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Retroatividade da Lei nº 11.719/08: imprescindibilidade

19/11/2013 às 10:38
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Análise da imprescindibilidade de retroação da Lei nº 11.719/08, diante da possibilidade de beneficiamento do réu, sob pena de afronta aos princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da isonomia e da dignidade da pessoa humana.

A Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, trouxe substanciais modificações a determinados dispositivos do Código de Processo Penal, sobretudo no que concerne aos procedimentos.

O artigo 531, modificado pela novatio legis supramencionada, trata do procedimento comum sumário e dispõe que “na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 30 (trinta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado e procedendo-se, finalmente, ao debate”.

O novo artigo 400, relativo ao procedimento comum ordinário, passou a estatuir que “na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado”.

A nova redação do artigo 411, que trata da instrução preliminar dos processos da competência do Tribunal do Júri, determina que “na audiência de instrução, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado e procedendo-se o debate”.

Os artigos 473 e 474, que cuidam da instrução em Plenário, também estabelecem que o acusado, se presente, será interrogado após a tomada das declarações da vítima, da inquirição das testemunhas de acusação, das de defesa e depois de eventuais acareações, reconhecimento de pessoas e coisas e esclarecimento dos peritos, bem como a leitura de peças que se refiram, exclusivamente, às provas colhidas por carta precatória e às provas cautelares, antecipadas ou não repetíveis.

As alterações impõem a retroatividade.

É cediço, na doutrina e na jurisprudência, que em matéria processual vigora o princípio do efeito imediato, o conhecido tempus regit actum, pois “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior” (CPP, art. 2º).

Entretanto, não há como simplesmente desconsiderar a existência das normas processuais penais materiais, as quais, por força de seus reflexos no ius puniendi, tornam obrigatória a observação não só da regra inserta no artigo 2º, do Código de Processo Penal, mas também dos princípios constitucionais da ultratividade e retroatividade da lei mais benigna (CF, artigo 5º, incisos XXXIX e XL).

Em outras palavras, as normas mistas – que abrigam naturezas diversas, de caracteres penal e processual penal – fazem exceção e devem retroceder diante de possível favorecimento material do réu. Entretanto, em hipótese diversa, só podem ser aplicadas a casos futuros.

Há, ainda, os que sustentam, com propriedade e consistente substrato jurídico, que toda matéria processual é, em última análise, lei penal em sentido lato.

O que importa, em essência, é que o exame da quaestio deve partir do ideário constitucional, no qual é ínsito o espírito garantista, consagrando o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

Em matéria de hermenêutica constitucional, bom se diga, a exegese não atua de baixo para cima, mas progressivamente, com escalonamento, do topo para a base, infundindo a soberania dos ditames constitucionais.

Assim, a partir dessa construção (única possível), obtém-se a extração do efetivo significado e do real alcance da lei.

Não é preciso lembrar que um Estado Democrático de Direito não se coonesta com ordenamento jurídico dissonante da Constituição Federal.

Ademais, oportuno destacar que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, prescreve, no seu artigo 8º, item 2, que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; (c) concessão ao acusado de tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;”.

Para emprestar delineamento prático à conclusão acerca da imprescindibilidade do cunho retroativo da Lei nº 11.719/2008, tome-se como exemplo o interrogatório, ato que foi deslocado do início para o fim de toda a instrução probatória.

O fato de a lei nova prever a realização do interrogatório – meio de prova e eminentemente de defesa – depois da produção de toda a prova acusatória gera, indubitavelmente, mais um recurso a garantir a concretização do princípio constitucional da ampla defesa – direito fundamental de todo cidadão –, na medida em que assegura ao réu a dilatação dos mecanismos indispensáveis a oportunizar a demonstração de sua inocência.

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Ressalte-se, a propósito, que a discussão sobre a natureza jurídica do interrogatório é longeva.

A Lei dos Juizados Especiais, referente a delitos de menor potencial ofensivo, de há muito proporciona ao acusado a última palavra, compatibilizando, desde 1995, seu rito procedimental com os princípios constitucionais e basilares do direito processual penal.

Por isso tudo, verificado no contexto das circunstâncias atuais da situação concreta, a possibilidade de favorecimento, de qualquer forma, por lei posterior, penal ou processual material, o beneficiamento dali oriundo deve ser estendido a casos pretéritos, ainda mais quando o novel diploma for incorporado ao ordenamento jurídico durante o trâmite da ação penal.

Paralelamente, também não se pode desprezar que o tolhimento da oportunidade de o acusado ser ouvido por último, calcado na alegação de que fato se deu antes do advento da Lei nº 11.719/2008, implica, inevitavelmente, em afronta ao princípio constitucional da isonomia.

Isso porque se garantirá maior amplitude de defesa aos que cometerem crime após a vigência da Lei nº 11.719/2008, em detrimento daqueles que assim agiram antes da modificação legal.

Nesse quadrante, e constatada a paridade de circunstâncias, inafastável a adoção de tratamento idêntico.

Aristóteles já afirmava, com notória procedência, que a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, deixando o cerne da questão voltado para a aferição de quais diferenças podem ser erigidas, validamente, em critérios distintivos justificadores de tratamentos jurídicos díspares.

E, para que as diferenciações não possam ser consideradas discriminatórias, evitando-se que se tornem fonte de privilégios e injustiças, mostra-se inadequada qualquer discricionariedade, em razão da necessidade de justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida apreciada, devendo estar presente, nessa linha, legítima relação de proporcionalidade entre os meios empregados e o fim perseguido, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos.

Não se vislumbra, na conjuntura aqui empregada como exemplo, elemento diferencial válido para a adoção de tratamento desigual entre os que perpetraram delito antes e depois da Lei nº 11.719/08.

Cabe destacar, conforme precisamente assentado pelo mestre Frederico Marques, que ao juiz cabe “...velar pela Constituição e tornar efetivos os postulados fundamentais com que ela garante e proclama os direitos do homem” (in “Tratado de Direito Penal”, Ed. Saraiva, 2ª edição, 1964, vol. 01, pág. 210).

Não fosse o bastante, é indiscutível que a negação de qualquer beneficiamento contido em lei nova aos acusados ensejará desrespeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Com tal quadro, assentada a imprescindibilidade da retroatividade das normas processuais penais materiais e visando, ainda, evitar desnecessárias alegações de nulidade, de rigor a afetação da Lei nº 11.719/08 a todos os feitos em andamento, inclusive os de instrução iniciada, sob pena de ferimento aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da isonomia e da dignidade da pessoa humana.

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Sobre o autor
Diogo Alexandre Restani

Assistente Jurídico. Especialista em Direito Penal, pós-graduado pela EPM

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RESTANI, Diogo Alexandre. Retroatividade da Lei nº 11.719/08: imprescindibilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3793, 19 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25883. Acesso em: 2 nov. 2024.

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