1. Direito de resistência – Em busca de uma definição
Tema ainda incipiente no direito brasileiro, José Carlos Buzanello (2006) assim define direito de resistência:
“É uma realidade constitucional em que são qualificados gestos que indicam enfrentamento, por ação ou omissão, do ato injusto das normas jurídicas, do governante, do regime político e também de terceiros, fundado em razões jurídicas, políticas ou morais. Os temas referentes do direito de resistência dizem respeito ao funcionamento do sistema de poder, às estruturas de governo, aos agentes políticos, às práticas sociais e às instituições jurídicas” (BUZZANELLO, 2006, pg. 01).
Segundo essa lógica, o direito de resistência deve ser compreendido juridicamente, com apelo à ordem constitucional, por força das regras e princípios que informam toda a regulação jurídica do Estado. O problema do direito de resistência enquadra-se, pois, nesse contexto geral da ordem constitucional que opera com um sistema de princípios extensivamente a todo o sistema jurídico. Ou seja, enquanto não positivado, o direito de resistência busca sua justificação em outros princípios já dispostos constitucionalmente ou, então, pode-se interpretar que também não se encontra expressamente afastado do ordenamento constitucional. Assim, “o direito de resistência, como uma “categoria implícita” constitucional, corresponde, na ordem constitucional, a uma consagração formal de princípios que permite avaliar a extensão desse direito” (BUZZANELLO, 2006, pg. 01).
Já Maria Helena Diniz o define como:
“Direito reconhecido aos cidadãos, em certas condições, de recusa à obediência e de oposição às normas injustas, à opressão e à revolução. Tal direito concretiza-se pela repulsa a preceitos constitucionais discordantes da noção popular de justiça; à violação do governante da ideia de direito de que procede o poder cujas prerrogativas exerce; e pela vontade de estabelecer uma nova ordem jurídica, ante a falta de eco da ordem vigente na consciência jurídica dos membros da coletividade. A resistência é legítima desde que a ordem que o poder pretende impor seja falsa, divorciada do conceito ou ideia de direito imperante na comunidade. O direito de resistência não é um ataque à autoridade, mas sim uma proteção à ordem jurídica que se fundamenta na ideia de um bem a realizar. Se o poder desprezar a ideia do direito, será legítima a resistência, porém é preciso que a opressão seja manifesta, intolerável e irremediável.” (DINIZ, 2005, p. 181 e 182).
Ou seja, Maria Helena Diniz chama atenção para a legitimidade do direito de resistência, necessitando, para ser legítima, que a comunidade onde ela se desenvolva precise efetivamente das mudanças sociais e jurídicas exigidas.
2. O Direito de resistência tomado historicamente
Henry David Thoreau[1] (1817-1862) foi o pioneiro da “teoria da resistência ao governo civil” (1849), reintitulada como “desobediência civil”, cuja ideia central era de auto-aprovação e de como alguém poderia estar em boas condições morais enquanto “escraviza ou faz sofrer um outro homem”. No entanto, como ensina Teixeira (2012), apresenta também raízes históricas, como faz Antígona, na peça grega de Sófocles, teóricos iluministas como Hobbes, Rousseau e Kant. Teixeira ainda nos lembra que Mahatma Gandhi (1869-1948) utilizou a desobediência civil como ferramenta anticolonialista em suas campanhas de 1930 na Índia, seguido por Martin McLuther King Jr. (1929-1968) no movimento dos direitos civis norte-americanos na década de 1960.
No Brasil, Teixeira (2012) registra que, não obstante o “pacifismo” do povo, a desobediência civil tem ocorrido em Movimentos como o das “Diretas Já” (1983/4), o dos Trabalhadores Sem-Terra - MST (desde 1984), os dos “Caras-Pintadas” (1992), o do combate à corrupção eleitoral - MCCE (campanha “ficha limpa” recentemente aprovada) dentre outros.
O direito de resistência, afirmado de diferentes formas ao longo da história e pensado como um direito em que qualquer pessoa tem de resistir ou insurgir contra qualquer fator que ameace sua sobrevivência ou que represente uma violência a valores éticos ou morais humanistas, é registrado desde a China Antiga e foi usado para justificar várias rebeliões de grande amplitude, como a Revolução Francesa – contexto que envolve o filme Os Miseráveis - e a Revolução Americana (guerra de Independência dos Estados Unidos).
Essa ideia de desobediência civil é entendida por Buzzanello (2001) como:
“um mecanismo indireto de participação da sociedade, já que não conta com suficientes canais participativos junto às esferas do Estado, que precisaria deles para poder presentear-se como ente político legítimo. O problema da desobediência civil tem um conteúdo simbólico que geralmente se orienta para a deslegitimação da autoridade pública ou de uma lei, como a perturbação do funcionamento de uma instituição, a fim de atingir as pessoas situadas em seus centros de decisão” (BUZZANELLO, 2001, pg. 18).
Ainda segundo o autor, seriam características marcantes da desobediência civil: a) é uma forma particularizada de resistência e que se qualifica na ação pública, simbólica e ético-normativa; b) manifesta-se de forma coletiva e pela ação “não-violenta”; c) quer demonstrar a injustiça da lei ou do ato governamental mediante ações de grupos de pressão junto aos órgãos de decisão do Estado; d) visa à reforma jurídica e política do Estado, não sendo mais do que uma contribuição ao sistema político ou uma proposta para o aperfeiçoamento jurídico (BUZANELLO, 2001).
Observando, agora, o contexto constitucional brasileiro vigente, a desobediência civil exsurge da “cláusula constitucional aberta”, prevista no art. 5º, § 2º, “in verbis”: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Dessa maneira, em consonância com os princípios constitucionais da proporcionalidade e da solidariedade, os protestos pela sociedade brasileira são viáveis desde que sejam contrários a atos violadores desses princípios na ordem política nacional. Veremos isso mais abaixo.
Por outro lado, para registro, e para mostrar como o direito de resistência aparece constitucionalmente em outras partes do mundo, a Constituição Portuguesa, em seu artigo 21, define este direito: “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.
3. O direito de resistência na teoria política clássica (através de Jonh Locke)
O direito de resistência aparece de forma rica na filosofia política. Mostraremos isso a partir do exemplo de Jonh Loche. A doutrina do direito de resistência do povo contra o abuso de poder dos governantes é, ao lado da teoria da propriedade e da tolerância religiosa, um dos temas mais originais e influentes de toda a filosofia lockeana. Como analisa Cintra (2009), sua essência pode ser encontrada no fato de que os homens têm certos direitos naturais existentes antes mesmo da instituição do governo civil, que surge justamente para melhor garanti-los. O direito de resistência dos homens, em geral, aparece quando o governo mostra-se incapaz de atender ao direito de propriedade[2] do povo. Nessa situação, a rebelião torna-se necessária e coloca os indivíduos de novo em estado de natureza.
É preciso destacar, nesse caso, que o direito de rebelião a que Locke refere-se nos quatro últimos capítulos do Segundo tratado sobre o Governo Civil é um direito à revolução, não uma teoria da desobediência civil[3]. A situação de um Estado ser tão injusto a ponto de poder levar a uma revolução não é nunca levantada. Locke, por outro lado, considera a rebelião não só uma necessidade em certos casos, mas um direito. No entanto a revolução é descrita no Segundo Tratado não como um passo em direção da realização de um ideal de justiça, mas como uma resistência à degeneração política. Como a sociedade civil nasce de uma crise do estado de natureza, a sua crise torna possível o retorno àquele estado.
4. O direito de resistência na Constituição Brasileira de 1988
Como salienta Buzzanello, o direito de resistência se relaciona com o Direito Constitucional, visto que é ele que dispõe sobre os limites do poder político e os direitos e garantias fundamentais do cidadão. O problema constitucional do direito de resistência está na garantia da autodefesa da sociedade, na garantia dos direitos fundamentais e no controle dos atos públicos, bem como na manutenção do pacto constitucional por parte do governante. Os elementos fundamentais que indicam a presença do direito de resistência no Direito Constitucional se referem necessariamente aos valores da dignidade humana e ao regime democrático. Os valores constitucionais compõem um contexto axiológico para a interpretação de todo o ordenamento jurídico, para orientar a hermenêutica constitucional e o critério de medir a legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade.
O problema do direito de resistência, no sistema constitucional brasileiro, está colocado em dois aspectos: um, suscitado pela referência explícita, e outro, pela implícita. De um lado, o reconhecimento do direito de resistência operou-se pela via explícita em apenas algumas espécies, como pelo objeção de consciência (art. 5°, VIII c/c art. 143, § 1°, CF); greve “política” (art. 9°, CF); princípio da autodeterminação dos povos (art. 4°, III, CF). De outro lado, a construção constitucional elucida, de forma implícita, a materialidade da resistência. A materialidade se combina com os elementos constitucionais formais, como os princípios da dignidade da pessoa humana e do pluralismo político, erguidos como fundamentos do Estado Democrático (art. 1°, III, V, CF); a abertura e a integração para dentro do ordenamento constitucional de outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados (art. 5º, § 2º, CF).
A licitude do direito de resistência se manifesta dentro do aparelho de Estado, na preservação dos valores constitucionais inscritos na ordem democrática, como no enfrentamento das ações criminosas tipificadas nos crimes de responsabilidade (art. 85, CF; Lei 1.079/50), como no desrespeito aos poderes estatais entre si, na improbidade administrativa e na ofensa aos direitos fundamentais, e também tipificados como crimes constitucionais (art. 5°, XLIV), na ação de grupos armados contra a ordem democrática.
5. A desobediência civil por David Thoreau
Interessante a histórica que ocorreu com Henry David Thoreau para que ele desenvolvesse sua teoria acerca deste tema. Como nos conta Correa (2007), em 1846, na cidade de Concord (Massachusetts, Estados Unidos) Henry encontrou um cobrador de impostos que lhe exigiu o pagamento de impostos devidos. Contudo, se recusou a dar dinheiro para o Estado, por discordar com a política local e principalmente por não querer financiar a guerra que os EUA travava naquela altura contra o México. Conseqüentemente, ele foi preso e passou a noite na delegacia, apesar de sua dívida ter sido paga por outra pessoa.
Após o ocorrido, Thoreau relatou sua experiência no artigo “A relação do individuo com o Estado”, de modo que sua experiência foi contada e publica inúmeras vezes. Mais tarde, esse texto foi inserido nas Obras Completas de Thoreau, publicadas depois de sua morte em 1862, com o título “A desobediência civil”.
Se olharmos para o contexto sócio-político dos EUA no momento do acontecido, Tota e Bastos (1996) chamam atenção para o fato de que, depois das guerras de Independência, toda a região nordeste dos Estados Unidos começou a se industrializar, o que não se processou em todo o país, haja vista o Sul ainda agrário e escravista. A questão que fervilhava politicamente era as divergências entre o norte e o sul, do ponto de vista de interesses econômicos, políticos e sociais. Pois, se por um lado, interessava aos latifundiários dos Estados do sul, plantadores de algodão, um governo federalista que lhes concedesse maior autonomia e, principalmente, uma política alfandegária flexível que estimulasse a exportação de matérias-primas e favorecesse a importação dos manufaturados; por outro lado, aos fabricantes e comerciantes do norte, interessava justamente o oposto. Os nortistas desejavam um governo central forte que adotasse uma política aduaneira protecionista que não só gravasse com taxas os produtos dos concorrentes estrangeiros, mas que também impedisse a entrada das mercadorias inglesas, constantemente contrabandeadas do sul para o norte.
Neste contexto, portanto, desenvolve-se o ensaio da desobediência de Thoreau (2002) que é iniciado com argumentos do laissez-faire: “aceito com entusiasmo o lema ‘O melhor governo é o que menos governa’; e gostaria que ele fosse aplicado mais rápido e sistematicamente”. (2002, pg. 321). Porém, Thoreau não pareceu querer a revolução, ao menos por ora, o que aparece no dizer “o que desejo imediatamente é um governo melhor, e não o fim do governo”. (2002, pg. 322).
Além disso, Thoreau deixou bem claro, no ensaio da desobediência, que o problema proposto era: “Existem leis injustas; devemos submeter-nos a elas e cumpri-las, ou devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até à sua reforma, ou devemos transgredi-las imediatamente?” (2002, pg. 330). Thoreau decide, nesse sentido, que é possível transgredir as leis injustas imediatamente, mas de forma pacífica.
Com isso, a desobediência civil de Thoreau consistiu na negação de cumprir suas obrigações tributárias. Ele desobedeceu à lei de seu Estado com o firme propósito de preservar a paz, pois o imposto que se recusou a pagar era destinado a financiar a guerra contra o México. Além disso, ele considerava que era moralmente inaceitável contribuir com um governo escravocrata que semeava injustiças contra os seus vizinhos. Fato parecido vemos na transgressão à lei do personagem central do filme Os Miseráveis, quando Jean Valjean rouba um pedaço de pão, uma vez vítima de um contexto miserável, excludente e injusto.
6. O filme Os Miseráveis e o direito de resistência
Neste filme francês (2012), baseando no clássico livro de Victor Hugo[4], temos como foco central a história de Jean Valjean, e a relação com alguns outros importantes personagens da trama, numa história que se passa na França do século XIX entre duas grandes batalhas: a Batalha de Waterloo (1815) e os motins de junho de 1832, ou seja, num período que ainda respirava a Revolução Francesa.
Em dado momento Valjean rouba um pão para alimentar a irmã mais nova e acaba sendo preso por isso. Cumprida a pena, Jean é posto em liberdade condicional com a obrigatoriedade de se apresentar regularmente, correndo o risco de passar o resto da vida preso se não o fizer. Como ex-presidiário, Valjean sente-se discriminado por todos, contudo tenta recomeçar a sua vida e redimir-se do tortuoso passado. Ele iria dormir na rua, mas é recebido na casa do benevolente Bispo Myriel, o Bispo de Digne. Acaba por rouba-lhe os talheres de prata durante a noite e foge, sendo preso e levado pelos policiais à presença do bispo. Este o salva alegando que a prata foi um presente e ainda lhe dá dois castiçais de prata, repreendendo-o por ter saído com tanta pressa que esqueceu essas peças mais valiosas. Após esta demonstração de bondade, o bispo o recomenda de usar a prata para tornar-se um homem honesto. Considerando-se livre, Jean Valjean quebra a condicional resultando na fuga contínua pela perseguição do inspetor Javert. Transformado, no entanto, Jean Valjean reaparece no outro extremo da França sob o pseudônimo de pai Madeleine e torna-se um próspero empresário, dono de uma fábrica, e um homem respeitado pela sua bondade e caridade.
Enquanto isso, do outro lado da França, Fantine enfrenta uma grande luta com sua filha Cosette. Ao viajar para o interior do país, a mãe deixa a menina com o casal Thénardier, que maltrata a criança, fazem-na de escrava e roubam seu dinheiro. Nesse período, Fantine arranja emprego no interior, envia dinheiro para sua filha, mas o casal que “cuida” dela cobra cada vez mais. Um dia um funcionário da fábrica descobre que a mesma tem uma filha ilegítima, e a expulsa do emprego em que trabalha. Desolada, e sem jeito de conseguir dinheiro, ela vende os invejados cabelos e até um dente, e com mais cobrança dos vilões, acaba se prostituindo, e ainda desencadeia uma tuberculose. Por fatos ocorridos no passado, Jean Valjean conhece a doente Fantine e lhe faz a promessa de cuidar de sua filha.
O personagem de Jean Valjean, ao ser preso por roubar um pão, mostra-nos como a justiça da lei é relativa no tempo em que está presente. Além disso, é um homem estigmatizado por seu passado, obrigado a carregar um fardo representado no documento que o atesta como ex-criminoso, explicitando mais claramente como a lei daquele contexto francês, além de injusta para os padrões de hoje, estabelecia uma pena para a vida inteira, carregada pelo indivíduo em todas as suas demais relações sociais. Forçado a trabalhar durante a prisão, Jean foi levado ao registro marginal, numa lógica de desumanização na qual o inspetor Javert insiste em chamá-lo sempre pelo seu registro carcerário, 24061.
Com a “liberdade”, Jean apenas recebe o direito de viver no sentido biológico, com os direitos políticos da vida de cidadão comum lhe sendo negados. Daí a busca constante por uma nova identidade, além de uma busca contínua pela redenção, o que aliás é desacreditado pelo inspetor, que tem sua convicção derrotada no fim do filme ao ver, incrédulo, pela real mudança da natureza humana representada por Valjean.
O início do filme traz, para nossa análise, o tema do tratamento cruel, desumano ou degradante dado a prisioneiros, fato que apesar de ilegal tanto do ponto de vista de muitos direitos internos e do Direito Internacional persiste até hoje em muitas prisões, em especial no Brasil. Somado a isso, também temos a recodificação do ser humano, que deixa de ser chamado por seu nome, perdendo sua identidade original e ganhando uma numeração. O ser humano, portanto, perde suas características humanísticas tendo feridos todos os princípios que lhe garantiria a dignidade humana.
O personagem do inspetor personifica a concepção positivista do Direito, com a percepção de tudo o que é legal é, apenas por ser legal, “justo”. Vê a lei como forma, sem preocupação com seu conteúdo, valorizando-se sobremaneira o procedimento sem espaço para a análise das questões materiais.
Ligado ao tema das punições, verifica-se no filme uma aplicação rígida da lei, com penas graves para o cometimento de crimes que hoje se enquadrariam na esfera da insignificância penal, propondo-nos uma abordagem sobre a relação entre crimes e penas. Eis aspectos relevantes de grande reflexão que o filme nos oferece, deixando brechas nítidas para o direito de resistência tratado neste trabalho, na medida em que a própria lei se mostra injusta, e mais ainda no formato de sua aplicação. É o momento em que é deixado de lado o desejado e adequado equilíbrio entre forma e conteúdo, e a balança acaba sendo favorável à forma. O cumprimento da lei a qualquer preço e sem exceções derivadas do conteúdo de cada caso concreto é o resultado desta percepção formalista do Direito, abrindo espaço para o exercício do direito de resistência, tal como aconteceu no próprio caso da Revolução Francesa.
O cumprimento da lei de forma fria traz, portanto, o debate acerca do princípio da insignificância, consagrada no nosso ordenamento jurídico, e que busca relativizar crimes de pequena monta. Sobre a polêmica em torno desse princípio, Nogueira (2002) nos diz:
“E ainda hoje o princípio da insignificância encontra sérias resistências por parte daqueles que nele vêem um estímulo ao descumprimento das leis penais e ao desrespeito de valores fundamentais. Em contrapartida, o desprezo a esse princípio não raras vezes compromete valores também importantes, contidos no binômio liberdade-dignidade humana, visto que o processo penal, por sua mera instauração, encerra constrangimento tanto contra a liberdade, como contra a dignidade humana, ainda que legal e necessário até esse constrangimento. Bem por isso, numa visão mais humanizada do Direito Penal, o princípio da insignificância não pode ser desprezado ou desconsiderado a pretexto de fomentar a impunidade. O que fomenta a impunidade e o recrudescimento da criminalidade são muito mais a ausência de resposta estatal efetiva aos grandes desmandos e ilicitudes da Nação, condutas que não raras vezes sangram os cofres públicos e o bolso dos cidadãos que trabalham e pagam impostos, bem como o não-atendimento das necessidades básicas das pessoas” (2002, pg. 01).
Outro tema jurídico presente no filme, e que demarca a história de muitos de seus personagens, é a pobreza, visto que esta é criminalizada no filme através da história do roubo do pão. Uma questão social, mas também com cunho jurídico, uma vez que a igualdade deveria ser vista não apenas do ponto de vista formal mas também material, o que não aconteceu na história. O contexto social da falta de igualdade material, e as dificuldades econômicas vividas por grande parte dos franceses, já após a Revolução Francesa, inspiraram as mudanças também nos direitos humanos, pela busca dos direitos econômicos, sociais e culturais, a serem acrescidos aos direitos civis e políticos.
Também ligado a aspectos da Revolução Francesa, e de sua consolidação após os anos iniciais, há na parte final de Les Misérables o questionamento quanto ao sistema de governo estabelecido, a partir da volta da monarquia, onde o direito de resistência aparece como base argumentativa. Aqui, se destaca a questão da possibilidade de efetivação e dos limites da liberdade de pensamento e de expressão, e da utilização da força tanto para se afirmar tal direito como para reprimi-lo. Além disso, se pode resgatar o debate sobre a adequação dos diferentes sistemas governamentais para a efetivação dos direitos humanos, sejam das liberdades sejam os relacionados à igualdade material, e também da participação popular na construção destes sistemas e na busca de real respeito a seus direitos. Quer dizer, como o povo pode participar de modo a garantir aquilo que é mais justo para todos, recorrendo-se a uma convicção de que tem o direito àquela resistência. Exatamente o princípio abordado nesse trabalho.
Dessa maneira, o filme traz forte debate sobre a ideia de justiça, que aparece vinculada a uma visão de que o “correto” não está relacionado apenas segundo a ótica legal, mas deve ser ampliada segundo cada situação. Independentemente do conceito teórico de justiça que o filme trata - já que a teoria da justiça nos apresenta variadas definições -, Os miseráveis demonstra situações em que justiça e direito caminham em direções opostas. O equilíbrio entre os dois conceitos e a intrínseca relação que deve ser mantida entre eles parece ser a proposta do filme e parece ser um bom início para se refletir ainda mais sobre o papel, o fundamento e a função do Direito em todas as sociedades onde sua presença é indispensável porém sem intransigência. Ou seja, exatamente o debate acerca da temática do “direito da resistência”, em que a justiça deve ser o pressuposto da lei.
Referências Bibliográficas
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Notas
[1] Henry David Thoreau, americano (1817-1862). Será abordado com detalhes mais abaixo.
[2] Entendida como a vida, a liberdade e as posses de cada indivíduo.
[3] É importante essa observação, pois outros autores, como John Rawls, falam em desobediência civil, mas nunca em revolução. Ver em: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Vamireh Chacon. Brasília: UnB, 1981.
[4] A França de 1830, respirando os ares trazidos pela ainda recente Revolução Francesa, uma das mais ferrenhas investidas contra o absolutismo monárquico de que se tem notícia em toda história da humanidade, e que consolidou uma das mais expoentes da inspirou Victor Hugo a escrever seu principal romance, Os Miseráveis, obra publicada em 1862.