1. INTRODUÇÃO
Questão frequente nos juízos e tribunais país afora é se há (ou não) nulidade na Certidão de Dívida Ativa (CDA), por ausência de prévio processo administrativo, em tributos lançados de ofício.
Tal assunto é de suma importância pois, caso se conclua pela nulidade, fatalmente fulmina-se o próprio executivo fiscal.
“Contrario sensu” se prestigia a presunção de liquidez e certeza da CDA, obviamente, favorecendo o Fisco, ora Exequente.
Assim, mister se analisar como tal situação é enfrentada e a resposta jurisprudencial a tal tema.
2. BREVES NOTAS SOBRE LANÇAMENTO E TRIBUTO LANÇADO DE OFÍCIO
A autoridade tributária deve verificar a existência do fato gerador do tributo, determinar a respectiva matéria, o montante a ser pago e identificar o sujeito passivo pertinente.[1]
Para tais averiguações, realiza o denominado lançamento (minudenciado no artigo 142, do Código Tributário Nacional).
Existem tributos em que o sujeito passivo não participa do lançamento, restando todas as fases acima narradas a cargo da autoridade tributária.
É o chamado “lançamento de ofício” que ocorre, por exemplo, no caso do IPTU, do IPVA, de taxas e demais situações previstas no artigo 149, do CTN.
Conceituando tal modalidade de lançamento, giza Hugo de Brito Machado:
"Diz-se o lançamento de ofício quando é feito por iniciativa da autoridade administrativa, independentemente de qualquer colaboração do sujeito passivo" [2]
Notificado o contribuinte e impago os valores devidos, cabe à autoridade tributária extrair a competente Certidão de Dívida Ativa (CDA) a fim desta embasar a competente execução fiscal.
E o mencionado título executivo deve, conter, por obrigação do artigo 202, V, do Código Tributário Nacional e do artigo 2º, §§ 5º, VI e 6º, da Lei nº 6.830/80, o número do processo administrativo que originou o débito.
Tal determinação tem sua razão de ser, pois oportuniza ao sujeito passivo o conhecimento dos elementos que afluiram na cobrança recebida, visando, também, dar-lhe argumentos para uma eventual contestação.
3. HÁ NULIDADE DA CDA CASO NÃO CONSTE ALI O NÚMERO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO?
Fazendo-se, apenas, a interpretação gramatical do dispositivo legal acima descrito, parece evidente dever constar, sob pena de nulidade, o número do processo administrativo na CDA.
Entretanto, tal questão refoge a simples literalidade da lei, tomando outros contornos em nossos fóruns e tribunais, quando o citado título executivo cuida de cobrança de tributo lançado de ofício.
Os defensores da desnecessidade de número de processo administrativo (ou mesmo de sua própria anterior existência) não se restringem à questão processual tributária voltando sua atenção para a principal característica de tal modalidade de lançamento: a ausência de participação do contribuinte em sua feitura.
Entendem os próceres de tal corrente (majoritária, diga-se) que sendo realizado o lançamento de ofício de acordo com os estritos limites legais respectivos, não haveria necessidade alguma de se fazer, também, um processo administrativo, bastando, tão somente, o envio da cobrança ao sujeito passivo.
A este, caso inconformado com tal missiva, caberia o ônus de impugnar tal lançamento, surgindo, somente após, um processo administrativo (ou mesmo judicial) a analisar tal irresignação.
Caso contrário, não havendo pagamento ou irresignação, uma CDA consequente não se macularia pela ausência de qualquer número (ou prévia existência) de processo administrativo, posto que, ademais, goza de presunção de liquidez e certeza.
Tal tese tem aplausos em nossos Tribunais, como se vê abaixo:
TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. IPTU. DISPOSITIVOS LEGAIS APONTADOS COMO VIOLADOS QUE NÃO CONTÊM COMANDO CAPAZ DE INFIRMAR O JUÍZO FORMULADO PELO ACÓRDÃO RECORRIDO. DEFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA 07/STJ. LANÇAMENTO DE OFÍCIO. DESNECESSIDADE DE PROCESSO ADMINISTRATIVO ESPECÍFICO E NOTIFICAÇÃO. PRECEDENTES DAS 1ª E 2ª TURMAS. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO, E, NESSA PARTE, DESPROVIDO [3]
EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. IPTU. TIL - TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA. TSU - TAXA DE SERVIÇOS URBANOS (LIMPEZA PÚBLICA). Não se pode exigir que a inscrição da dívida ativa da Fazenda Pública seja precedida do regular processo tributário administrativo nas hipóteses de lançamento direto, uma vez que a dívida só é questionada quando seu valor é impugnado pelo contribuinte, instaurando-se o contencioso administrativo, sem o qual inscreve-se a dívida regularmente [4]
CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA. PRESUNÇÃO DE LIQUIDEZ E CERTEZA. A certidão de dívida ativa, regularmente constituída, é título executivo hábil e suficiente para autorizar o início da execução fiscal e a agressão ao patrimônio do devedor (art. 585, VI, do CPC), gozando de presunção legal de liquidez e certeza (art. 204 do CTN e art. 3º, da LEF). EXECUÇÃO FISCAL. IPTU E TAXA DE SERVIÇOS URBANOS. TRIBUTOS SUJEITOS A LANÇAMENTO DIRETO. DESNECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE PROCESSO TRIBUTÁRIO ADMINISTRATIVO. A cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e da Taxa de Serviços Urbanos (TSU) é feita anualmente, não havendo necessidade de instaurar processo administrativo para cada contribuinte, bastando se valha a municipalidade das informações constantes da inscrição que o próprio contribuinte faz perante o cadastro municipal. Isto porque, tratando-se de tributo sujeito a lançamento direto ou de ofício, o processo administrativo somente se instaura se houver impugnação do contribuinte dentro do prazo previsto na legislação tributária municipal. (...) [5]
o envio do carnê de cobrança do valor devido a título de IPTU ao endereço do contribuinte configura a notificação presumida do lançamento do tributo. Para afastar tal presunção, cabe ao contribuinte comprovar o não-recebimento do carnê [6]
A corrente contrária, embora minoritária, também tem seus defensores.
Com efeito, para os patronos de tal tese, deve-se a Certidão de Dívida Ativa espelhar fiel e rigorosamente os ditames legais pertinentes, em respeito, acima de tudo, ao princípio da legalidade.
Também, o contribuinte, por óbvio, é o elo mais fraco nesta cadeia só sendo chamado, nos tributos lançados de ofício, para pagar, não podendo participar do respectivo lançamento.
Assim, já que não possui a prerrogativa de atuar ativamente no lançamento, deve ter, como uma contrapartida, um processo administrativo prévio a dar-lhe garantia que o tributo apurado é legal e adequado.
Mister, pois, apresentar ementas representativas de tal tese em nossos Tribunais:
“PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO - EXECUÇÃO FISCAL - PROCESSO ADMINISTRATIVO-FISCAL EXTRAVIADO - PERDA DA EXIGIBILIDADE DO TÍTULO.
1. A Lei 6.830/80 exige que conste da certidão de dívida ativa o número do processo administrativo-fiscal que deu ensejo à cobrança. Macula a CDA a ausência de alguns dos requisitos.
2. O extravio do processo administrativo subtrai do Poder Judiciário a oportunidade de conferir a CDA, retirando do contribuinte a amplitude de defesa.
3. Equivale o extravio à inexistência do processo, perdendo o título a exeqüibilidade (inteligência do art. 2º, § 5º, inciso VI, da LEF).
4. Precedente desta Corte no REsp 274.746/RJ.
5. Recurso especial improvido.” [7]
“TRIBUTÁRIO - PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL -LANÇAMENTO - NOTIFICAÇÃO - NECESSIDADE - TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO DE OFÍCIO - NULIDADE DA EXECUÇÃO FISCAL.
1. A ampla defesa e o contraditório, corolários do devido processo legal, postulados com sede constitucional, são de observância obrigatória tanto no que pertine aos "acusados em geral" quanto aos "litigantes", seja em processo judicial, seja em procedimento administrativo.
2. Insere-se nas garantias da ampla defesa e do contraditório a notificação do contribuinte do ato de lançamento que a ele respeita.
A sua ausência implica a nulidade do lançamento e da Execução Fiscal nele fundada.
3. A Certidão de Dívida Ativa goza de presunção juris tantum de liquidez e certeza, admitindo prova em contrário. Malferimento das regras do processo administrativo fiscal.
4. Recurso Especial improvido.” [8]
Tal opinião, como dito acima, é minoritária, prevalecendo a temática que favorece o Fisco e dispensa do número de processo administrativo (ou mesmo de sua existência anterior) em tributos lançados de ofício.
Corolário de tal “status quo” pertinente colacionar recentíssimo julgado do Tribunal da Cidadania, sedimentando sua proteção à mencionada tese:
DIREITO TRIBUTÁRIO. FORMAÇÃO DA CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA. A ausência de prévio processo administrativo não enseja a nulidade da Certidão de Dívida Ativa (CDA) nos casos de tributos sujeitos a lançamento de ofício. Com efeito, cabe ao contribuinte impugnar administrativamente a cobrança tributária e não ao fisco que, com observância da lei aplicável ao caso, lançou o tributo. Precedentes citados: AgRg no REsp 1.080.522-RJ, Primeira Turma, Dje 29/10/2008; e REsp 1.095.425-MG, Primeira Turma, Dje 22/4/2009. [9]
4. CONCLUSÃO
Em suma, respeitadas as vozes dissonantes, mister observar que prepondera em nossa jurisprudência, especialmente no Colendo STJ, a visão da prescindibilidade de prévio processo administrativo a embasar execuções fiscais de tributos lançados de ofício impagos.
Assim, a previsão legal de constar, na Certidão de Dívida Ativa respectiva, o número do processo administrativo fica relativizada, preponderando os princípios da liquidez e certeza que lhes são pertinentes.
Ao contribuinte a melhor solução é, ao receber uma notificação que discorda, promover sua irresignação pela via administrativa ou judicial, em vez de aguardar uma eventual execução fiscal para, somente aí, tentar argüir a ausência de anterior processo administrativo para o lançamento do tributo cobrado.
[1] Além de propor a aplicação da penalidade cabível, se for o caso
[2] MACHADO, HUGO DE BRITO. Curso de Direito Tributário, 26ª ed., São Paulo: Malheiros, p. 185
[3] STJ. REsp 1095425/MG, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe 22.04.09
[4] TJMG. Apelação Cível nº 1.0024.03.092418-7/001, Rel. Des. José Francisco Bueno, j. 16/12/2004
[5] TJMG. Apelação Cível nº 1.0000.00.312645-5/000, Rel. Des. Brandão Teixeira, j. 01/04/2003
[6] STJ. REsp n. 1.099.051/SC, Min. Castro Meira
[7] STJ. REsp 686.777/MG, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/10/2005, DJ 07/11/2005, p. 218
[8] STJ. REsp 478.853/RS, Rel. Ministro Luiz Fux Primeira Turma, julgado em 10.6.2003, DJ 23.6.2003
[9] STJ. AgRg no AREsp 370.295-SC, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 1º/10/2013. (“In” Informativo nº 531)