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Liberdade provisória:

das distorções no campo da fiança criminal a serem corrigidas pelo intérprete

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08/01/2014 às 07:08
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CONCLUSÃO

Tem-se, ao menos em tese, inserto na atuação dos atores processuais penais o uso de uma prisão automática, que ocorre entre o lapso da fiança não paga arbitrada pelo delegado de polícia e a chegada dos autos do flagrante às mãos do magistrado, porque sem manifestação judicial para revestir essa segregação. Mesmo que mínimo seja esse período de encarceramento, ele está descoberto pela motivação judicial, fere o princípio da igualdade, da presunção de inocência e atenta contra o princípio da dignidade da pessoa humana. Do mesmo modo se reveste a prisão mantida pelo magistrado que se nega a diminuir ou trocar o valor da fiança por outras medidas cautelares diversas da prisão a fim de resguardar a pronta entrega da liberdade ao acusado.

A análise da prisão cautelar é função e atuação obrigatória dada ao judiciário pelos artigos 5º, LXI, e 93, IX, ambos da CF, e art. 310, II, do CPP, devendo ela ser fundada nos motivos da preventiva, art. 312 do CPP. De modo algum está se dizendo que todo e qualquer agente preso em flagrante por qualquer delito será necessária e automaticamente posto em liberdade, mas será cabível a concessão da liberdade provisória sem fiança, ficando a manutenção da prisão do agente condicionada à existência de decisão judicial devidamente fundamentada, que aponte a necessidade de sua segregação cautelar. A liberdade provisória consiste em direito subjetivo constitucional do acusado e, sendo ela negada diante dos casos em que a lei a admite, estará caracterizado o constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, além de abuso de autoridade. O intento da nova ordem processual é dar praticidade e imediatidade à restituição da liberdade.

Verifica-se a caracterização de uma nova espécie de prisão por dívida, não obstante a abolição dessa, a falta de liberação do acusado em delitos afiançáveis ante a ausência da satisfação do valor da fiança, ainda que reduzida, sob o enfoque dos motivos do art. 350 do CPP. A normatização internacional que afinca essa proibição, bem como a Carta Constitucional restam feridas diante das decisões do intérprete que, temendo pela dúvida em favor da sociedade, denega a liberdade provisória do acusado de crime afiançável de impossível pagamento por esse. Os princípios constitucionais penais da dignidade humana, favor libertatis, proporcionalidade e igualdade não militam a favor desse tipo de interpretação judicial. Inclusive, os fins da nova normatização processual também restam desatendidos quando o intérprete deixa de dar vazão as novas medidas cautelares e de abafar o efeito da prisão automática.  

O tratamento íntegro dispensado a qualquer acusado exige respeito à sua dignidade, somente podendo ser preso diante de imperiosa necessidade, lastreada por critérios legais objetivos. Diante dessa forma de tratamento, ao acusado pouco abastado somente se pode aplicar a liberdade menos gravosa, ou seja, a liberdade provisória sem fiança, mais benigna ditada pelo art. 5º, inc. LXVI, CF: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. Instrumentaliza o magistrado o fato de as obrigações dos artigos 327 e 328 do CPP, que coagem o acusado fiador a comparecer perante a autoridade todas as vezes que for intimado para atos do inquérito e da instrução criminal e para o julgamento, poderem ser impostas ao réu que por condições econômicas não for capaz de prestar a fiança, mas que tem direito à liberdade.

As modificações recentemente inseridas na ordem processual penal criaram uma série de alternativas ao cárcere e instrumentalizaram o juiz com medidas cautelares diversas da prisão. O modelo atualmente imposto ao CPP está fundado na necessidade e adequação da medida cautelar aplicada, bem como na observância ao postulado da proporcionalidade, de modo a evitar que toda e qualquer restrição a direitos individuais não seja alicerçada fora dessa necessidade e adequação do instrumento cautelar. Tanto na manutenção da prisão cautelar quanto na aplicação das medidas cautelares diversas da prisão estão presentes aqueles baldrames a serem auferidos a partir da garantia da aplicação da lei penal e na conveniência da investigação ou instrução criminal.

A fiança policial constituiu-se em resquício histórico que agora foi revigorado, ao passo que a manutenção legislativa dessa atribuição do delegado em arbitrar fiança, quando da concessão da liberdade, após as formalidades do auto de flagrante, reveste aquele de poder judicial que não lhe é próprio, ferindo o campo de atribuição judicial e permitindo abusos ao direito de liberdade do acusado. A fiança policial não permite a análise do art. 350 do CPP pelo delegado e impossibilita a imediata soltura do suspeito acuado pelo valor instituído como fiança. Ademais, somente a jurisdição penal, realizada pelo magistrado a partir de dados concretos da situação fática, tem o condão de impor uma medida cautelar.

A não concessão da liberdade sem fiança de forma imediata àquele que se apresenta como desprovido de recursos econômicos e a não substituição da fiança por outra obrigação ferem o direito à liberdade e afrontam a proibição do excesso e da máxima efetividade dos direitos humanos. O intérprete deve se recusar a aplicar normas que contenham sanções ou proibições excessivas, como a exigência de prova complexa da condição de miserabilidade do indivíduo encarcerado provisoriamente cuja liberdade está condicionada à fiança. Deve-se ponderar na escolha da norma, optando pela utilização das outras medidas cautelares diversas da prisão e da fiança, nesse caso em que há tensão entre a exigência de garantia real e a concessão da garantia constitucional da liberdade independentemente de fiança.

A fiança parece mais íntima dos crimes contra a ordem tributária, contra a relação de consumo ou ordem econômica, porque opera nesses casos, uma real presunção de enriquecimento ilícito do acusado, detendo ele condições de prestar a fiança, com o fim de custear o ressarcimento aos lesados, por meio dos valores advindos da vantagem indevida angariada. Não apresenta como obrigatória a fiança nesses casos, mas apenas como uma medida mais aconselhável para eles e inadequada para os brasileiros que fazem simples alegação da miserabilidade. Não se está dizendo que o revigoramento da fiança foi lastimável, mas na verdade, se propõe aqui é que os novos valores sejam aplicados de fato ao brasileiro médio, para o qual a medida cautelar é condizente.

Atualmente, se prevê a necessidade de ordem escrita e fundamentada para imposição de qualquer prisão, o que instaurou uma nova interpretação na sistemática do Direito Processual Penal para recusar qualquer norma que vede a restituição da liberdade ao preso em flagrante sem ordem judicial escrita e fundamentada, abalizada nos alicerces das cautelares. O CPP, ao manter o termo liberdade provisória, não conseguiu quebrar com a antiga presunção de culpa que se fazia a quem fosse preso em flagrante delito, mesmo assim o intérprete deve guardar a obrigatoriedade de análise judicial na necessidade da prisão e não mantê-la de forma automatizada, como se tem feito com aqueles que não apresentam  naipe em quitar a fiança. Nesse novo sistema cautelar, o aplicador da lei deve dar oportunidade para as outras medidas diversas da prisão, arroladas no art. 319 do CPP, testando a eficácia dessas e rompendo com a cultura inquisitorial-encarcerizadora que predomina. Não pode uma medida cautelar ser derivada de juízo abstrato de periculosidade, mas sim ser derivada de uma análise judicial fundamentada.  

As medidas estatais restritivas voltadas à garantia da ordem pública podem afetar o estado de inocência, mediante a restrição de liberdades individuais, somente em casos indispensáveis e desde que outra medida não seja possível, porquanto a proteção penal eficiente rege a atual ordem processual, de forma que o Estado deve proteger a sociedade, garantindo a segurança, e, ao mesmo tempo, preservando o alcance dos direitos fundamentais do acusado, evitando medidas que obstem a imediata colocação desse acusado em liberdade. Cabe ao Judiciário impedir, pelos meios possíveis e razoáveis, o aglomerado insalubre dentro dos cárceres como forma de concretude ao princípio da humanidade. A lei pode restringir direitos, liberdades e garantias, desde que seja de forma adequada, necessária e adote cargas coativas proporcionais em relação ao fim que se obstina. Diante de medidas igualmente idôneas, deve-se primar por aquela que seja menos lesiva ao direito sacrificado. Esse seria o caso da substituição da fiança por outra medida cautelar quando o acusado alega a simples falta de recurso econômico, porque se sabe que a eficácia da medida não é usar o meio mais eficaz, mas o suficientemente eficaz.

Na própria interpretação da lei, deve-se optar pela versão de alcance mais favorável ao acusado, sendo que se deve presumir como verdadeira a alegação da falta de condições econômicas do acusado que pleiteia liberdade sem fiança, já que essa mazela econômica é a regra dos encarcerados brasileiros. E ainda, porque se a própria lei de assistência judiciária gratuita já assume essa verdade quando o assistido declara por simples petição ser pobre, porque não se haveria de aplicar essa mesma presunção que decorre da lei àquele que pleiteia o benefício do art. 350 do CPP? Não pode o magistrado temer em aplicar as outras medidas cautelares diversas da prisão e da fiança nesses casos, sob o risco da degeneração e banalização daquelas medidas do art. 319 do CPP. Exige-se uma mudança na mentalidade dos atores judiciários. Cada caso concreto deve ser analisado, mas sem delongas, sem rodeios, e deve-se evitar desigualdade no tratamento dos acusados de diferentes níveis econômicos ao utilizar-se da mesma medida cautelar, porque cada medida do art. 319 do CPP se distingue como norma razoável para tratamento específico a pessoas diversas.


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BRASÍLIA. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. [Processo] : HC 2011 00 2 015531-7 HBC. Rel. Des. Roberval Casemiro Belinati. Diário de Justiça do Distrito Federal. Brasília, 12/09/2011.p. 132.

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Sobre a autora
Suellen da Costa Gonçalves

Servidora do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Pós-Graduada pela Escola da Magistratura do Distrito Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Suellen Costa. Liberdade provisória:: das distorções no campo da fiança criminal a serem corrigidas pelo intérprete. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3843, 8 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26327. Acesso em: 19 abr. 2024.

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