A ação do mandado de segurança será cabível para a proteção de direito líquido e certo, que não seja tutelado por habeas corpus ou habeas data, e sempre que o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (inciso LXIX do art. 5º da CF/88)[1].
A Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009 revogou a Lei nº 1.533, de 31 de dezembro de 1951, oportunidade em que passou a disciplinar o mandado de segurança individual e coletivo no plano infraconstitucional. Tal mandamento legal tem por escopo regulamentar e estabelecer os parâmetros para a utilização de um dos remédios constitucionais de suma importância colocado a disposição do cidadão.
Estabelecidas tais premissas, cumpre observar que por se tratar de eventual prática de ilegalidade ou abuso de poder por autoridade pública, desde a vigência da antiga Lei que regulava o instrumento do mandado de segurança[2], já se impunha a necessidade de participação do órgão ministerial em ações de tal jaez, notadamente como fiscal da lei (custos legis).
Ora, o Ministério Público, nos termos do art. 127 da CF/88 é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Ainda no parágrafo primeiro do referido dispositivo extrai-se os princípios institucionais do Ministério Público que são a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
A LC nº 75/93[3] que trata e regulamenta o Ministério Público da União também destaca suas funções e princípios institucionais, além da possibilidade de atuação nos feitos que justifique sua intervenção.
A atuação do órgão ministerial como fiscal da lei é extraída do disposto no inciso IX, do art.129 da CF/88[4], e vem sedimentada no plano infraconstitucional conforme consta dos arts. 83 e 84, ambos do CPC[5].
Aliás, será eivado de nulidade o processo nas situações em que o Ministério Público deixar de ser intimado para acompanhar o feito no qual deveria intervir, nos termos do art. 246, parágrafo único do CPC[6].
Ora, a novel Lei do Mandado de Segurança[7] manteve a exigência de abertura de vista para intervenção ministerial, conforme se observa de seu art. 12:
Art. 12. Findo o prazo a que se refere o inciso I do caput do art. 7o desta Lei, o juiz ouvirá o representante do Ministério Público, que opinará, dentro do prazo improrrogável de 10 (dez) dias.
Parágrafo único. Com ou sem o parecer do Ministério Público, os autos serão conclusos ao juiz, para a decisão, a qual deverá ser necessariamente proferida em 30 (trinta) dias.
A redação é clara! Não existe qualquer espaço para juízo de valor do magistrado acerca da necessidade ou não da intervenção ministerial no feito. Ao magistrado cabe tão somente a abertura de vista ao membro ministerial, que por sua vez analisará o conteúdo do pedido e causa de pedir do mandado de segurança sob sua apreciação, para então exarar manifestação se ostenta interesse público primário ou não, que justifique sua intervenção. Isso porque, muitas vezes as questões sob discussão no mandado de segurança restringem-se a querelas estritamente patrimoniais (geralmente questões de índole tributária). Tanto é que a Recomendação nº 16/2010 da lavra do próprio Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, em seu art. 5º apontou como desnecessária a intervenção ministerial meritória em determinadas demandas, como no caso do mandado de segurança, assegurando, porém a abertura de vista ao órgão ministerial em respeito ao princípio da independência funcional[8].
Importante frisar o disposto no parágrafo único do art. 12 da Lei nº 12.016/09, ao estabelecer que “com ou sem parecer do Ministério Público, os autos serão conclusos ao juiz para decisão”. Assim, percebe-se que o ponto nodal é realmente a imprescindível abertura de vista para ouvir o órgão ministerial em sede de mandado de segurança. A atribuição em se verificar se o membro do MP deve ou não se manifestar/intervir nos autos é exclusiva dele, e de mais ninguém, principalmente em observância ao princípio constitucional da independência funcional.
O juiz cumpre seu dever ao abrir vista ao MP, este cumpre o seu exarando ou não parecer após a abertura de vista!
Ocorre que, contrariando o mandamento da Lei nº 12.016/09, art. 12, observa-se que em inúmeros casos os magistrados (principalmente em sede de primeiro grau) não têm franqueado vista dos autos para oferecimento de parecer pelo Ministério Público como fiscal da lei.
O fundamento para tanto tem se estribado no fato de que em razão da já conhecida posição de determinado membro ministerial no sentido de ausência de interesse público primário em relação a pontual questão, o juízo a quo simplesmente suprime a abertura de vista e profere sentença, desde logo, ao total arrepio da lei!
Tal procedimento que vem se concretizando cada vez mais por costume e pautado no princípio da celeridade processual não pode ser admitido! O magistrado não pode ignorar o princípio da legalidade ao qual estão vinculados os atos processuais. Em primeiro, porque há previsão legal expressa impondo a abertura de vista para se ouvir o órgão ministerial. Em segundo, já que não importa se o membro do MP já ostenta determinada posição acerca da ausência de interesse quanto a determinado tema ou questão posta em sede de mandado de segurança. Em obediência ao princípio constitucional da legalidade é medida de rigor que se esclareça que ele (membro do MP) e só ele, revela atribuição para decidir o que é questão de interesse público capaz de garantir sua intervenção e o que não o é. Este juízo de valor não pode ser suprimido e/ou capitaneado pelo magistrado.
Permitir que o juízo a quo aja desta forma, pode causar a repetição de tal postura em inúmeros outros feitos. Pode-se, inclusive, citar o provérbio que diz “O uso do cachimbo faz a boca torta”[9], ou seja, ao se repetir um erro inúmeras vezes, acaba-se consolidando-o no tempo.
A supressão de vista ao órgão ministerial é uma afronta não só ao princípio constitucional da legalidade, mas também ao princípio da independência funcional (Constituição, art. 127, § 1º). Explica-se: é possível que determinado membro do MP esteja em férias, licença ou simplesmente tenha sido promovido. Ora, nesta situação outro órgão ministerial assumirá a titularidade do feito, sendo medida que se impõe assegurar a abertura de vista do mandado de segurança, justamente porque o entendimento do novo titular/substituto é autônomo e independente em relação ao anterior. Portanto a abertura de vista trata-se de prerrogativa do membro do MP que como fiscal legal decidirá qual caminho tomar (intervenção ou não intervenção).
Além disso, conforme já apontado acima, a ausência de intimação do órgão ministerial quando a lei a prevê é causa de nulidade absoluta de todos os atos supervenientes ao momento em que a intimação deveria ter ocorrido, como se dessume do art. 84, do CPC.
Ademais, as causas e circunstâncias de determinado mandado de segurança, embora tratando do mesmo assunto (um determinado tributo, por exemplo), podem não ser iguais, e geralmente não o são. Assim, se uma determinada autoridade agiu com abuso de poder, prevaricação, ou atos que configurem uma improbidade administrativa, somente o membro do MP pode e deve tormar conhecimento disso e promover a responsabilidade cível ou criminal do responsável, fugindo tais iniciativas totalmente ao atuar do magistrado.
As causas podem até ser as mesmas, mas inúmeras circunstâncias são diversas, daí o juiz não poder falar pelo membro do MP, até por não ser essa sua atribuição.
Destarte, a intimação posterior à sentença não supre a nulidade por inexistência de abertura de vista para manifestação antes da sentença. Isto porque, trata-se de vício insanável, impossível de convalidação, já que estamos diante de uma nulidade (questão de ordem pública), a qual pode ser arguida a qualquer momento e em qualquer grau de jurisdição. Até porque não é função do magistrado distorcer a lei, quase que fundando uma outra, onde a vista ao MP seria “posterior à sentença”, o que não é o caso, obviamente.
Neste sentido, confira-se aresto que se colaciona abaixo:
DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INOMINADO EM APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SUPRESSÃO PELO JUIZO A QUO DA ABERTURA DE VISTA AO MINISTÉRIO PÚBLICO. ANULAÇÃO DA SENTENÇA. ALEGAÇÃO DE VÍCIO SANÁVEL E DE AUSÊNCIA DE INTERESSE PÚBLICO. RECURSO DESPROVIDO. 1. Encontra-se pacificada a jurisprudência no sentido da nulidade do feito quando suprimida a oportunidade para manifestação do Ministério Público em mandado de segurança. 2. Formalidade essencial à validade do processo, não podendo ser suprimida a vista dos autos, ainda que o Ministério Público opine, depois, pela falta de interesse público para sua manifestação quanto ao mérito. Mesmo que não seja proferido parecer de mérito, é essencial a abertura da oportunidade de fiscalização do feito pelo Ministério Público, não podendo tal função ser exercida, em segundo grau, pela Procuradoria Regional da República. 3. Agravo inominado desprovido. (TRF3, A MS nº 288397, Terceira Turma, Relator Juiz Carlos Muta, DJU de 30/01/2008, p. 390).
Portanto, é imprescindível a abertura de vista ao órgão ministerial antes da sentença em sede de mandado de segurança, porque a lei presumiu a existência de indício de interesse público nessa modalidade de demanda. Por outro lado, isto não significa que o parquet deva sempre se manifestar sobre o mérito da causa; pode não fazê-lo, se julgar que o assunto versado na lide não afeta interesse individual ou social indisponível. Mas apenas o órgão ministerial pode declarar se determinado assunto interessa ou não ao Ministério Público, sendo absolutamente defeso ao magistrado não remeter os autos ao órgão ministerial por julgar que determinado tema não lhe interessa.
Não pode o juiz ser bonzinho/expedido às custas da legalidade! Mesmo porque juiz não é para ser bonzinho, mas para cumprir a lei! Aliás, essa é uma “bondade” que só faz mal à parte e à sociedade como um todo.
Notas
[1] LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
[2] Lei nº 1.533, de 31 de dezembro de 1951:
(…)
Art. 10 - Findo o prazo a que se refere o item I do art. 7º e ouvido o representante do Ministério Público dentro em cinco dias, os autos serão conclusos ao juiz, independente de solicitação da parte, para a decisão, a qual deverá ser proferida em cinco dias, tenham sido ou não prestadas as informações pela autoridade coatora.
[3] Art. 1º O Ministério Público da União, organizado por esta lei Complementar, é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis.
Art. 4º São princípios institucionais do Ministério Público da União a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
(...)
VI - exercer outras funções previstas na Constituição Federal e na lei.
§ 1º Os órgãos do Ministério Público da União devem zelar pela observância dos princípios e competências da Instituição, bem como pelo livre exercício de suas funções.
§ 2º Somente a lei poderá especificar as funções atribuídas pela Constituição Federal e por esta Lei Complementar ao Ministério Público da União, observados os princípios e normas nelas estabelecidos.
(...)
Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:
(...)
XV - manifestar-se em qualquer fase dos processos, acolhendo solicitação do juiz ou por sua iniciativa, quando entender existente interesse em causa que justifique a intervenção;
[4] Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.
[5] Art. 83. Intervindo como fiscal da lei, o Ministério Público:
I - terá vista dos autos depois das partes, sendo intimado de todos os atos do processo;
II - poderá juntar documentos e certidões, produzir prova em audiência e requerer medidas ou diligências necessárias ao descobrimento da verdade.
Art. 84. Quando a lei considerar obrigatória a intervenção do Ministério Público, a parte promover-lhe-á a intimação sob pena de nulidade do processo.
[6] Art. 246. É nulo o processo, quando o Ministério Público não for intimado a acompanhar o feito em que deva intervir.
Parágrafo único. Se o processo tiver corrido, sem conhecimento do Ministério Público, o juiz o anulará a partir do momento em que o órgão devia ter sido intimado.
[7] Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009.
[8] Recomendação nº 16/10 do CNMP. Art5º Perfeitamente identificado o objeto da causa e respeitado o princípio da independência funcional, é desnecessária a intervenção ministerial nas seguintes demandas e hipóteses:
(...)XXII - Intervenção em mandado de segurança.
[9]http://www.citador.pt/proverbios.php?proverbio=O_uso_do_cachimbo_faz_a_boca_torta&op=10&id=4331 acessado em 11.11.13.