante. Cerca de mais de 90% das cargas transportadas internacionalmente o são pelo modal marítimo. Mas, o Brasil não é um país com grandes armadores. Pelo contrário, o Brasil é um país eminentemente voltado à carga. Os transportadores praticamente não geram empregos no país (poucos são os que têm filiais aqui), não circulam diretamente riquezas, não recolhem muitos tributos, não atuam diretamente no cenário social do país. Aliás, a fim de mostrar a visão dos transportadores em geral a respeito das leis e das organizações sociais brasileiras e de outros países, eles adotam a figura da “bandeira de conveniência”, vinculando-se à países com pouca envergadura jurídica e sem sistemas tributários complexos e legislações trabalhistas rigorosas, apenas para seus próprios benefícios, para conquistarem vantagens econômicas que podem ser traduzidas como o lucro pelo lucro, sem qualquer tipo de comprometimento social.

Já o lado dos seguradores de cargas é o lado de sociedades anônimas nacionais ou transnacionais, com sedes e acervos patrimoniais no Brasil, geradoras de milhares e milhares de postos de trabalho, diretos e indiretos, contribuintes importantes do Erário e imprescindíveis para a segurança dos negócios operados no Brasil, sejam eles no plano interno, sejam no plano externo. Além disso, são entidades econômicas que traduzem os interesses dos grupos que impulsionam o país para frente e que geram ainda mais empregos, recolhem ao Erário ainda mais tributos e efetivamente circulam as riquezas no país. Uma seguradora não representa apenas a si mesma, mas o conjunto de seus segurados, importadores, exportadores, produtores e, indiretamente, a população em geral.

Diante dos resumos ora expostos, mesmo que ligeiramente simplistas, a indagação a ser feita é: quem de fato defende o interesse da sociedade brasileira ao defender o próprio interesse? O transportador, sem qualquer compromisso com o país e que, a despeito de sua importância para o cenário logístico, trata o Brasil como uma praga de gafanhotos trata uma plantação ou o segurador da carga de um grande exportador brasileiro, dois atores protagonistas da economia nacional, os quais geram empregos, pagam tributos e movimentam diretamente a economia nacional?

Logo, ao defender os direitos e interesses do segurador de carga, o legislador defende, em verdade, mesmo que indiretamente, o interesse de toda a sociedade brasileira, sem que isso tangencie as idéias de protecionismo e de casuísmo.

Esclareço que não sou fechado às práticas do comércio exterior, muito menos defendo um conjunto excessivo de regras protecionistas. Longe disso. Sou capitalista (ainda que defensor do controle parcial do Estado) e confesso ter mais afinidade cultural e emocional com a Europa, terra dos meus familiares, do que com o próprio Brasil. Logo, a defesa que faço com aparente ar protecionista ao país não é fruto de um patriotismo exagerado e falastrão, mas de uma consciência arraigada no forte sentimento de repúdio a um instituto manifestamente injusto como a limitação de responsabilidade.

Os defensores da limitação de responsabilidade dizem que se ela for adotada no Brasil, contrariando longa tradição jurisprudencial que sempre a repudiou, os seguintes benefícios ocorrerão:

  1. Barateamento do frete;
  2. Desenvolvimento da indústria maritimista brasileira;
  3. Adequação do país ao que se pratica no primeiro mundo.

Além de alguns outros argumentos, os três acima elencados são os costumeiramente alegados pelos profissionais ligados aos transportadores marítimos.

Sem embargo, as três alegações acima são falaciosas.

Se não, vejamos:

Barateamento do frete: este não ocorrerá pelo simples fato de o Brasil adotar a limitação de responsabilidade. O frete não depende da existência ou não de um acervo legal mais favorável ao transportador. Ele é sazonal e fixado com base em outros significativos critérios, todos próprios do mercado internacional e desconectados com a ordem jurídica. O preço do barril de petróleo, por exemplo, é mais importante do que qualquer lei num ou noutro sentido. Tanto que o frete é dado por distância percorrida e carga embarcada e não por regra legal qualquer. O embarcador inglês assim como o embarcador brasileiro, pouco importando as regras legais de seus países, pagarão o mesmo frete para o mesmo tipo de carga e a mesma distância percorrida. Tão sem sentido e despida de verdade é a referida alegação que chega a machucar a inteligência de quem minimamente se dispõe a debruçar sobre a questão. Aliás, se adotada a regra da limitação de responsabilidade, o frete não sofrerá impacto algum, mas o seguro de transporte sim. A seguradora usa alíquotas pequenas (se comparadas, por exemplo, às do seguro de automóveis) na fixação dos prêmios porque sabe que o ressarcimento em regresso integral é um elemento que desagrava o risco e permite a justa minimização dos prejuízos. Se, porventura, o ressarcimento integral foi acutilado, as alíquotas serão automaticamente majoradas, os riscos agravados e os segurados obrigados a pagar prêmios maiores. Com isso, o desdobramento natural será o aumento dos preços nos itens todos de sua cadeia de produção e os consumidores brasileiros, incluindo os legisladores e julgadores, pagarão mais caro por produtos diversos. Em outras palavras: a limitação de responsabilidade só trará ônus aos consumidores brasileiros em geral.

Desenvolvimento da indústria maritimista: não é por meio da limitação de responsabilidade que a indústria naval brasileira será incrementada. Sim, o Brasil precisa buscar equilíbrio entre os setores maritimista e “cargo” se quiser, de fato, pisar no primeiro mundo pela porta da frente. Inegável a necessidade de o país se tornar também um país de grandes e poderosos armadores. Há até uma vocação estratégica a ser considerada. Tal crescimento, porém, não se dará pela adoção de uma regra favorável à limitação de responsabilidade. Aliás, uma coisa nada tem a ver com a outra. Séculos atrás, a Inglaterra investiu na sua indústria maritimista e, depois, para a defesa dos seus próprios interesses, adotou regras limitadoras das responsabilidades dos seus armadores. A Inglaterra não inverteu o curso natural das coisas. Primeiro, a criação de uma indústria poderosa; depois, a instituição de regras favoráveis aos seus interesses (sendo que, convém desde logo explicitar, mesmo lá, existe dose elevada de calibragem na limitação, a fim de graves injustiças aos donos das cargas e seus seguradores, como será demonstrando mais adiante, não serem perpetradas). Se o Brasil quiser desenvolver sua indústria naval, o caminho para o sucesso deverá ser outro: pesados investimentos no setor, abertura de linhas de crédito (devidamente monitoradas) e leis fiscais mais favoráveis aos armadores, ao menos na fase inicial. São passos elementares de um caminho seguro. A alegação de que a limitação de responsabilidade permitirá o desenvolvimento do setor maritimista no Brasil é tão risível e pueril que faz corar qualquer estudante de Economia, mesmo o menos talentoso.

Adequação do país ao que se pratica no primeiro mundo: O Brasil, de fato, está longe do nível de vida ostentado no primeiro mundo. O fato de ser, hoje, uma das dez maiores economia do planeta não faz do Brasil um país com bom índice de desenvolvimento humano. Pelo contrário, os índices brasileiros são típicos do terceiro mundo, por mais que os eufemistas e os partidários do lamentável movimento conhecido “politicamente correto” torçam os narizes para o termo. Antes de se preocupar com questões absolutamente pontuais e de menor importância, como a limitação de responsabilidade do transportador marítimo, o Brasil deve se preocupar com o desenvolvimento da sua infraestrutura, absolutamente precária, da necessária modernização dos portos e aeroportos, das rodovias, estradas de rodagem, das ferrovias, das hidrovias e da navegação de cabotagem. Tem que se ocupar com a saúde e a educação do seu povo, em combater a criminalidade. O resto pode e deve ser tratado num momento posterior. Hoje, discutir a limitação de responsabilidade do transportador é até uma falta de respeito com tudo o que é mais importante e que verdadeiramente inibe a adequação do país ao primeiro mundo. Não é a inserção da limitação de responsabilidade do transportador marítimo no ordenamento jurídico que fará do país um país de primeiro mundo. Uma coisa que os defensores do conceito não explicitam é que mesmo nos países onde a limitação é aplicada existem regras que permitem em muitos casos a busca da reparação civil ampla e integral, apenas sendo um pouco mais difícil o caminho de êxito do que é, hoje, no sistema legal brasileiro. Mesmo em tais países, a limitação de responsabilidade não é uma figura com cores absolutas, muito menos inibe outros conceitos legais como o do “punitive damage”, ao tempo que não é, nem poderia ser, salvo-conduto para atos lesivos graves e inescusáveis praticados pelos transportadores.

Possível notar, portanto, e sem muito esforço quão absurdo é o triunvirato de alegações sobre o qual os defensores da limitação de responsabilidade se apóiam para a disseminação de sua vontade. E é igualmente possível notar que a desqualificação desse mesmo triunvirato é operada sem muito esforço, bastando apenas o uso do bom-senso e da verdade.

O Brasil nunca aderiu a qualquer convenção internacional de Direito Marítimo porque sempre viu nelas muitas normas abusivas, contrárias ao sistema legal do país. A única convenção assinada pelo Brasil, a de Hamburgo, nos anos setenta do século passado, não foi ratificada, mostrando o zelo do Estado-legislador com os verdadeiros interesses nacionais.

Seguindo sólida e correta tradição (que em nada prejudica o Brasil no cenário comercial global, como nunca prejudicou até o presente momento), o Brasil não dá sinais de eventual adesão a mais nova tentativa de regulamentação internacional do transporte marítimo, a Convenção de Roterdã, chamada Regras de Roterdã (que, em verdade, é menos nociva, incluindo a questão da limitação de responsabilidade) do que as convenções precedentes.

Tal postura demonstra incomum maturidade do país nas questões internacionais, afastando-se tanto das bravatas nacionalistas, quanto da submissão vergonhosa, os extremos que contaminam qualquer relação internacional.

O Brasil sabe quais não os seus arquétipos e as suas reais necessidades e sabe que o endurecimento numa ou noutra questão se faz imprescindível para o bem comum do país. Sabe, ainda, que ninguém deixará de negociais com o Brasil por causa de uma postura menos flexível num dado assunto, nem os transportadores marítimos, que já não têm o poder que ainda pensam ter em mãos, deixarão de transacionar com importadores e exportadores brasileiros por causa da existência ou não da limitação de responsabilidade no sistema legal pátrio.

Acaso, alguém deixa de fazer negócio com a China porque ela sistematicamente desrespeita os direitos humanos fundamentais, não se pauta pelos postulados democráticos e nem mesmo assegura direitos e liberdades fundamentais e internacionais como a liberdade de crença religiosa? Algum Estado, algum empresário, algum exportador de bens, algum transportador marítimo se recusa a transacionar com a China por causa da violenta ocupação do Tibet? Não. O mundo silencia quanto a tudo isso, mesmo que hipocritamente, porque negociar com a China é uma necessidade vital nos dias correntes.

O Brasil não tem a pujança econômica da China e ainda é um país periférico no cenário global do comércio exterior, mas está longe de ser irrelevante ou apenas mais um ator. Com duzentos milhões de habitantes, sendo cem milhões economicamente ativos, o Brasil desperta interesses poliédricos. O nosso mercado consumidor, em que pesem os problemas endêmicos do país, é maior do que toda a população da Alemanha, o Estado de São Paulo da Europa. Logo, inegável a importância do Brasil e inegável a necessidade do Brasil defender seus legítimos interesses sem, com isso, adotar políticas excessivamente protecionistas ou refratárias a comunidade internacional.

Assim, injustificável qualquer temor quanto a não adesão do Brasil ao conceito legal de limitação de responsabilidade.

O Brasil nunca foi simpático à limitação de responsabilidade em favor do transportador marítimo.

Seja por norma convencional, seja por disposição contratual. Vale a pena, portanto, já transmitido o recado principal sobre quem é quem no cenário de fundo do tema e sobre as falaciosas alegações dos defensores da limitação de responsabilidade em favor do transportador marítimo, discorrer um pouco mais a respeito do instituto propriamente dito.

Não podemos deslembrar que o direito à indenização encontra-se previsto no inciso V, do artigo 5º da CF que garante a indenização ampla e integral por danos materiais, morais e à imagem. Inciso, aliás, a ser aplicado em conjunto com o inciso X do mesmo artigo, presente no rol exemplificativo dos direitos e garantias fundamentais. Rol este, segundo estudiosos, que é o mais importante de todo o Direito brasileiro.

E há um casamento entre o Direito material com o Direito processual quando a reparação civil ampla e integral é ajustada ao princípio processual, também constitucional e fundamental, da “efetividade das decisões”. Segundo tal princípio, todo processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem direito. Essa máxima de nobre linhagem doutrinária – ensina Cândido Rangel Dinamarco e outros – constitui verdadeiro slogan dos modernos movimentos em prol da efetividade do processo e deve servir de alerta contra tomadas de posição que tornem acanhadas ou mesmo inúteis as medidas judiciais, deixando resíduos de injustiça (Teoria Geral do Processo, Malheiros, 20ª Ed., 35).

E ao referido princípio processual constitucional, garantia por excelência, soma-se em certa medida o da “justiça das decisões” que autoriza até mesmo uma interpretação seguida de aplicação do Direito por parte do juiz de forma diversa da aparente vontade do legislador, pois a “mens legis” nem sempre corresponde a “mens legislatoris” e aquele prefere a esta justamente por buscar a Justiça, razão de ser da lei e do Direito, sempre considerando as particularidades do caso concreto.

Por isso, nenhuma regra, mesmo convenção internacional, pode desprestigiar o conceito legal de reparação ampla e integral, pois não se trata de apenas de um direito de índole civil, mas garantia constitucional, portanto, algo com inegável primazia. E se não pode uma convenção contratual, também não pode, com mais razão, a norma contratual (sobretudo porque o contrato de transporte marítimo é um contrato de adesão e cheio de disposições abusivas) e não pode por meio de regra legal, como pretende, por exemplo, a emenda 56 ao Projeto de Lei que trata do novo Código Comercial.

Até mesmo porque a Convenção internacional, mesmo que assinada e ratificada, não pode ser ombreada à CF, em que pesem vozes contrárias, algumas de grande peso, favoráveis à inteligência ampla do Direito das Gentes, mesmo em detrimento do sistema legal pátrio.

O Ministro Francisco Resek, em sua prestigiosa obra Direito dos Tratados (Forense, São Paulo: 1984) foi muito claro ao dispor que somente existe prevalência do tratado quando o conflito diz respeito à lei editada pelo Congresso Nacional (logo, jamais quanto à Constituição). E, ousando interpretar e amplificar as palavras do Ministro, prevalência em relação as leis desde que suas disposições não acutilem direitos fundamentais, nem se oponham à interpretação sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro.

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Na mesma linha, o STF afirmou ser “inadimissível a prevalência de Tratados e Convenções Internacionais contra texto expresso na Lei Magna” (RE 0109173/87). Muito importante atentar que a referida afirmação é anterior à atual Constituição, o que só faz reforçar a idéia de solidez do entendimento a respeito do assunto.

Indenização ampla e integral é um direito público subjetivo da vítima (ou de quem lhe fizer legalmente às vezes) com fundamento constitucional, expressamente previsto na Carta Magna e, portanto, não pode ser diminuído, desprezado, limitado, por qualquer outro meio, incluindo Convenção.

E vale a pena insistir que a regra constitucional se espraiou por todo o sistema legal, de tal modo que é possível afirmar que a indenização ampla e integral é um valor do direito brasileiro, um princípio-norma, extremamente poderoso porque de viés constitucional direto.

Por isso, é certo dizer, valendo-me da melhor hermenêutica jurídica, que a regra, em verdade, regra-conceito, que trata da reparação civil (indenização) ampla e integral, é de natureza eminentemente constitucional e, portanto, goza de prevalência na ordem jurídica, até porque sua gênese é alinhada ao rol de direitos e garantias fundamentais.

Tem-se por certo, portanto, que “a Constituição Federal de 1988 não prestou maiores homenagens ao Direito Internacional Público a não ser àquelas que ele realmente merece, isto porque as regras do cenário internacional não estão totalmente fixadas e dependem ainda muito do poder econômico e da importância política de cada país, assim, não é pelo simples fato de ter sido uma norma inserida  em um ato internacional que assegura que a ela o fato de ser uma norma justa ou que sua aplicação seja sempre conveniente ao Brasil”, como afirmou o mesmo e brilhante Francisco Resek em obra coordenada pelo maior constitucionalista do Brasil, Ives Gandra da Silva Martins (Interpretações da Constituição Federal de 1988, FUB, Brasília, 1988, p. 7).

Assim, seja por conta da correta interpretação do Direito Brasileiro, observando-se a hierarquia entre as normas, seja por conta da falta de justiça que a limitação de responsabilidade encerra, não há mesmo que se falar na sua aplicação à luz do sistema legal brasileiro.

De se notar que isso vale até mesmo para a Convenção de Varsóvia e/ou a de Montreal, assinada e ratificada pelo Brasil e incidente para o transporte aéreo.

Para melhor defender a não aplicação da limitação de responsabilidade no transporte marítimo de carga, convém breve consideração sobre o transporte aéreo, em tese agasalhado pela referida figura e que, mesmo assim, não a aplica plenamente.

Com efeito:

Mesmo em se tratando de aplicação da limitação apenas para os casos de sinistros derivados dos riscos de vôo é preciso muita atenção quanto aos fatos particulares de um caso concreto, pois a Convenção de Varsóvia (bisada pela de Montreal) foi redigida nos primeiros tempos da aviação comercial, quando as tecnologias de vôo e de construção de aeronaves eram muito inferiores, embrionárias e, portanto, maiores os riscos.

Havia no passado um sentido maior na limitação de responsabilidade, repita-se, mesmo nos casos de riscos de vôo, do que há hoje, pois as aeronaves são construídas segundo os rigorosos padrões de engenharia entabulados como “riscos zero”.

De certo modo, no passado, a limitação era uma forma de contrabalancear a força da presunção de responsabilidade, tudo dentro de processos de busca de equilíbrio entre as partes de um dado negócio de transporte aéreo de carga.

Os riscos do transporte aéreo, ao menos como antes, como no início do século passado, já não existem mais, ao passo que as cargas confiadas para transportes aéreos possuem valores agregados muito maiores do que os dos bens do passado, razão pela qual (ou melhor, também pela qual) não se justifica mais e escancarada e escandalosa limitação, figura convencional que afronta os mais comezinhos princípios do Direito.

Como ensina Oscar Tenório, “a vida das normas jurídicas não é eterna; elaboradas para as relações dos homens em sociedade, têm o seu destino condicionado ao substratum social que eles disciplinam e ordenam” (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, Rio de Janeiro: Borsói, 1955, p. 64), de tal modo que as mudanças sociais devem refletir na aplicação do Direito, no melhor estilo da teoria tridimensional do professor Miguel Reale. Assim, mesmo que se queira aplicar as convenções de Montreal e de Varsóvia, é imperioso se observar tudo o que gira em torno da aviação comercial contemporânea, à obrigação de transporte de carga, aos princípios fundamentais ligados à reparação civil ampla e integral e, assim, esgrimindo-se tudo isso, não se reconhecer a aplicação e a validade das normas e cláusulas limitativas de responsabilidade, equiparando-as em tudo as de não indenizar.

Aguiar Dias, grande civilista, sempre viu com maus olhos a limitação de responsabilidade, dispondo: “o problema se prende intimamente ao da causa. Para apreciar a contraprestação, rejeita-se o valor irrisório. Não convém exigir equivalência, palavra que se presta a equívocos. O que se procura é o mínimo capaz de tornar a injustiça por demais violenta”. (Cláusula de Não Indenizar, 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 129/130).

De tudo isso, a conclusão imperativa é de que a indenização tarifada, ou seja, a limitação de responsabilidade, não pode mais ser aplicada em qualquer caso concreto relativo à inexecução de obrigação de transporte de carga, qualquer que seja o modal de transporte, porque a ordem jurídica em vigor, destacadamente a Constituição Federal, dispõe o dever de reparação atrelado ao conceito de indenização ampla e integral, máxime em se tratando de relação negocial caracterizada por dever objetivo de resultado e, ainda, gravada com o selo de consumerista, de relação de consumo (fornecimento de serviço).

Aliás, sempre é bom rememorar que a incidência do CDC, braço armado do texto Constitucional, diploma legal principiológico e que é mais um item na luta contra a limitação de responsabilidade, é amplamente aceito em relação aos transportes aéreos, de pessoas e de coisas, conforme jurisprudência dominante, incluindo o STJ, como se pode conferir no REsp 65.837-SP, 4ª Turma, j. 26-6-2001, relator: Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira e no REsp 257,833-SP, da mesma turma, j. 10-10-2000, Min. Waldemar Zveiter, entre outros muitos julgados.

Não sobram dúvidas quanto a não aplicação da limitação de responsabilidade, sendo muitos, formais e substanciais, os argumentos e os fundamentos em tal sentido.

Ora, se não é possível a limitação de responsabilidade para o transporte aéreo, como acima sustentado, com mais razão não se justifica sua aplicação no transporte marítimo, desabrigado que é de fontes convencionais e legais.

A verdade nua e crua é que não se aplica ao transporte marítimo de carga, quando o tema é confrontado com o sistema legal brasileiro, a começar pela Constituição Federal, a limitação de responsabilidade. Igualmente, qualquer tentativa de inserir regra legal em tal sentido, será um golpe à Constituição, ao sistema legal civil, à ordem moral e aos legítimos interesses da sociedade brasileira, ainda que encabeçada por grupos específicos num primeiro momento, como o dos importadores e exportadores de cargas e/ou seus seguradores.  

Para que entender melhor o porquê de tanto repúdio à tentativa de se impor no cenário jurídico brasileiro à limitação de responsabilidade, permito-me reproduzir em parte, imediatamente abaixo, como parte integrante e inseparável deste expediente, algumas das considerações feitas quando de um artigo criticando a emenda 56 do Projeto de Lei do novo Código Comercial e a tentativa de instituição da limitação de responsabilidade. Não reproduzirei todos os comentários e argumentos feitos naquele texto, mas apenas uma parte, com adaptações devidas para o propósito presente.

Veja-se:

A limitação de responsabilidade é uma figura anacrônica e incompatível com o Direito do país.

Tradicionalmente rechaçada pelos tribunais brasileiros, ela fere muitas regras legais, enunciado de súmula do STF, o melhor entendimento jurisprudencial e a garantia constitucional de a reparação do dano ser ampla e integral.

A emenda 56 diz que ela há de ser implantada no país por uma necessidade de se incentivar a navegação comercial, mediante o abrandamento do dever de reparação integral no âmbito civil do empresário.

Em outras palavras: ao invés de incentivar a navegação comercial, algo que eu concordo plenamente, com investimentos e reduções tributárias pontuais, o que os articuladores da emenda desejam é abrandar as responsabilidades dos armadores, de tal sorte que eles, ao contrário de todos os demais, podem causar prejuízos milionários, mas responderem de forma limitada por seus danos.

Poucas coisas são mais nocivas à economia e ao Direito brasileiros do que a limitação de responsabilidade.

Os elaboradores da norma são advogados de armadores e transportadores defensores, por razões óbvias, da limitação de responsabilidades.

Diante de sucessivas e reiteradas derrotas no âmbito judicial, já que a limitação não tem guarida em lei e não é aceita pelo Poder Judiciário, resolveram atacar a questão por outro fronte de batalha e o fizeram de forma hábil: impondo sua vontade unilateral e casuística à sociedade brasileira por meio de norma legal.

A limitação prevista nos contratos marítimos de transporte, unilaterais e adesivos, manifestamente abusivos, nunca foi aceita pelo Direito brasileiro. Igualmente, a limitação da responsabilidade prevista em convenções internacionais nunca foi admitida, por conta da não adesão do Brasil.

Daí, o absurdo gigantesco objetivado na emenda 56, no Capítulo IV, intitulado “Da limitação de responsabilidade do armador”, artigos 145 e seguintes.

Para melhor se entender a gravidade da proposta da emenda, convém tratar da limitação como um todo e da sua natureza diante do sistema legal brasileiro.

A saber:

Poucos assuntos causam-me tanto furor como o da limitação de responsabilidade, porque vejo nela uma ofensa ao Direito, um ato de desonestidade travestido em lei e um salvo-conduto à irresponsabilidade contratual.

Com todo respeito aos ilustres nomes que a defendem enxergando nela uma espécie de aplicação concreta de teoria dos riscos empresariais, tenho por certo que ela é exatamente o revés disso, porque não respeita a divisão equilibrada de riscos, mas concede benefícios indevidos a quem não quer assumir risco algum, embora seja titular de muitos bônus.

Quando escrevi meu livro Prática de Direito Marítimo (Quartier Latin: São Paulo, 2009), não gastei muitas linhas para tratar da cláusula limitativa de responsabilidade, porque eu a tinha e a tenho como nula de pleno Direito.

Sempre entendi que a referida cláusula é em tudo equiparada à cláusula de não indenizar e, portanto, inoperante, segundo o Enunciado de Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal. Por cláusulas, aliás, entendo não somente as disposições contratuais unilaterais e abusivas, mas também as normas convencionais e as regras legais, enfim, qualquer fonte que tenha por escopo limitar a responsabilidade de quem causa um dano.

Ora, “não indenizar” é, em termos práticos, a mesma coisa que indenizar valor vil, sobremodo reduzido por causa da limitação.

Além da comparação direta com a cláusula de não indenizar, também sempre me posicionei (e ainda me posiciono) contra a cláusula limitativa de responsabilidade porque o contrato de transporte de carga, qualquer que seja o modal, é um contrato de adesão, com cláusulas impressas e unilateralmente impostas pelo transportador, razão pela qual injusta e, até mesmo, imoral sua aplicação em desfavor de quem foi obrigado a aderir aos termos contratuais.

Nem mesmo as convenções internacionais podem e devem ser aplicadas nos transportes internacionais, aéreos ou marítimos, pois nos marítimos tem-se que o Brasil nunca assinou qualquer convenção, salvo a de Hamburgo, nos anos setenta do século passado, mas que até hoje não foi ratificada pelo Congresso Nacional, e, nos transportes aéreos, tanto a Convenção de Varsóvia, como a de Montreal, das quais o Brasil é signatário, dispõem sobre a possibilidade de limitação tarifada, mas somente nos casos dos grandes sinistros aéreos, os acidentes de aviação, não os casos simples de faltas ou avarias de cargas, muito menos aqueles seriamente culposos.

Considerando tudo isso, considerando, ainda, a tradição jurídica brasileira, sempre refratária ao reconhecimento e à aplicação de qualquer tipo de cláusula ou regra limitativa de responsabilidade, especialmente no transporte marítimo internacional de carga, não senti, como não sentia até então, necessidade alguma de alongar o tema, tanto na primeira, como na segunda edições do livro.

Basicamente, o que discorri sobre o assunto foi o que segue, com enfoque na limitação tarifada disposta por contratos maritimistas, redigidos unilateralmente:

Abro aspas:

“A limitação de responsabilidade é tema que periodicamente ganha destaque na literatura do Direito Marítimo. Isso porque os transportadores costumam invocá-la nas disputas judiciais relativas aos contratos de transportes de cargas inadimplidos. 

Apesar do destaque, a jurisprudência é, preponderantemente, contrária a validade e a eficácia de toda e qualquer cláusula que limita a responsabilidade do transportador marítimo.

Pesa muito em favor desse entendimento o fato de a cláusula limitativa de responsabilidade encontrar-se inserida em um contrato de adesão, como é o de transporte marítimo, implicando dirigismo contratual e abusividade explícitos.

O contrato de adesão deve ser interpretado, em caso de divergência, sempre em favor de quem aderiu. Além disso, o instrumento contratual de adesão não pode ofender o sistema legal, submetendo-se em tudo ao Direito como um todo.

O Brasil, em especial, é um país que tradicionalmente se mostra contundente em relação ao dirigismo contratual e as cláusulas abusivas.

Por isso, toda e qualquer cláusula limitativa de responsabilidade estampada unilateralmente pelo transportador no conhecimento marítimo é inválida e ineficaz, senão nula de pleno Direito.

Tendo-se em consideração que limitar a responsabilidade é o mesmo que não indenizar, afirma-se que a cláusula limitativa de responsabilidade ajusta-se perfeitamente ao disposto no Enunciado de Súmula nº 161, do Supremo Tribunal Federal: “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.

Antes da Constituição Federal de 1988 e da criação do Superior Tribunal de Justiça, era o Supremo Tribunal Federal o órgão jurisdicional que dava a última palavra sobre o assunto, fincando posicionamento que até hoje e acertadamente é abraçado pelos órgãos monocráticos e colegiados do Estado-juiz.

No mesmo sentido, o Direito positivo, por meio de regra legal específica, o Decreto nº 19.473/30, liquidou a eficácia de cláusulas contratuais dessa natureza, ao impor: “(...) Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa dessa prova ou obrigação”.

Mas, com a introdução da lei consumerista no sistema legal brasileiro, o tema ganhou novo colorido, praticamente definitivo, no sentido de se premiar a proibição às cláusulas limitativas ou restritivas de responsabilidade, comuns nos contratos de transporte marítimo.

E a legislação consumerista é perfeitamente aplicável aos casos envolvendo obrigações de transportes de cargas, sem se falar em inteligência maximalista, porque a obrigação de transporte é modalidade de fornecimento de serviço e o transportador é um prestador de serviços em todos os sentidos. Para a incidência da lei consumerista é preciso ter em foco não o bem transportado, mas o serviço propriamente dito, o qual tem no contratante, no consignatário ou no segurador legalmente sub-rogado consumidores perfeitos, porque destinatários finais dos serviços fornecidos pelos transportadores, pouco importando os destinos finais dos bens confiados para os transportes.

Com a nova lei especial, o que antes era solucionado por meio da jusfilosofia, mediante cansativo processo de esgrima das normas vigentes no sistema legal e o uso de sofisticada hermenêutica jurídica, passou a ter tratamento melhor, normativo e expresso, fulminando qualquer dúvida a respeito. Com a promulgação do Código Civil em vigor, de 2002, o dirigismo contratual foi definitivamente vedado e ao sabor dele, ainda mais forte se tornou o repúdio às cláusulas de limitação de responsabilidade, compaginada no rol das cláusulas abusivas.

Toda cláusula que limita a responsabilidade é abusiva porque constitui ofensa ao equilíbrio contratual, mormente quando o contrato que a contém, como é o caso do contrato maritimista de transporte, é um típico contrato de adesão.

Sendo um contrato de adesão, suas cláusulas são impressas, não cabendo ao consumidor e/ou beneficiário do serviço contratado, diretamente ou por estipulação em favor de terceiro, qualquer deliberação a respeito. Sua vontade não é livre, mas orientada pela imposição do transportador, sempre unilateralmente.

O consumidor (credor da obrigação de transporte de carga) simplesmente adere às condições impostas pelo transportador marítimo, não se lhe conferida a oportunidade de efetivamente manifestar sua vontade, emprestando caráter verdadeiramente unilateral ao contrato.

E nem se diga em eventual liberdade de não contratar, pois se levando em conta que cerca de 90% do transporte global de cargas é feito por mar, pouco liberdade têm os consumidores de tais serviços, uma vez que eles precisam contratar os transportes, submetendo-se, forçosamente, às disposições contidas nos instrumentos contratuais.

Assim colocada a questão, nada mais há para ser dito em sede de limitação de responsabilidade, tratando-se de mais um ponto superado, donde se estranha a insistência de os transportadores marítimos, em litígios judiciais, insistirem na tese da validade e da eficácia dessas cláusulas “hardship”, notadamente as de limitação de responsabilidade, na medida em que manifestamente contrárias ao Direito, repudiadas pela jurisprudência e eivadas de elementos negativos que atingem até mesmo o campo da moral.

Além de regras legais específicas contrárias ao dirigismo contratual, existem princípios fundamentais do Direito, uns de índole geral, outros de natureza constitucional, os quais devem ser sobremodo considerados quando da análise do tema, fulminando toda e qualquer tentativa de convalidar a abusividade intrínseca às cláusulas limitativas de responsabilidade.

Tais cláusulas ofendem fundamentos principiológicos como a eqüidade, a razoabilidade, a proporcionalidade e o bom-senso, compaginando essa ofensa mais um argumento a favor daqueles que as repudiam e as têm por nulas de pleno Direito.

A imposição de tais cláusulas, ao exclusivo alvedrio dos transportadores marítimo, faz letra morta qualquer alusão ao “pacta sunt servanda”, sendo curial notar que outro aforismo cabe na hipótese em questão: “pacta non possunt facere licita quae alias illicita sunt”.

Relevante observar que mesmo sem se remeter às regras do Código de Defesa do Consumidor, os princípios jurídicos que regem os contratos coíbem o abuso, principalmente ao se observar o dirigismo contratual decorrente da forma adesiva de contratação. E esses princípios foram definitivamente positivados e marmorizados nas letras do Código Civil de 2002, cujo conteúdo, considerando-se a melhor hermenêutica e a interpretação sistêmica de suas regras, veda a validade das referidas cláusulas, como de toda e qualquer cláusula “hardship”, combatendo o dirigismo contratual e fortalecendo a inteligência do comentado Enunciado de Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal.

Afinal, o Direito não se presta ao torto; e, em termos contratuais, poucas coisas são mais tortas e erradas do que as combatidas e abusivas cláusulas limitativas e/ou exonerativas de responsabilidade. Qualquer que seja a fonte legal aplicável num dado caso concreto, ou seja, Código Civil, Código de Defesa do Consumidor ou princípios gerais e fundamentais do Direito, tais cláusulas são ilegais e, mesmo, imorais, porque abusivas, cabendo ao Poder Judiciário, quando provocado, manifestar-se no sentido de se manter o entendimento vigente de tempos de antanho, hoje vitaminado por importantes ferramentas jurídicas, repudiando-se a validade e a eficácia de tais cláusulas ou, ainda mais importante, rotulando-as como nulas de pleno Direito.”.

Fecho aspas.

Diante disso e antes mesmo de prosseguir, esclareço que o que serve, em termos de fundamentação jurídica, para repudiar a validade e a eficácia das chamadas cláusulas contratuais limitativas e/ou exonerativas de responsabilidade, serve, igualmente e ainda com mais razão, para rechaçar a tentativa de imposição do conceito de limitação por meio de lei, como disposto na emenda 56.

Como disse, continuo entendendo a mesma e rigorosa coisa. Aliás, com o passar do tempo e as reiteradas vitórias judiciais no exercício da advocacia, tal convicção só fez aumentar.

Vejo, contudo, agora, com algumas interpretações equivocadas do sistema legal vigente e, em especial, com a tentativa de inserir no Direito brasileiro a chamada limitação tarifada, necessidade de tratar do tema um pouco mais detalhadamente.

Embora a jurisprudência continue pacífica no sentido de não se prestigiar a cláusula limitativa de responsabilidade, há em curso um movimento forte, patrocinado pelos transportadores marítimos em dizer que o que é errado é certo e, o que é certo, errado.

Por mais que se vistam de argumentos sedutores e aparentemente hábeis, a verdade que salta aos olhos é que a cláusula que limita a responsabilidade é, sim, uma cláusula de não indenizar. E se enquanto cláusula ela é algo abominável ao Direito, quiçá transformada em norma legal, contaminada por inafastável vício de constitucionalidade.

E isso é que costumo sempre expor, seja num artigo, seja numa peça forense, ou num parecer, ainda que sumário, enxuto e objetivo, com colorido jurisprudencial, como abaixo destacado;

A limitação de responsabilidade é tema há muito não controvertido no Direito brasileiro. Sua vedação é medida de rigor, amparada pelo Direito e pela Moral. A melhor doutrina e os Tribunais já pacificaram a questão, negando vigência a toda e qualquer cláusula que limite responsabilidade.

Nem poderia ser diferente o posicionamento pretoriano, uma vez que a cláusula limitativa de responsabilidade equipara-se, em todos os seus efeitos, a cláusula de não indenizar.

Principalmente quando a cláusula limitativa de responsabilidade encontra-se inserida em um contrato de adesão, como é o instrumento firmado entre o consignatário da carga (segurado das Autoras) e o transportador marítimo, ora denunciante.

O contrato de adesão deve ser interpretado, em caso de divergência, sempre em favor de quem aderiu. Tal idéia sedimentou-se, ao longo dos tempos, no Direito brasileiro, assumindo ares de postulado.

Hoje, é fortificado pelo Código de proteção e Defesa do Consumidor e pelo Código Civil de 2002 que expressamente defendem o postulado, com o peso da normatividade.

O Código Civil, aliás, ao tratar da função social do contrato, abraçou definitivamente os princípios informadores dos direitos de terceira geração, aplicando-os mesmo no âmbito do Direito privado. Assim, impossível emprestar validade, eficácia e vigência à cláusula que, imposta unilateralmente pelo denunciado, visa limitar a responsabilidade pelo evento danoso, trocando um pote de moedas de ouro, por alguns poucos centavos de prata.

Tendo-se em consideração que limitar a responsabilidade é o mesmo que não indenizar, sentimo-nos seguros e confortáveis em invocar o quanto disposto no Enunciado de Súmula nº 161, do Supremo Tribunal Federal, que dispõe: “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.

No mesmo diapasão, reproduzimos parte de uma regra legal específica, o Decreto nº 19.473/30, que liquidou a eficácia de cláusulas contratuais dessa natureza, ao impor: “(...) Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa dessa prova ou obrigação.

Referido Decreto, ainda em vigor, recepcionado pela Constituição Federal de 1988 e compatível com a inteligência sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro taxativamente veda qualquer limitação, ainda que mínima, ao dever jurídico de reparar o dano por parte do transportador inadimplente.

E, nunca é demais enfatizar: a introdução da lei consumerista no sistema legal brasileiro fortaleceu, sobremodo, a vedação as cláusulas limitativas ou restritivas de responsabilidade, comuns nos contratos de transporte, qualquer que seja o modal, especialmente marítimo e aéreo. Concomitantemente, temos o Código Civil dispondo em sentido idêntico e tornando defesa a limitação de responsabilidade em contratos de adesão.

Com o novo sistema legal, o que antes era solucionado através da jusfilosofia, mediante cansativo processo de esgrima das normas vigentes no sistema legal como um todo, passou a ter tratamento melhor, normativo e expresso, fulminando qualquer dúvida a respeito.

Lista o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, os direitos básicos atribuídos ao consumidor figurando, dentre eles, os dos incisos IV e X, que o protege de práticas e cláusulas contratuais abusivas e lhe garante o direito a um eficaz serviço público, espraiando-se aos serviços privados, especialmente os que têm o interesse público imediato, como no caso do transporte de carga.

Toda cláusula que limita a responsabilidade é abusiva porque constitui em ofensa ao equilíbrio contratual, mormente quando o contrato que a contém, como é o caso dos contratos maritimistas de transporte, é um típico contrato de adesão.

Antes da lei, existiam (e ainda existem), como dissemos, outros argumentos utilizados para combater as ditas cláusulas.

Considerando que este expediente tem enfoque nitidamente prático, convém aprofundar o tema com fortes comentários a respeito.

Sendo o contrato de transporte marítimo (conhecimento marítimo) um contrato de adesão, as cláusulas são impressas, não cabendo ao consumidor do serviço contratado, diretamente ou por estipulação em favor de terceiro, qualquer deliberação a respeito.

O consumidor simplesmente adere às condições impostas, inicialmente, pelo fornecedor, diga-se, transportador marítimo.

E nem se diga em eventual liberdade de não contratar, pois tendo-se em conta que cerca de 90% do transporte global de cargas é feito por mar, pouco liberdade têm os consumidores de tais serviços, uma vez que eles precisam contratar os transportes, submetendo-se, forçosamente, as disposições contidas nos instrumentos contratuais.

Falar em limitação de responsabilidade é falar, também, em reconhecimento da incidência das normas morais nas obrigações civis e/ou consumeritas, uma vez que limitar a responsabilidade, não raro a valores ou percentuais aviltantes, é ato afrontoso à moral que, em nosso entendimento, não pode ser de forma alguma admitido, principalmente em sede judicial.

A limitação de responsabilidade é imoral e prejudicial à economia e a decência do Direito, uma vez que permite que o ato ilícito permaneça sem punição, quebrando a regra de que aquele que causa dano à outrem deve reparar os prejuízos decorrentes com seu próprio patrimônio.

Por tal e tanto é que doutrinadores de grosso calibre, muito antes do advento do Código do Consumidor, manifestavam repúdio às ditas cláusulas, como exposto na seleção abaixo:

Hugo Simas[1]: “Por modo tal os transportadores têm abusado das cláusulas de não responsabilidade, que não há excesso na afirmativa de Pipia de que os fretadores e armadores não têm responsabilidade nenhuma e os capitães muito pouca, pelo o que os carregadores podem dar graças a Deus e à nímia bondade daqueles, se chegar ao destino alguma cousa do que é remetido.”

José Aguiar Dias[2]: “Sem embargo de sua utilidade, pois estimula os negócios, mediante afastamento da incerteza sobre o quantum da reparação, a cláusula limitativa muitas vezes resulta em burla para o credor. Dificilmente se dá o caso de ser o dano real equivalente à reparação prefixada, esta última, por um simulacro de perdas e danos.” (..) “Praticamente, é a cláusula exonerativa, à qual acaba por servir de argumento. As cláusulas limitativas são de uso frequente nos transoportes. Consistem, comumente, na fixação “a forfait”, de determinada soma, para constituir a indenização, em caso de perda, extravio, avaria ou atraso. (...) não temos dúvida em sustentar a sua nulidade, quando a soma arbitrariamente fixada resulte em verdadeira lesão para o credor, principalmente quando se trate de transporte, cujo contrato geralmente é de natureza a excluir a liberdade de discussão por parte do interessado no serviço.”

E Pontes de Miranda[3], que sobre o tema “responsabilidade do transportador”, especialmente “cláusula de irresponsabilidade”, disse: “No Decreto n.º 19.473, de 10  de dezembro de 1930, art. 1.º, 1.ª alínea, que regulou os conhecimentos de transporte de mercadorias por terra, água ou ar, e deu outras providências, estatui-se: “O conhecimento de frete — leia-se conhecimento de transporte – original, emitido por empresas de transporte por água, terra ou ar, comprova o recebimento da mercadoria e a obrigação de entregá-la no lugar de destino.”. Na 2.ª alínea, acrescenta-se: “Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva, ou modificativa dessa prova ou obrigação”. Tem-se querido insinuar a diferença entre restrição ou modificação da responsabilidade do transportador, o que é sem sendo. Transportar é receber o objeto e entregá-lo tal como foi recebido. A responsabilidade pelos danos que o objeto sofreu é inclusa no dever contratual de entrega.

É preciso que não se admitam cláusulas de irresponsabilidade que retirariam ao contrato de transporte sua estrutura. Por outro lado, o que importa é saber-se se, na espécie, a regra jurídica invocada é “ius cognes” ou “ius dispositium” ou “ius interpretarivem”. Se a regra jurídica é cogente, não há pensar-se em qualquer permissão de cláusula de irresponsabilidade.

De se ver que um dos maiores tratadistas do Direito, Pontes de Miranda, lastreado na interpretação sistêmica do Direito e, especificamente, no Decreto n.º 19.473/30, já manifestava, antes mesmo do advento do Código de Defesa do Consumidor, seu inconformismo quanto as cláusulas de irresponsabilidade, defendendo, com contundência e erudição, posicionamento relativo a invalidade absoluta das mesmas.[4]

Fazendo eco à doutrina selecionada no trabalho acima reproduzido, os Tribunais brasileiros, quase que majoritariamente, também fizeram consignar o repúdio a validação e eficácia das ditas cláusulas.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que ostenta orgulhosamente o título de ser um dos principais berços do pensamento jurídico brasileiro, através da sua sexta câmara, julgando o Recurso de Apelação n.º 274.840-Santos, decidiu:

“Limitar a responsabilidade da transportadora a 100 (libras esterlinas) é, sem dúvida, infringir o artigo 1.º do Decreto n.º 19.473, de 10.12.1930, que reputa não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa da prova do recebimento da mercadoria e da obrigação de entregá-la no destino, prova que o conhecimento de frete original faz a obrigação que por ela as empresas de transporte assumem. O legislador, certamente, teve em mente que: “illud nulla pactione effici potest ne dolus praestatus” (Dig. Lib. II, Tit.XIV, § 3.º). Pode ocorrer que o extravio da mercadoria faça render quantia superior à que o transportador tiver de pagar a título de indenização. Para eliminar estímulo de extravios dolosos, a lei fulmina cláusulas de irresponsabilidade e de não indenizar.” (...) “É enganosa a doutrina que condiciona a validade das cláusulas de limitação de responsabilidade “a uma rebaja del frete, segun opciones que previamente los transportadores dan a los cargadores” (FRANCIS FARINA, Derecho Comercial Martitimo, T. II, Ed. 1948, Madrid, p. 290, cfn. fls. 81). Haveria frete com determinada percentagem para os transportes sem declaração de valor das mercadorias e frete com “the rate increased” para o transporte com a declaração daquele valor. Dir-se-á que a opção pode advir uma vantagem, se o transporte for levado a bom termo, pois os mesmos riscos terão sido corrigidos, com um frete mais barato. A limitação de responsabilidade, porém, continua dando oportunidades de extravio doloso por parte do capitão ou da transportadora, eventualmente em conluio com o embarcador ou exportador. E aquela álea não poderá ser uma compensação a justificar a validez da cláusula restritiva.”

Também elaborado antes do surgimento da lei do consumidor (e do novo Código Civil), o posicionamento do Tribunal de Justiça paulista foi construído com muita lucidez, dando ênfase, como não poderia deixar de ser, ao Decreto n.º 19.473/30 e aos mais importantes e elementares princípios e postulados gerais do Direito.

Não se limitando ao Direito, o colégio paulista enveredou-se por outros ramos do conhecimento humano, porquanto observou, com precisão, que a limitação de responsabilidade é, ainda que às avessas, fator de incentivo à criminalidade, diga-se, extravios dolosos de cargas (“Para eliminar estímulo de extravios dolosos, a lei fulmina cláusulas de irresponsabilidade e de não indenizar”.).

Ora, ao preocupar-se com o implemento da criminalidade e, ainda, com as divisas nacionais (ordem econômica), o Tribunal paulista emprestou ao tema, repita-se: antes do surgimento da legislação especial consumerista, ares publicistas, sinalizando com o interesse social que tem a questão da não validade das cláusulas limitativas de responsabilidade.

Ditas cláusulas, qualquer que seja sua feição, limitação, restrição, exonerativa, enfim, negativa de responsabilidade, mesmo que parcialmente, são nulas de pleno direito, não havendo que se falar em “pacta sunt servanda”, primeiro porque o princípio da supremacia prefere ao da livre manifestação de vontade das partes, depois porque a presença das mesmas é imposta, mediante cláusulas impressas em contratos de adesão, principalmente agora que o sistema legal brasileiro, pelo Novo Código Civil, expressamente adotou o princípio do fim social para os contratos, além da boa-fé dos negócios jurídicos em geral.

Nesse sentido, interessante decisão do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n.º 107.361-6, votação unânime, dispõe que:

“Dentro do mesmo raciocínio, ao reduzir-se o valor de uma indenização a parte insignificante do prejuízo efetivamente verificado, parece ser a negação do próprio princípio que assegura a obrigação do pagamento dessa indenização. O Supremo Tribunal, com base em texto legal que reputa não escrita “qualquer cláusula” restritiva ou modificativa da obrigação do transportador (art. 1.º, do Decreto n.º 19.473/30), proclamou, na Súmula n.º 161, a inoperância da cláusula de não indenizar, não vejo como conciliar, com esse enunciado, a degradação de ressarcimento de uma importância mais de uma centena de vezes menor do que o prejuízo efetivo, a ponto de não chegar a compensar a antecipação dos encargos financeiros necessários ao ajuizamento da demanda.”

Igual entendimento teve o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 644-89.0009917-5-SP:

“Direito comercial – Transporte marítimo – Cláusula limitativa de responsabilidade do transportador – O Decreto n.º 19.473, de 10.12.30, em seu art. 1.º, reputa não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa da obrigação e tanto equivale a limitação a valor irrisório do montante da indenização, precedente do STF.”

Limitar a responsabilidade, repita-se pela última vez, é o mesmo que não indenizar e, por via de conseqüência, ofender postulados e primados importantes do Direito pátrio.

Começando por princípios fundamentais do Direito, uns de índole geral, outros de natureza constitucional, todos, contudo, informadores de qualquer interpretação legal e, mais importante, aplicação do Direito.

Tais cláusulas ofendem fundamentos como a eqüidade, a razoabilidade, a proporcionalidade e o bom-senso.

A imposição de tais cláusulas, ao exclusivo alvedrio da ré faz letra morta qualquer alusão ao “pacta sunt servanda”, sendo curial notar que outro aforismo cabe na hipótese em questão: “pacta non possunt facere licita quae alias illicita sunt”.

Relevante consignar que, mesmo sem se remeter às regras do Código de Defesa do Consumidor, os princípios jurídicos que regem os contratos coíbem o abuso, notadamente ao se observar o dirigismo contratual decorrente da forma adesiva de contratação, como aliás é o caso vertente.

Além do mais, o princípio da força obrigatória veio a ser mitigado com teorias e teses diversas, desde a da imprevisão até a da boa-fé objetiva, passando pela função social das obrigações e, ainda, a expressa vedação ao abuso de Direito.

Afinal, o Direito não se presta ao torto; e, em termos contratuais, poucas coisas são mais tortas e obscenas do que as combatidas e odiosas cláusulas limitativas e/ou exonerativas de responsabilidade. Tudo isso diante da vertiginosa velocidade de modificação, por vezes profunda, que a sociedade contemporânea passou a experimentar em seu modus vivendi, impedindo que as avencas permaneçam estáticas e imunes a tal evolução.

Nos dias correntes, impossível eventual apego a literalidade das cláusulas contratuais, desrespeitando-se princípios maiores e regras legais abertas, como as que tratam da boa-fé objetiva (art. 422, Código Civil).

Como anota com invulgar precisão Orlando Gomes: “o direito moderno não mais admite os contratos de “direito estrito”, cuja interpretação é literal. As partes contratantes devem atuar com lealdade e inspirar recíproca confiança, subordinando-se ao interesse da sociedade quanto à segurança das relações jurídicas e do aperfeiçoamento da relação negocial.”.[5]

Ainda mais em sentido tem a inteligência jurídica acima em se tratando de um contrato de adesão, em que as disposição são, como já se disse, impostas unilateralmente pelo transportador marítimo, de forma coativa, sem qualquer disposição de vontade por parte do contratante, refém do arbítrio e do abuso da outra parte.

Rechaçar qualquer cláusula contratual que dispõe sobre limitação de responsabilidade e dar preferência à idéia de função social das obrigações e aos princípios (regras legais) da função social, probidade e boa-fé objetiva das obrigações.

Prosseguindo com a presente fundamentação jurídica contrária à limitação de responsabilidade em favor do transportador marítimo de carga como pretende uma série de tentativas legislativas que pululam por aí, observo que os adversários do presente e sólido entendimento, fazem verdadeira ginástica jurídica para emprestar a cláusula limitativa de responsabilidade à moralidade que ela não tem, até por ser cláusula abusiva e que gera o desequilíbrio nas relações contratuais.

Contrariando o posicionamento sólido dos Tribunais brasileiros, incluindo os superiores, lançam luzes numa única decisão do STJ a favor da clausula, ignorando, maliciosamente, as particularidades do caso concreto que a ensejou e a sua não aplicação aos casos simples de descumprimentos obrigacionais.

Teses acerca de aplicação, por meio de sofisticada, mas vazia, interpretação sistêmica, de uma ou outra Convenção maritimista internacional, também são constantemente lançadas, tudo com o objetivo deliberado de se conquistar, num dado caso concreto, uma vantagem supostamente legal, mas que em essência é antijurídica, ilegal e imoral.

Num recente caso concreto, no qual atuei como advogado de um proprietário de carga prejudicado pelo grave inadimplemento contratual do transportador marítimo, tive a oportunidade, no exercício da capacidade postulatória, de combater a aplicação e a incidência da limitação de responsabilidade, invocada pelo transportador marítimo, com base numa convenção internacional ligada ao Direito Marítimo.

Nenhuma Convenção Internacional de natureza maritimista pode limitar a responsabilidade do transportador marítimo porque o Brasil não foi signatário de qualquer uma delas, salvo a de Hamburgo, mas que até hoje não vige no sistema legal do país porque não foi ratificada pelo Congresso Nacional.

Daí o erro sem medida de quem defende a limitação de responsabilidade, especialmente aquela mencionada na Convenção de Haia-Visby, pois esta faz menção ao contrato de transporte marítimo e, este, até por ser de adesão e com cláusulas impressas, tem grande parte do seu conteúdo repudiado pelo Direito brasileiro.

Se a parte que litiga contra o transportador marítimo for seguradora da carga, legalmente sub-rogada após o pagamento da indenização ao segurado, o consumidor original, o credor primitivo, da obrigação de transporte, ainda mais sem sentido se torna a alegação da limitação contratual.

Isso porque a seguradora não foi parte, nem mesmo por estipulação, do contrato de transporte (com termos impostos pelo transportador marítimo, unilateralmente) e a discussão do pagamento do suposto frete “ad valorem”, cai por terra, vê-se ferido de morte.

Não pode o direito ser acutilado de forma tão traumática por uma disposição contratual, especialmente uma da qual a seguradora não foi parte efetiva.

Ora, se a discussão em torno do chamado frete “ad valorem” já não tem sentido relativamente ao consignatário da carga – na medida em que a suposta liberdade de escolha é uma forma de coação às avessas, com oneração excessiva e inviável do custo de transporte –, ainda mais sem sentido e até mesmo abusiva e casuística, além de ilegal e inconstitucional, a imposição ao segurador sub-rogado.

Prevalecendo tal entendimento, a sub-rogação seria atingida visceralmente e, com ela, o Enunciado de Súmula 188 do STF que diz: O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.

Em termos práticos, se já fosse vigente a limitação, o segurador não conseguiria o ressarcimento do valor integral que pagou ao segurado e isso geraria a afronta do seu direito e da Súmula em destaque, ao tempo em que sangraria e muito a garantia fundamental constitucional da reparação civil ampla e integral.

O reflexo seria imediato no campo do direito securitário e, por sua vez, na economia como um todo, com desdobramentos sérios e complexos.

A limitação de responsabilidade, é preciso que se diga, facilitaria e facilitará, se reconhecida pelos Poderes Legislativo e Judiciário, a vida dos transportares eivados de má-fé, pois cargas de elevados valores agregados seriam extraviadas e aos transportadores bastaria pagar as indenizações tarifadas, de tal maneira que, para eles, a máxima de que o crime não compensa não seria verdadeira. O crime seria e será algo compensador, ao menos aos transportadores inidôneos e que não zelam por seu bom nome empresarial.

E não é sem sentido a preocupação com a criminalidade, especialmente num meio volátil como o maritimista em que poucos são os armadores verdadeiramente sérios e absolutamente idôneos.

Tal preocupação e outras menos graves diz respeito a racionalização dos contratos de adesão e da preocupação de se coibir as cláusulas abusivas.

Nunca é demais enfatizar que a rigor, a cláusula que limita a responsabilidade, em tudo equiparada à cláusula de não indenizar, é uma cláusula abusiva por excelência.

A verdade é que a cláusula limitativa de responsabilidade, à luz do caso concreto, deve ser interpretada sempre “contra proferente”, ou seja, contra quem a proferiu, uma vez que redigida exclusivamente pelo transportador, pelo fornecedor do serviço.

Exatamente o que afirma Wanderley Fernandes: “Nos contratos de adesão, essa regra de interpretação tem sido plenamente admitida pela doutrina e pela jurisprudência. No Brasil, a regra da interpretatio contra proferentem alçou condição de regra legal de interpretação, nos termos do artigo 423 do Código Civil” (Cláusulas de exoneração e de limitação de responsabilidade, Saraiva, São Paulo: 2013).

Ainda que se queira aceitar a validade e a eficácia da cláusula limitativa de responsabilidade, não se poderia deixar de ter em alça de mira tal e inafastável critério de interpretação.

Em sendo assim, aos olhos do Direito brasileiro, somente uma hipótese poderia contemplar, eventualmente, em caráter extraordinário, muito especial, a aplicação (e mesmo assim calibrada) da limitação: um grande sinistro com a perda total do navio e de todas as cargas, desde que não houvesse prova de conduta manifestamente culposa do navio e, ainda, o perdimento das cargas fosse de tal envergadura econômica, de tal impacto, que a sobrevivência da empresa restasse comprometida (tudo segundo os ditames da teoria da preservação da empresa e conforme singularidades do sinistro).[e, mesmo assim, desde que não presente a figura da culpa grave e inescusável do transportador num dado caso concreto].

Vê-se, portanto, o caráter essencialmente excepcional de aplicação da limitação.

Nos sinistros cotidianos, caracterizados por faltas e avarias, com ou sem a presença, num caso concreto, de avaria grossa, o fato é que não se aplica a cláusula limitativa de responsabilidade, tendo-se em conta o mosaico vasto de vícios legais que ela contém.

A limitação é um benefício que, a despeito de sua abusividade, impertinência e antijuridicidade, só pode ser aplicada e restritivamente em casos extremamente pontuais e extraordinários, tendo-se por objetivo a defesa de bens maiores e, ainda assim, sem prejuízos acentuados às vítimas diretas do caso, os donos de cargas ou seu seguradores.

Tudo dentro de uma dinâmica de equilíbrio e busca da justiça, observando-se o arquétipo da função social da obrigação contratual.

Nada disso, porém, se harmoniza com o sinistro simples, grave ou não, contornado ou não por avaria grossa, muito menos a idéia de culpa em sentido estrito. A inexecução da obrigação de resultado assumida deve, a rigor, propiciar a reparação civil mais ampla possível, compensando-se a parte credora e punindo-se, a devedora.

Há componente de justiça em tal concepção do Direito e quando se defende a Justiça, defende-se a moral, experiência que a defesa da limitação de responsabilidade insiste em deixar de lado.

O transportador que não cumpre fielmente sua obrigação contratual, não pode ser contemplado com a limitação do seu dever jurídico de indenizar, especialmente por conta de disposição contratual abusiva.

Uma coisa que os defensores da limitação de responsabilidade para o transportador marítimo não dizem é que mesmo nos sistemas legais que a contemplam, existe a possibilidade do interessado buscar a reparação integral do dano quando, num caso concreto, configurada a culpa grave do transportador e por meio de um pleito à parte, baseado no conceito de responsabilidade civil extracontratual.

Aliás, impressionante a insistência dos transportadores, em lides forenses, no sentido de buscarem, mesmo depois de reiteradas derrotas nos casos concretos, a protelação os processos respectivos com recursos especiais, supostamente ancorados eventuais divergências jurisprudenciais.

Tais recursos morrem nos juízos de delibações, pois o STJ não pode rediscutir provas e a limitação de responsabilidade, ao menos no transporte marítimo, é contratual, não convencional. Logo, impedido o STJ de analisar o contrato novamente e, portanto, a tese da limitação.

Mesmo assim, sem constrangimento algum, as alegações são feitas e os processos atrasam sobremodo, mais teimosia obstinada e nesciente dos transportadores do que por culpa de qualquer outro fator.

Daí a importância dos juros moratórios de 1% ao mês de litígio, um mecanismo de calibragem capaz de conferir justiça pela demorada na solução de uma lide. A verdade é que o transportador assume uma obrigação de resultado e tem o dever de cumpri-la fielmente.

Não pode mitigar, quando da inexecução, os seus deveres, por conta de limitações tarifadas, especialmente quando estas são inseridas num contexto de flagrante abusividade.

Defender o contrário é, a um só tempo, desprestigiar a tradição jurídica brasileira, afrontar a lei e virar às costas à moral.

Sempre pensei isso e minha convicção foi sobremodo agravada com essa tentativa indecorosa de inserir a limitação de responsabilidade no PL que trata do novo Código Comercial.

Existem figuras legais constitucionais que inibem e muito a limitação de responsabilidade.

O princípio e garantia constitucional fundamental da reparação de dano integral e ampla não pode ser mitigado ou acutilado.

Nem a tradição jurisprudencial desprestigiada com uma canetada.

O cálculo da limitação é aviltante, como se vê no artigo 149 da emenda 56.

Nem é preciso ser habilidoso em matemática para notar os prejuízos que a limitação acarretará aos empresários, seguradores e a sociedade brasileira em geral, incluindo aí o Erário.

Os valores das indenizações são tarifados em patamares ínfimos pela referida regra, mesmo vis, inferiores aos critérios da Convenção de Hamburgo.

O Congresso Nacional corajosamente disse não ao governo federal dos anos 70, período de exceção política, negando-se a ratificar a assinatura presidencial na convenção.

Agora, o mesmo Congresso é induzido a erro para patrocinar um ataque ao sistema econômico nacional, com critérios de limitação de responsabilidade mais draconianos do que os da convenção de Hamburgo.

Se a emenda for aprovada como proposta, só os armadores ganharão, ao passo que o Brasil perderá.

Nenhum benefício será dado ao Brasil, mas apenas aos armadores estrangeiros, descompromissados com as coisas de imediato interesse da sociedade brasileira.

Os patamares vis confirmam o entendimento que sempre sustentei e agora incenso que limitar, sobretudo a montante baixo, é o mesmo que não indenizar, de tal modo que a súmula 188 do STF também é desprestigiada no caso de limitação. [igualmente desprestigiados o enunciado de Súmula 161 do mesmo Tribunal Superior e o art. 5º, da CF, relativamente à garantia da reparação civil ampla e integral]

A limitação em nada será aproveitada para o bem do Brasil.

O argumento que o frete será mais baixo é falacioso, infantil, para não dizer mentiroso.

Pelo contrário!

Tudo será muito onerado, a começar pelo seguro de transporte.

Um dos motivos pelos quais as seguradoras podem cobrar alíquotas relativamente baixas dos segurados, importadores e exportadores brasileiros, é exatamente a possibilidade que a lei brasileira oferece de ressarcimento em regresso amplo dos prejuízos indenizados.

Com a limitação, tal possibilidade será negada e consequentemente os riscos majorados, incluindo aí os prêmios dos contratos de seguro.

Dentro da natural cadeia de repasse dos custos, é o consumidor brasileiro quem, no final, arcará com os prejuízos e, às avessas, o próprio erário, já que a balança comercial, em médio prazo será desequilibrada.

Nunca é demais lembrar que a reparação do dano, ampla e integral, é uma garantia constitucional fundamental encartada no artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, cláusula pétrea da Constituição Federal.

Também é importante lembrar que o sistema legal brasileiro, dentro do respeito ao quanto determinado expressamente pela regra constitucional, orienta-se pelo princípio do “neminem laedere”, ou seja, que a “ninguém é dado causar dano a outrem”. Logo, não pode existir no Direito qualquer regra talhada a limitar a responsabilidade do causador do dano.

Também por isso, insisto, a regra da limitação da emenda 56 ao Projeto de Lei do novo Código Comercial é inconstitucional, assim como inconstitucional, além de imoral, é qualquer tentativa de se impor, por norma convencional, norma contratual ou norma legal, a limitação de responsabilidade.

Eis o alerta aos ilustres legisladores, a fim deles tomarem conhecimento dos ardilosos argumentos dos defensores das normas limitadoras de responsabilidade. Tentam travestir o lobo com pelo de cordeiro a fim de enganarem os legisladores e conseguirem o que até hoje não se conseguiu no Brasil: uma regra que beneficie sobremodo um setor absolutamente descompromissado com o país, em detrimento de setores que produzem, criam empregos, recolhem tributos e desenvolvem o país.

Se, porventura, um dia, a regra for instituída, fica o alerta ao Poder Judiciário (que nunca viu com bons olhos da limitação de responsabilidade) para que ele mantenha sua visão sistêmica do Direito e continue a negar validade e eficácia a tal e nociva figura.

Eu, enquanto advogado, insistirei na luta contra a limitação de responsabilidade e antecipo que se um dia ela ganhar o status de regra legal, não pensarei duas vezes em questionar sua constitucionalidade, via controle difuso, bem como sua falta de harmonização ao sistema legal. Paralelamente, entabulo estudos que serão aproveitados no futuro para cobrar as diferenças das tarifações por meio de instrumentos de litígios extracontratuais, alicerçados no conceito de “punitive damage”, a fim de manter sempre vivo o primado da Justiça.

Espero sinceramente que este modesto trabalho possa contribuir para divulgar mais amplamente o assunto e expor o lado que defende, direta e indiretamente, não apenas os próprios e legítimos interesses, mas, também, mesmo que reflexamente, os interesses de muitos e importantes setores da sociedade organizada brasileira, setores que impactam na economia e que ajudam o Brasil e se posicionar melhor no cenário internacional. Espero, ainda, que alegações falaciosas acerca dos supostos benefícios da limitação de responsabilidade sejam desmascaradas e que a verdade venha à tona. Por fim, espero que longa e sólida tradição legislativo-jurisprudencial do Brasil não seja erradamente desprestigiada, pois ela constitui um poderoso mecanismo de calibragem dos elementos econômicos e sempre se revelou muito útil ao país como um todo. Manter as coisas como estão, hoje, é paradoxalmente evoluir e crescer.


Notas

[1] Compendio de Direito Marítimo Brasileiro, São Paulo: editora Saraiva, 1938, p. 200

[2] Cláusula de Não Indenizar, Edição Forense: 1980, p. 112 e 128

[3] Tratado de Direito Privado, Tomo XLV, Ed. Borsoi: Rio de janeiro, 1972, § 4884, n.º 2, p. 143/4

[5] in Contratos, 5ª ed., Forense, Rio, p. 49

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Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique. Limitação de responsabilidade do transportador marítimo: inconstitucionalidade e ilegalidade: O não reconhecimento de qualquer fonte instituidora da limitação de responsabilidade em favor do transportador marítimo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3782, 8 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25747. Acesso em: 29 mar. 2024.

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