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Lei Maria da Penha, violência, medo e amor:

da denúncia ao perdão

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3. POR QUE ALGUMAS MULHERES NÃO DENUNCIAM?

A violência doméstica e familiar contra a mulher, como já exposto anteriormente, veio sendo construída desde os primórdios, sendo vista como uma situação comum um companheiro espancar a sua companheira. Com o advento da Lei Maria da Penha, a maioria absoluta da população brasileira já tem conhecimento dessa lei criada com o objetivo de evitar violências e punir os agressores. De acordo com pesquisas do DataSenado no ano de 2013, 99% das mulheres brasileiras já ouviram falar sobre essa lei, e vale observar que se incluem nesse percentual mulheres de todas as idades, níveis de renda e escolaridade, credo ou raça.

Entretanto, mesmo com todo esse reconhecimento em nível nacional depois de sete anos de vigência da lei, o número de mulheres que denunciam seus agressores continua estável, enquanto que o número de mulheres que sofrem violências domésticas só aumenta. Estudos mostram que mais de 13,5 milhões de mulheres já sofreram algum tipo de agressão, sendo que 65% desse total foram agredidas por seus próprios parceiros de relacionamento, ou seja, por marido, companheiro ou namorado.

A Lei Maria da Penha é reconhecida pela ONU (Organização das Nações Unidas) como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra a mulher (MENICUCCI, 2012). Em contrapartida, a nova edição do Mapa da Violência, elaborada pelo sociólogo argentino Julio Jacobo Waiselfisz, editado pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso) e o Centro Brasileiro de Estudos Latino-americanos (Cebela) produziu um ranking de 84 países elencando as taxas de homicídios femininos de cada um. O Brasil obteve um resultado péssimo, ficando em 7º lugar no mundo onde mais se matam mulheres, perdendo apenas para países como El Salvador, Trinidad e Tobago, Guatemala, Rússia, Colômbia e Belize. (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2012) Comprovando este fato, uma pesquisa brasileira realizada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) no atual ano, mostrou que entre 2007 e 2011, de 100 mil mulheres que sofreram algum tipo de violência no meio doméstico, 5.220 vieram a falecer como resultado da agressão.

Mas qual seria o motivo de uma disparidade tão grande de números? Como um país que é exemplo no texto legal pode ter um dos piores índices de mortes de pessoas do sexo feminino? A resposta mais evidente a essas perguntas é respondida de uma maneira rápida e clara: falta de denúncia.

Mulheres que sofreram violências e que não denunciam os seus agressores são os casos mais comuns na atual sociedade. Do total de mulheres que já sofrerem violência doméstica, cerca de 35% procuraram uma delegacia e oficializaram uma denúncia formal, enquanto o restante preferiu procurar ajuda com familiares, amigos, religião, ou não procurar ajuda nenhuma. (DataSenado, 2013).

Existem muitos motivos para a falta de denúncia por parte das mulheres agredidas contra os seus agressores. A pesquisa do DataSenado mostrou que o principal motivo é o medo do agressor, tendo sido apontado por 74% das entrevistadas.

 Fonte: Pesquisa DataSenado, 2013.

Além destes motivos, outro que impede que muitas mulheres tomem a coragem de denunciar os seus agressores é o preconceito. Leandre Dal Ponte, participante do Projeto Mais Marias (Campanha de Combate à Violência contra Mulher), defende que as mulheres não devem ser preconceituosas com elas mesmas, e sim mostrarem ser cidadãs e terem conhecimento de seus direitos, podendo tanto se autoajudar, quanto ajudar outras companheiras que se encontrem em situação similar à qual ela estava.

“Mas muito pior que agredir qualquer pessoa é o preconceito, pois existem aqueles que se referem a uma vítima dizendo ‘bem feito’, ‘ela merecia’, ‘apanha porque quer’, quando na verdade, para entender, precisamos nos colocar no lugar desta pessoa.” (PONTE, 2013).

Como se percebe, as motivações para a falta de denúncia contra o agressor são das mais variáveis, sendo que a principal consequência dessa ausência de atitude da mulher é a continuação do sofrimento que a acaba prejudicando mais do que se preferir dar um fim a essa situação.

3.1. RELAÇÕES DE AMOR E ÓDIO: MARIDOS VIOLENTOS E MULHERES SUBMISSAS

Os desejos mais comuns de uma mulher são os de encontrar o homem ideal, se casar e constituir uma família. Mas nem sempre esse “conto de fadas” é realizado. Muitas mulheres que sofrem com algum tipo de violência doméstica não apresentam denúncias contra os seus agressores, e além de disso, criam um vínculo de dependência e submissão com os seus companheiros.

Mesmo com todos os avanços da Constituição Federal, que equiparou juridicamente o homem com a mulher, a cultura do patriarcalismo ainda existe na sociedade. A desigualdade sociocultural da mulher perante o homem faz com que ela seja discriminada e dominada pelo homem, que se vê como um ser superior e mais forte.

A mulher sempre teve o papel de dona de casa, mãe e cuidadora dos filhos, com a mínima possibilidade de poder conviver no mundo externo ao da sua residência, enquanto que ao homem cabia o papel de trabalhar fora para sustentar a casa sozinho. Com esse modo de vida, era natural que se forma entre o casal uma relação de dominação/submissão, na qual a mulher tem apenas a função reprodutiva e doméstica, enquanto que o homem é o verdadeiro responsável pelo bem estar da casa e da família.

A submissão da mulher perante o homem é resultado de um ciclo que se inicia com os desentendimentos entre o casal, levando-os à indiferença e a críticas constantes quanto ao modo de comportamento da companheira.

“O desejo do agressor é submeter a mulher à vontade dele; tem a necessidade de controlá-la. Assim busca destruir a sua autoestima. As criticas constantes fazem ela acreditar que tudo que faz é errado, de nada entende, não sabe se vestir nem se comportar socialmente. É induzida a acreditar que não tem capacidade para administrar a casa e nem cuidar dos filhos. A alegação de não ter ela bom desempenho sexual leva ao afastamento da intimidade e à ameaça de abandono.” (DIAS, 2007, p. 18).

Percebe-se que, nesses casos, a mulher se encontra em um abismo na sua relação conjugal, ao mesmo tempo em que ela odeia o marido por agredi-la fisicamente, psicologicamente ou sexualmente, e sente vontade de dar um fim nessa terrível situação, denunciando-o, ela também o ama ou pensa que ama esse homem que a violenta, e prefere resistir pensando que será a última vez que ele a agrediu do que buscar uma punição justa para seu caso.

3.2. A FAMÍLIA E A CONSTRUÇÃO DO PSICOLÓGICO DO AGRESSOR E DA AGREDIDA

Na violência doméstica ou familiar, na grande maioria dos casos, o sujeito ativo se concentra na figura masculina e o passivo na feminina, sendo importante salientar que o oposto também pode ocorrer, colocando a mulher no papel de dominadora e o homem na de submisso. Mas será que as únicas pessoas envolvidas nessa situação são o casal? Será que mais alguém pode sair prejudicado?

Os eventuais filhos desse casal são vítimas diretas da violência, e, por receberem os reflexos da relação violenta entre os pais, acabam por viver em um ambiente hostil e pouco saudável para o seu desenvolvimento. Pesquisas feitas por pesquisadores norte americanos (CAPALDI, KIM, PEARS, 2009), que buscaram relacionar o fenômeno da violência contra o parceiro com o fenômeno da violência contra a criança, mostraram que mulheres que são constantemente vítimas de violências, têm maiores probabilidades de virem a agredir seus filhos. O resultado indicou que crianças em cuja família ocorre violência contra o parceiro têm uma probabilidade de duas a quatro vezes maior de serem vítimas de maus-tratos, quando comparadas com crianças cujas famílias não vivenciam esse fenômeno. (AFFONSECA, WILLIANS, 2013).

Outra consequência importante na formação das crianças que crescem em um lar violento é a de que, essas crianças, tendem a procurar as mesmas características de seus genitores em seus futuros parceiros. Uma menina que foi criada vendo a sua mãe ter uma relação de dominação / submissão com seu pai, crescerá imaginando que esse tipo de relação é a que constitui uma família, fazendo-a procurar, mesmo que inconscientemente, um parceiro que a trate igualmente como o pai tratava a sua mãe.

“Agora uma mulher que associa casamento, “amor”, e relacionamento a violência irá gerar o ciclo de violência onde a vítima dependente sempre irá buscar o carinho do agressor que promete mudar de atitude.” (CABETTE, PAULA, 2013).

Além das consequências geradas nos filhos diretamente, há também as consequências indiretas, que muito provavelmente passam a aparecer nas crianças quando forem mais velhas.

A sociedade de hoje como um todo, tem como característica o uso constante da violência para rebater qualquer desentendimento existente. Mas, será que toda essa propensão à violência surgiu sem motivo nenhum na vida dessas pessoas? Maria Berenice Dias (2007, p. 16), disserta sobre esse assunto nos ensinando que a violência doméstica é o germe da violência que está assustando a todos. A autora também diz que crianças que convivem com a violência desde pequenas, crescem com a tendência de achar que é normal fazer o uso da força física, e, além disso, como na grande maioria das vezes a mãe não consegue denunciar o marido, os filhos acabam por desenvolver um pensamento de que a violência é um ato natural de amor, já que a impunidade é algo cotidiano em suas vidas.

Além das consequências sofridas pelos filhos do casal, pode-se dizer que a mulher vitimizada é a que mais sai prejudicada. Agressões físicas, psicológicas e sexuais fazem com que sequelas graves apareçam na vida da mulher até a sua morte.

 “Dentre os sintomas apresentados pelas mulheres vítimas de violência, destacam-se: dor crônica, visita frequente ao médico, uso/abuso de medicamentos, uso/abuso de álcool, histórico de pensamentos/tentativas de suicídio, depressão moderada ou grave, suspeita de maus-tratos infantis como mãe, problemas para dormir (insônia, pesadelos), agitação, ansiedade ou nervosismo, pensamento confuso, dificuldade de tomar decisões, distúrbios sociais, ausência de contato visual e visão rígida dos papéis de homem/mulher” (SIQUEIRA, SOUZA apud D’AFFONSECA, WILLIANS, 2013).

Entre os homens, polo ativo da violência doméstica, as razões para o uso da força física contra suas companheiras são as mais diversas. De acordo com Rosa, Boing, Buchele, Oliveira e Coelho (2013), existem três justificativas dadas pelo homem para que violente sua companheira: Ela, Eu, e Outros.

A categoria “Ela” foi relacionada com a identificação de atitude inadequada por parte da mulher que, segundo o homem, agia de maneira autoritária para com o companheiro. A categoria “Eu” evidenciou-se quando o homem agressor explicitava irritação com a companheira e/ou considerava ofensa quando ela reclamava, geralmente por ele estar bebendo no bar. Na categoria “Outros” os sujeitos atribuíram a responsabilidade de suas ações a alguém externo ao casal, levando-os à atitude que se caracterizava como agressão. Por exemplo, quando o sujeito relatava que a discussão ocorria por conta da presença de uma amiga, entende-se que se referia ao “outro” como desencadeador ou responsável pela agressão.

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Sobre isso, Carla Jamarino Serraglio, Cristien Serraglio, e Luciana A. P. de Castro expõem o seguinte:

 “A razão maior das agressões contra mulheres se justifica pelo álcool, droga, desemprego, ciúmes, insegurança ou impotência e pelo próprio machismo, diante desses fatores os homens cometem a agressão como uma forma de tentar se manter superior.” (SERRAGLIO, SERRAGLIO, CASTRO, 2013).

Constata-se que tanto a formação do psicológico da mulher quanto o de sua família é totalmente abalado quando há uma relação de violência doméstica entre o casal genitor, o que nos mostra que além da proteção jurídica dada pela promulgação da Lei Maria da Penha, é necessário que haja um severo acompanhamento psicológico para diminuir as sequelas sofridas pela família.


4. A SOCIEDADE MACHISTA E A IMPOSIÇÃO QUE A MULHER SOFRE PARA MANTER O CASAMENTO

Desde épocas remotas e até os dias atuais, a cultura do patriarcalismo é a que prevalece mesmo com as equiparações feitas entre o homem e a mulher. Em consequência disso, o homem se tornou o ser mais importante da família, tornando a sociedade, uma sociedade machista.

A mulher, considerada o sexo frágil, sempre foi educada desde a infância para ser a perfeita dona de casa. Aquelas que adentram ao mercado de trabalho são exceções, sendo que essa iniciativa parte mais da necessidade econômica de sua família, do que propriamente da consciência da igualdade entre os sexos. E mesmo aquelas que possuem independência econômica ficam ligadas ao homem por outros motivos, por exemplo, tendo uma dependência psicológica, necessitando de uma figura masculina para desenvolver-se plenamente. (FERREIRA BRASIL, 2013).

Dessa concepção de dependência feminina é que surge o conceito de machismo e consequentemente uma sociedade machista. Rebeca Ferreira Brasil expõe a sua opinião sobre essa situação da seguinte forma:

“O machismo, assim, é fomentado também pela própria mulher, que vê, muitas vezes, o homem como ser superior e, consequentemente, qualquer relação afetiva transforma-se em objetivo principal de sua vida. Logo, o casamento para a mulher tornou-se obrigação, avaliação de sua vida como um todo. Se o casamento é satisfatório, ela está desempenhando bem sua função na sociedade, entretanto, se o matrimônio está em declínio ou é desfeito, tal fato é considerado como derrota pessoal para a mulher.” (FERREIRA BRASIL, 2013).

No que concerne ao contexto da violência doméstica e familiar, o machismo é fator essencial para a prática de agressões, enquanto que a culpa que a mulher sente por ter feito o seu casamento não dar certo é fator para a falta de oferecimento de denúncia às autoridades competentes. Os homens que agridem suas companheiras, na grande maioria dos casos, apresentam um pensamento machista e desenvolvem um sentimento de posse sobre a mulher, acreditando que ela é apenas um objeto de complementação e satisfação em sua vida. Já a mulher sente o peso da culpa e da frustração por não ter conseguido fazer o seu casamento dar certo. Esta, que foi educada para cumprir o papel de mulher bem casada, se sente incapaz de encarar o fato de não ter feito uma boa escolha.

Por vergonha e constrangimento, a mulher acaba por esconder todas as agressões que sofre do companheiro, pois ela tem a esperança de que ele possa mudar com o tempo, mas ao contrário disso, a situação se complica, e por já estar confinada em um ciclo violento, se vê sem saída.

A visão que a sociedade tem do casamento falho foi sendo construída desde as origens das religiões, nas quais era mais aceitável o cônjuge continuar vivendo com o outro cônjuge adúltero do que se separar. Com o advento da Lei do Divórcio em 1977, a mulher ganhou mais liberdade para tomar decisões que antes não podia. A possibilidade de se divorciar sem ter que passar pelo tempo de prévia separação judicial por mais de um ano ou de separação de fato comprovada por mais de dois anos, fez com que a mulher pudesse escolher um futuro diferente para ela e seus filhos.

Entretanto, mesmo com todos esses avanços, o rito do matrimônio continua sendo exaltado pela cultura atual. As crenças religiosas que vetam o segundo casamento enquanto o ex- cônjuge ainda for vivo, contribuem com o pensamento de que a pessoa que aceita se casar novamente não é digna de conviver no meio religioso, e consequentemente, contribui com o julgamento feito a ela, sendo condenada ao repúdio por ter desfeito seu primeiro casamento.

Portanto, para a mulher que é vitima de violência doméstica e familiar, o fato de ter um casamento falho é pior do que manter uma relação na qual é violentada, já que é preferível ser vista como uma boa esposa e dona de casa, do que ser vista pela sociedade como a mulher separada que apanhava do marido.

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Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Larissa Ribeiro da Silva

Bacharelanda do 6o. Período de Direito da Unisal - Lorena-SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos ; SILVA, LARISSA RIBEIRO DA, Larissa Ribeiro Silva. Lei Maria da Penha, violência, medo e amor:: da denúncia ao perdão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3788, 14 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25829. Acesso em: 29 mar. 2024.

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