A requisição administrativa de bens e serviços no âmbito da saúde.

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01/12/2013 às 18:14
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Este artigo aborda o instituto da requisição administrativa na saúde, sendo evento por vezes recorrente na realidade de muitos entes estatais que precisam intervir em hospitais e unidades de saúde para garantia da continuidade de serviços essenciais.

A saúde, que mais diretamente nos importa considerar, é um direito social (art. 6º), "direito de todos" (art. 196 da CF). Sendo, além disso, um "dever do Estado" (art. 196), a responsabilidade pela oferta de serviços de saúde a toda população cabe a ele por inteiro, mantida sempre sua responsabilidade, ainda quando, por delegação, se verifica o concurso da iniciativa privada. (Antonio Augusto Mello De Camargo Ferraz e Antonio Hermam De Vasconcelos e Benjamim, in O Conceito de Relevância Pública na Constituição Federal)


1 – Introdução.

A execução de serviços públicos de saúde é, talvez, uma das mais ricas e ao mesmo tempo, certamente, das mais complexas atividades decorrentes da natureza humana socialmente organizada. Tantas são as normas, as técnicas e as necessidades da sociedade com relação a esse tão caro bem que é a saúde, enquanto faceta do próprio direito à vida.

A discussão envolvendo a prestação de serviços públicos de saúde se torna ainda mais intrincadas quando há a participação da iniciativa privada, tanto pela atuação complementar do terceiro setor, composto por entidades sem fins lucrativos, quanto pela atuação suplementar das entidades lucrativas.

Embora exercitado por particulares, o serviço público de saúde, de titularidade e prestação estatais não exclusivos, acaba por manter regime jurídico peculiar, encetado pela supremacia do interesse público e pela relevância desses serviços.

Sendo assim, nos casos em que há ameaça ou solução de continuidade dos serviços de saúde, cabe ao Estado valer-se da figura da requisição administrativa, intervindo na propriedade, ou mais propriamente em bens e serviços particulares, observada e ponderada a medida diante da multiplicidade de casos concretos que acorrem, que vão desde dificuldades financeiras sentidas por hospitais privados até renúncias de corpos clínicos e diretivos, ocasionando verdadeira acefalia administrativa, com conseguinte perigo de solução de continuidade desses serviços públicos relevantes, a demandar pronta e eficiente resposta estatal.

Sendo assim, colocam-se como principais instrumentos normativos balizadores da situação ora submetida os institutos do direito administrativo, a Constituição Federal da República Federativa do Brasil, a Lei Federal nº. 8.080/1990, a Lei Estadual nº. 10.083/1998, a Lei Complementar Estadual nº. 791/1995 e a Lei Estadual nº. 10.241/99.


2 – Da Intervenção do Estado na Propriedade Privada.

O direito à propriedade, observada sua função social, é reconhecido pela Constituição Federal em seu art. 5º, incisos XXII e XXIII também inserido como um dos princípios da ordem econômica, consoante artigo 170, inciso III da Carta Magna. Portanto assegura-se à existência da propriedade como instituto político e jurídico amplo, embora, limitado.

Essa limitação decorre, sobremaneira, para fins de concretização da função social da propriedade e diante da supremacia do interesse público sobre o particular, justificando a existência do instituto da intervenção na propriedade privada, pelo Estado, enquanto ação estatal legal, legítima e apta a ajustar a existência e/ou o uso da propriedade.

A Constituição ao mesmo tempo em que garante o direito a propriedade condiciona o instituto ao atendimento da função social (art. 5º, XXIII). Já em seu art. 182, § 2º, a propriedade urbana cumpre a função social quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, isto é, haverá situações em que o plano diretor do Município entrará em rota de colisões com interesses do proprietário.

A intervenção estatal pode se dar de modo restritivo, quando são impostas restrições ou condições à utilização da propriedade, mas sem sua supressão do seu titular (servidão administrativa, requisição, ocupação temporária, limitações administrativas e tombamento); ou supressivo, quando há transferência da titularidade da propriedade, que é definitiva ou provisoriamente conferida ao Estado (desapropriação).

Diante do tema a que nos propomos, interessa-nos o exame das modalidades de intervenção meramente restritivas ou não supressivas da propriedade, mais especificamente em sua modalidade da requisição administrativa.

Eis que ao Poder Público é licito, assim como aos entes das demais esferas de governo, valer-se dos poderes interventivos na propriedade estabelecendo que possa ser imposta ao proprietário a obrigação de promover o adequado aproveitamento da propriedade.


3 – Da Requisição da Propriedade.

A requisição administrativa é o instrumento de intervenção estatal mediante o qual, em situação de perigo público iminente, o Estado utiliza bens móveis, imóveis ou serviços particulares com indenização ulterior, se houver dano.

Trata-se de instrumento unilateral de gestão pública, de utilização coativa de bens ou serviços particulares pelo Poder Público, por ato de execução imediata e direta da autoridade requisitante, mediante indenização ulterior condicionada à ocorrência de dano, para atendimento de necessidades coletivas prementes e transitórias, sob pena de perigo público.

Essa modalidade de restrição ao direito de propriedade, aparentada com a desapropriação, está presente no direito nacional desde o século XIX, através de lei aprovada em 1826. Foi então incluída no Código Civil de 1916 e desde 1934 está presente em todas as Constituições Federais. Durante todo esse período, a requisição sempre tida como aplicável apenas à propriedade particular.

A requisição administrativa pode ser civil ou militar. A requisição militar objetiva o resguardo da segurança interna e a manutenção da soberania nacional, diante de conflito armado, à saúde e aos bens da coletividade, diante de inundação, incêndio, sonegação de gêneros de primeira necessidade, epidemias, catástrofes etc; estando prevista no ainda vigente Decreto-Lei nº 4.812/1942. Não obstante, há na atual Constituição, fundamento para ambas as modalidades, mediante previsão expressa da ferramenta estatal no artigo 5º, inciso XXV, da Carta Política, prescrevendo que nos casos de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização posterior, se houver dano.

Segundo ensina José dos Santos Carvalho Filho, a finalidade da requisição:

“... é sempre de preservar a sociedade contra situações de perigo público iminente. [...] A indenização pelo uso dos bens e serviços alcançados pela requisição é condicionada:o proprietário somente fará jus à indenização se a atividade estatal lhe tiver provocado danos. [...] o ato administrativo que a formaliza é auto-executório e não depende, em conseqüência, de qualquer decisão do judiciário. [...] só não será legítima se não estiver configurada a situação de perigo mencionada na Constituição. Nesse caso pode o proprietário recorrer ao judiciário para invalidar o ato de requisição. [...] a apreciação, todavia, há de cingir-se ao exame da legalidade do ato, e não aos aspectos de avaliação reservados ao administrador. Se falta o pressuposto do perigo público iminente, por exemplo, cabe ao Judiciário invalidar o ato por vício de legalidade. A extinção da requisição se dará tão logo desapareça a situação de perigo público iminente. Por essa razão, a requisição é de natureza transitória, sabido que aquela situação não perdurará eternamente.” [1]

Conforme leciona Petrônio Braz:

“...interesses sociais de maior vulto, que necessita de bens para solucionar situações urgentes, imprevistas e transitórias, em casos de calamidade pública oficialmente declarada, estado de sítio, comoção intestina ou guerra.”[2]

Assim, nos casos de emergência ou calamidade pública reconhecida oficialmente, por decreto municipal, há possibilidade de requisição de bens particulares assegurada pela CF – art. 5º, XXV -, já que o interesse público se sobrepõe a do privado em situações de iminente perigo para a comunidade, ensejando requisição de bens, sem pagamento pela utilização dos mesmos, salvo se houver dano. Além disso, a requisição está fundamentada no artigo 1.228, § 3º, do Código Civil, e no artigo 15, inciso XIII, da Lei n. 8080/90, incidindo, pois, quando presente situação de perigo público iminente, assim avaliada pelo administrador.

A invalidação do ato de requisição, por parte do Poder Judiciário, ainda que ausentes um dos seus pressupostos legais de validade é vista com certas reservas. Isso porque não cabe ao Judiciário adentrar na valoração do conteúdo do ato que declara a situação de perigo iminente, substituindo, de tal modo, o administrador.

Pode, porém, o juiz, avaliar tão somente a legalidade do ato, ou seja, se estão presentes os permissivos de legalidade, porquanto a instituição da modalidade interventiva é ato, em regra auto-executório por parte do ente estatal. Assim, somente se a ilegalidade ou ilegitimidade repousar sobre a existência de perigo público, ou no tocante à competência da autoridade requisitante, ou na presença de finalidade de interesse público ou ainda na obediência ao procedimento aplicável é que será possível o controle judicial.


4 – Do Direito à Saúde.

A Carta da República de 1988 deu nova conotação à prestação de serviços de saúde, abandonando a arcaica concepção de assistência médico-hospitalar e abraçando a tese do direito público subjetivo, consoante se apreende de preceito nela contido:

“Artigo 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outro agravos ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.”

No mesmo diapasão, a Constituição Paulista também reconhece a saúde como direito de todos e obrigação do Estado, garantindo o acesso universal e igualitário às ações e ao serviço de saúde, em todos os níveis (artigo 219 e § único).

O Código de Saúde do Estado de São Paulo, Lei Complementar Estadual nº. 791/95, no que concerne ao tema em pauta, estabelece que:

a)o direito à saúde é inerente à pessoa humana, constituindo-se em direito público subjetivo (artigo 2º, § 1º);

b)o estado de saúde, expresso em qualidade de vida, pressupõe (i) condições dignas de alimentação e nutrição, assim como o acesso a esses bens; (ii) reconhecimento e salvaguarda dos direitos do indivíduo, como sujeito das ações e dos serviços de assistência em saúde, possibilitando-lhe exigir serviços de qualidade prestados oportunamente e de modo eficaz; (iii) ser tratado por meios adequados e com presteza, correção e respeito (artigo 2º, § 3º, incisos I e IV,  “a” e “c”);

c)no território de nosso Estado, as ações e serviços de saúde implicam coparticipação e atuação articulada do Estado e dos Municípios na sua execução e desenvolvimento, constituindo o Sistema Único de Saúde (artigo 4º. e § 1º; artigo 9º, inciso I; e artigo 11);

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d)as ações e serviços assistenciais prestados pelo Sistema Único de Saúde são gratuitos, vedada a cobrança, de qualquer tipo de despesa (artigo 12, inciso II, “a”);

e) compete ao Município executar ações e serviços de assistência integral à saúde e de alimentação e nutrição (artigo 18, inciso III, “a” e “e”).

Outrossim, a Lei nº 10.083/98, que cuida do Código Sanitário do Estado estabelece que:

“Artigo 51. Os estabelecimentos de assistência à saúde e os veículos para transporte de paciente deverão ser mantidos em rigorosas condições de higiene, devendo ser observadas as normas de controle de infecção estipuladas na legislação sanitária.”

“Artigo 53. Os estabelecimentos de assistência à saúde deverão possuir condições adequadas para o exercício da atividade profissional na prática de ações que visem à proteção, promoção, preservação e recuperação da saúde.”

“Artigo 55. Os estabelecimentos de assistência à saúde deverão possuir instalações, equipamentos, instrumentais, utensílios e materiais de consumo indispensáveis e condizentes com suas finalidades e em perfeito estado de conservação e funcionamento, de acordo com normas técnicas.”

No mesmo sentido, encontramos a Lei Complementar nº. 791/95, que estabelece o Código de Saúde no Estado, dispondo:

“Artigo 3º. O estado de saúde, expresso em qualidade de vida, pressupõe:

[...]

IV - reconhecimento e salvaguarda dos direitos do indivíduo, como sujeito das ações e dos serviços de assistência em saúde, possibilitando-lhe:

a) exigir, por si ou por meio de entidade que o representa e defenda os seus direitos, serviços de qualidade prestados oportunamente e de modo eficaz; (...)

b) ser tratado por meios adequados e com presteza, correção técnica, privacidade e respeito; [...].”

“Artigo 8. Na execução das ações e dos serviços de saúde, públicos e privados, serão observados os seguintes princípios gerais:

I - os serviços de saúde manterão, nos seus vários níveis de complexidade, os padrões de qualidade técnica, científica e administrativa universalmente reconhecidos, e aos ditames da ética profissional; [...]”

Do mesmo modo a Lei Estadual nº. 10.241/99, que prescreve os direitos dos usuários dos serviços de saúde:

“Artigo 2. - São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo:

I - ter um atendimento digno, atencioso e respeitoso; [...]

XIX - ter um local digno e adequado para atendimento [...]”

Como esclarece Sueli Gandolfi Dallari:

“... isso significa que ninguém - legislador ou administrador - pode alegar a ausência de norma regulamentadora para justificar a não aplicação imediata da garantia do direito à saúde”.[3]

Cabe, portanto, ao Município não somente zelar pela correta prestação do serviço público no estabelecimento de assistência à saúde, como também assumir a garantia de sua eficiência e efetividade, pois, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça no RMS nº 7.730/96 - RS - Rel. Min. José Delgado, Diário da Justiça, Seção I, 27 out. 1997, p. 54.720, ao Poder Executivo:

“... cabe o poder indeclinável de regulamentar e controlar os serviços públicos, exigindo sempre sua atualização e eficiência, de par com o exato cumprimento das condições impostas para a sua prestação ao público”.

À guisa de ilustração, é oportuno trazer à baila lição dos ilustres juristas Antonio Augusto Mello De Camargo Ferraz e Antonio Hermam De Vasconcelos e Benjamim, que acabam por tecer considerações indispensáveis sobre a natureza de função administrativa da saúde, distinguindo-a dos ordinários serviços públicos. Veja-se, in verbis:

"A ordem constitucional vigente admite que mesmo serviços essenciais, como a educação e a saúde, sejam prestados por particulares (arts. 209 e 199 da CF, respectivamente). Sujeita essa prestação, porém, a certas condições e procura cercá-la de algumas garantias, inclusive mediante a declaração explícita do caráter social e da "relevância pública" de tais serviços (arts. 6º e 197 da Constituição Federal). A saúde, que mais diretamente nos importa considerar, é um "direito social" (art. 6º), "direito de todos" (art. 196 da CF). Sendo, além disso, um "dever do Estado" (art. 196), a responsabilidade pela oferta de serviços de saúde a toda a população cabe a ele por inteiro, mantida sempre sua responsabilidade, ainda quando, por delegação, se verifica o concurso da iniciativa privada. Como direito subjetivo público que é, a saúde é assegurada sempre através do exercício de uma função administrativa. Já a sua realização concreta, na forma de ações e serviços, pode ser levada adiante com o concurso da iniciativa privada, sempre de "forma complementar" (art. 199, Ú 1º). A distinção entre função pública e serviço público, embora não muito clara em doutrina, é apreciada por RENATO ALESSI: "enquanto o mero serviço realiza-se pela simples outorga de prestações, a função representa, ademais, o desenvolvimento de um poder jurídico, desenvolvimento, como tal, de uma personalidade jurídica de direito público" (ob. cit., p.165). Inquestionável, assim, o interesse social (art. 127, caput) na prestação de serviços de saúde de boa qualidade e de modo suficiente para satisfazer as necessidades da população. [...] Assim, a saúde acaba por destacar-se dos outros direitos sociais não porque, como direito, seja mais importante que os outros, mas simplesmente porque a sua implementação, mesmo quando praticada por particulares, é de " relevância pública." [4]

Assim, a saúde acaba por destacar-se dos outros direitos sociais não porque, como direito, seja mais importante que os outros, mas simplesmente porque sua implementação, mesmo quando praticada por particulares, continua detendo relevância pública.

Isso posto, a Constituição da República, a Carta Constitucional Bandeirante, entre outros diplomas aqui citados, tutelam concretamente o direito do cidadão à saúde (proteção, promoção e recuperação) e impõem ao Estado o dever de garanti-lo, atribuindo aos efetivos ou potenciais usuários um direito público subjetivo.

Assim, embora se reconheça a possibilidade de execução indireta de serviços públicos não exclusivos, em se tratando de serviços públicos de saúde, como a própria Constituição Federal, em seus artigos 196 e 197, conferiu legitimidade de participação à iniciativa privada de modo complementar em sua prestação, também não seria possível admitir a possibilidade da titularidade exclusivamente privada. E não é outra a conclusão do eminente Celso Antônio Bandeira de Mello, que afirma:

“Há, na verdade, quatro espécies de serviços sobre os quais o Estado não detém titularidade exclusiva, ao contrário do que ocorre com os demais serviços públicos. São eles: serviços de saúde, de educação, de previdência social e de assistência social.” (destacamos) [5].

“Há cinco espécies de serviço que o Estado não pode permitir que sejam prestados exclusivamente por terceiros, seja a título de atividade privada livre, seja a título de concessão, autorização ou permissão. São os serviços (a) de educação, (b) saúde, (c) previdência social, (d) assistência social e (e) de radiodifusão sonora e de sons e imagens – tudo conforme fundamentos constitucionais já indicados.”[6]  (destacou-se)

Assim, evidente que a execução indireta dos serviços não implica na perda de sua titularidade pelo Estado, tampouco de sua responsabilidade de bem prestá-los à sociedade; de forma que ao proporcionar a transferência da atividade, ao mesmo tempo assegure o implemento de seu controle e, consequentemente, garanta sua continuidade, acessibilidade e regularidade. Os serviços de saúde são de relevância pública enquanto leque de atividades que dispõe de papel de relevo no âmbito de interesse da sociedade, mas que dispensa titularidade especial pública ou particular, destoando dos serviços públicos como propriamente concebidos e ao mesmo tempo das atividades econômicas. Por essa vereda a doutrina de Paulo Modesto:

“Os serviços de relevância pública não são serviços públicos, mas também não são as atividades de exploração econômica. Constituem zona jurídica intermediária, rol de atividades que dispensa t´titulo especial de autorização tanto para o Estado quanto para os particulares, mas que cumpre papel relevante no fornecimento de utilidade vitais para os cidadãos, sendo especialmente protegida pela Constituição [...] Trata-se de domínio em que a atividade de execução direta e a atividade de fomento administrativo, mediante outorga de títulos especiais, apoio financeiro e acordos de parceria encontra lugar privilegiado para coexistir, rompendo-se em definitivo a dicotomia de soma zero que isolava a atuação dos particulares e do Estado em zonas distintas e mutuamente excludentes.” [7]

Sobre a participação da iniciativa privada na prestação de serviços de saúde, prevê a Lei Federal nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), exatamente, a possibilidade de complementação dos serviços e estabelece a preferência a que essa complementação se dê através de entidades filantrópicas ou sem fins lucrativos. Observe-se:

Artigo 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.

Parágrafo único – A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público.”

Artigo 25. Na hipótese do artigo anterior, as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos terão preferência para participar do Sistema Único de Saúde (SUS).” (destacou-se)

Assim, verificando-se a necessidade de complementação dos serviços de saúde, inclusive por insuficiência de rede própria, o município, ou qualquer outro ente, pode recorrer à iniciativa privada, com preferência para as entidades filantrópicas ou sem fins lucrativos. Mesmo porque, conforme prevê o artigo 198 da CF e a Lei Federal nº 8.080/1990, o conceito de direção única integra a diretriz de descentralização das ações e serviços públicos de saúde na organização do SUS, cabendo a cada órgão em sua respectiva esfera, prover e regulamentar os serviços necessários ao atendimento do interesse público a que o sistema visa tutelar. Segundo Guido Ivan de Carvalho e Lenir Santos:

“A direção única também significa que nenhuma das três esferas gestoras do sistema de saúde poderá haver mais de um órgão, setor, ou ente jurídico responsável institucionalmente pelo Sistema Único de Saúde. Ele é dirigido, na esfera federal (que, na maioria das vezes, tem atuação nacional), pelo Ministério da Saúde; na estadual, pela Secretaria de Estado de Saúde; e, na municipal, pela Secretaria Municipal de Saúde ou órgão equivalente. Se houver, na mesma esfera de governo, autarquias, fundações ou outros órgãos executando ações e serviços de saúde, todos estarão vinculados à direção do SUS correspondente.”

“Assim, cada uma das esferas de governo – desde que respeitada a competência atribuída por lei para realizar os objetivos do Sistema Único de Saúde – é autônoma, nos limites de seu território, para praticar todos os atos referentes à organização e à execução dos serviços de saúde. [...] no caso do SUS, o responsável pela direção única é ao mesmo tempo o dirigente do SUS e o seu gestor máximo, ou seja, aquele que dá as diretrizes de atuação do SUS em seu âmbito político-administrativo e aquele que formula, executa, supervisiona, controla, altera e revê as atividades da política de saúde.” [8]

Nesse sentido, a direção única do Sistema Único de Saúde do Município, ao lado de outros programas de saúde abarcados pelo Município, quando realizados no âmbito de seu território e nos limites de sua competência, sujeitam-se exclusivamente ao Departamento ou Secretaria Municipal de Saúde local, que tem o papel de ser o coordenador, formulador, articulador, executor, supervisor e controlador das ações e serviços de saúde, inclusive em relação aos serviços complementares, contratados ou conveniados.

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Sobre o autor
Alexandre Massarana da Costa

Advogado, pós-graduado em direito constitucional e político, com atuação na área do direito público.

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