4 Posições contrárias à sua validade : ADI’s no STF
Não obstante o objetivo maior deste trabalho em elucidar as inovações e melhorias para o sistema jurídico com o nascimento do regime diferenciado de contratações públicas, não se pode deixar de tratar de algumas das posições contrárias à sua consonância com a Constituição Federal de 1988.
A priori, deve ser dito que há exatos 20 anos vigora no país a Lei 8666/93, que não acompanhou a modernização de tantas outras normas de direito público e da própria sociedade, e tornou-se ultrapassada em relação aquilo previsto como seu objeto: a regulamentação do regime geral de licitações públicas.
A criação do RDC veio como uma forma de dar alento às necessidades do Poder Público, que para cumprir as tarefas a ele delegadas pelo povo, necessariamente deve estar atrelado à regra constitucional da licitação pública, mas que passou a enxergar problemas gerados pela própria obsolescência da lei 8.666, como lacunas e procedimentos burocráticos e dificultosos, alheios aos princípios e regras tragos pela CF/88 em seu artigo 37.
Todavia, obviamente não se pode justificar a criação e a manutenção da vigência de uma lei que não observe as regras da Constituição Federal pelo simples fato de que sua possível extirpação do mundo jurídico poderia inviabilizar a realização de três eventos esportivos mundiais.
Não há outro caminho para o legislador infraconstitucional se não aquele em que se vincula às normas e princípios constitucionais para a edição de qualquer que seja o diploma normativo.
Os entendimentos que serão aqui expostos dizem respeito a estudos doutrinários, e mesmo sendo de respeitados autores, por si só não são capazes de dar caráter definitivo de inconstitucionalidade à lei, visto que esta declaração somente pode ser feita pelo Supremo Tribunal Federal, em matéria de Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Duas críticas iniciais à Lei nº 12.462 podem ser verificas na possível ofensa à regra estabelecida no art. 37, XXI da CF/88, in verbis:
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
A falta de harmonia do RDC ao dispositivo em comento recairia primeiramente na “imprecisão do que sejam obras, serviços e compras efetivamente voltados aos eventos esportivos internacionais, já que a lei não indica os respectivos parâmetros”. (CARVALHO FILHO, 2012). Como segunda ofensa, de acordo com o mesmo autor, se observa quando da criação do instituto da contratação integrada:
Outra impugnação recai sobre o regime da contratação integrada (art. 9º, §1º), que contempla a possibilidade de um só interessado ter a seu cargo não só a elaboração dos projetos básico e executivo, como também a sua própria execução, concentrando atividades que, por sua natureza, reclamaria executores diversos. Aqui também haveria vulneração ao art. 37, XXI, da CF, por afetar o princípio da ampla competitividade consagrado em sede constitucional.
Adiante, deve ser também exposta a posição daqueles que entendem ser inconstitucional a disposição do artigo 6º da lei, pois esta inovou ao determinar o sigilo do orçamento estimado para a contratação, até o encerramento da licitação, com acesso restrito apenas aos órgãos imbuídos de controle externo e interno.
Possivelmente a intenção do legislador com a adoção de tal norma era a de evitar o superfaturamento de obras e serviços nos quais houvesse a escolha pelo RDC. Sendo o orçamento divulgado apenas no fim da licitação, um particular apresentaria suas propostas independentemente das dos demais participantes, o que evitaria que estes entrassem em qualquer tipo de acordo em relação às propostas apresentadas.
Cammarosano (2012, p.39) apresenta como uma das possíveis justificativas para a instituição de tal previsão a seguinte, em relação às atitudes tomadas pelos participantes da licitação:
Estes, sabendo de antemão quais os valores orçados pela Administração, e por ela assim fixados, como referenciais para decisões que venha a tomar em face do que for proposto pelos que acorrem ao certame, poderiam, de comum acordo, acertarem-se quanto aos valores a consignarem em suas respectivas propostas, para a consecução dos resultados que almejam, deixando, cada qual, de disputar diretamente o objeto do certame, como seria mister, apresentando preços que lhes fossem realmente factíveis em razão de seus próprios cálculos e empenho em vencer a licitação.
Sobre esta justificativa, o mesmo autor entende ser infundada, visto que a simples existência desta nova previsão legal não afasta a possibilidade de haver conluio entre os licitantes, visto que sendo sigiloso ou não, o orçamento obedece a médias de valores já conhecidos pelas empresas, atentas ao que o mercado oferece em matéria de preços.
Nas palavras de Ferreira e Santos (2012, p. 8), “tal norma é inconstitucional, e somente pode ser aproveitada se aplicada de acordo com o princípio da publicidade expresso nos artigos 5º, XXXIII, e 37, caput, da CF”.
Portanto, em relação ao artigo 6º, a Lei nº 12.462/11 estaria acometida de inconstitucionalidade por ofensa direta ao princípio da publicidade dos atos administrativos, estampado nos dispositivos mencionados acima.
E é justamente esta ofensa à Constituição Federal um dos objetos da ADI nº 4.645, posta a julgamento pelo STF por iniciativa dos partidos políticos PSDB, DEM e PPS.
Como argumento para a inconstitucionalidade do dispositivo em comento, na inicial da ADI é mencionado que a regra constitucional do sigilo foi invertida no RDC, visto que para a CF/88 a publicidade dos atos da administração pública é a regra, somente sendo permitido o sigilo em casos excepcionais, porém naquele ficou estabelecido o sigilo como regra presumida.
Para os autores da Ação Direta, “as informações relativas à atuação estatal são todas elas, em princípio, públicas”, o que fundamenta e torna possível o conhecimento e o controle da ação estatal pela sociedade.
A Procuradoria Geral da República se manifestou nos autos por intermédio do Parecer nº 6212, opinando pela procedência dos pedidos da inicial.
Não obstante o mencionado, a ADI 4.645, que foi autuada no STF em 26/08/2011 com pedido de medida cautelar, continua sem decisão cautelar, e muito menos decisão de mérito.
De igual sorte, dever dito que foi objeto da ADI 4.645 o já mencionado instituto da contratação integrada e a possibilidade de remuneração variada ao licitante, sob o argumento de que estes ofenderiam os princípios da eficiência, da moralidade administrativa, e da isonomia.
Mudando-se o foco das discussões ora tragas, não menos importante e impactante foi o ajuizamento, pelo Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, da ADI 4.655, distribuída por prevenção ao Ministro Luiz Fux, tendo em vista ter recebido a primeira ação contra o RDC.
Vários foram os argumentos do Ministério Público Federal contrários à Lei 12.462 de 2011, e o primeiro diz respeito à inconstitucionalidade formal, fundamentada na conversão em lei da Medida Provisória 527/11. O intuito originário para a sua edição foi o de modificar a estrutura organizacional e as atribuições dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, porém, por intermédio de uma emenda parlamentar introduziu na MP os dispositivos que posteriormente deram origem ao RDC.
Para o Procurador-Geral da República, esta prática flagrantemente violou o devido processo legislativo e o princípio da separação dos Poderes, pois a edição de Medida Provisória é atribuição exclusiva do Presidente da República, conforme preceitua o artigo 62 da CF/88.
Além deste, outro objeto da ADI foi a ofensa à garantia de igualdade de condições aos participantes da licitação, visto que a norma não define parâmetros mínimos que possibilitem a identificação das obras, serviços e compras que devam seguir o rito do RDC, transferindo-se ao Poder Executivo o poder de decisão de forma discricionária.
Foi também dita inconstitucional, da mesma maneira que na ADI 4.645, a possibilidade de contratação integrada de obras e serviços de engenharia, sem prévia definição do objeto por meio do projeto básico, o que levaria ao conhecimento das características e do valor das obras somente após a assinatura do contrato, bem como o procedimento de pré-qualificação permanente, que impediria a ampla competitividade entre os concorrentes.
Estes são portanto alguns dos argumentos contrários à validade e constitucionalidade do RDC, expostos pela doutrina e discutidos em vias de Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Todavia, em relação às ADI’s no Supremo, não foi proferida ainda qualquer decisão de mérito que impugnasse os dispositivos do novo regime de contratações públicas.
Há de se anotar que caso o julgamento das demandas não seja realizado até certo período, pode ser que haja a perda do objeto das mesmas, um risco por uma possível decisão proferida após a realização dos eventos esportivos.
O certo é que por enquanto a Lei nº 12.462/11 continua a vigorar com suas inovações e bons resultados práticos para a Administração Pública. Até que haja decisão de mérito pelo STF, é plausível e legítima a prerrogativa do gestor público de se valer do RDC para a contratação de um particular interessado em executar as obras e serviços atinentes à copa do mundo e aos jogos olímpicos.
5 A transitoriedade da Lei e a possível aplicação em situações posteriores a 2016
Facilmente se verifica pelo objeto do RDC, e pelas situações em que este se aplica, que sua concepção se deu para normatizar procedimentos de licitação específicos em relação à abrangência de sua matéria, e com efeitos previamente delimitados no tempo.
É regra no estado brasileiro, conforme disposto no art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, que as leis possuam vigência até que outra a modifique ou a revogue, exceto em se tratando de lei temporária.
Leis temporárias são aquelas que já nascem com a função de balizar situações transitórias, ou seja, com prazo de vigência prefixado, estabelecido pela própria lei.
Neste sentido a Lei nº 12.462/11 possui caráter temporário, visto prever a sua destinação final às obras e serviços ligados aos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro.
Para Zymler e Dios (2013, p.15), “a lei não deixa também de explicitar uma limitação temporal para aplicação do novo regime”, pois “não haveria que se falar na aplicação da nova lei depois de realizados os jogos olímpicos de 2016”.
O Tribunal de Contas da União, tendo em vista ser um dos órgãos incumbidos de efetivar o controle externo das ações governamentais relacionadas à realização dos eventos esportivos, tem se manifestado em diversas ocasiões sobre as condutas da administração pública perante a adoção do regime diferenciado de contratações públicas.
Em uma destas manifestações, se posicionou sobre a importância da obediência ao caráter temporário do RDC em relação às necessidades oriundas da copa de 2013, quando da prolação do acórdão nº 1036/2012, de relatoria do ministro Valmir Campelo, conforme abaixo:
(...) faz-se oportuno alertar o Ministério do Esporte, o Ministério das Cidades, a Infraero, a Secretaria dos Portos, o Grupo Executivo da Copa do Mundo FIFA 2014 (GECOPA) e o Comitê Gestor da Copa do Mundo FIFA 2014 (CGCOPA) que a utilização do Regime Diferenciado de Contratação Pública (RDC) envolve, como pré-requisito, a necessidade de as ações objeto dos certames estarem concluídas anteriormente à Copa do Mundo de 2014, tal qual expressamente previsto no art. 1º da Lei 12.462/2011. (Rel. Min. Valmir Campelo, Sessão 02.05.2012.)
Após a decisão colegiada, a Infraero opôs embargos de declaração, fundamentado na existência de omissões e contradições na decisão. Acolhidos os embargos, foi feita a readequação do texto emitido no acórdão 1036/2012, o qual passou a assim dispor:
9.1. alertar o Ministério do Esporte, o Ministério das Cidades, a Infraero, a Secretaria dos Portos, o Grupo Executivo da Copa do Mundo FIFA 2014 (GECOPA) e o Comitê Gestor da Copa do Mundo FIFA 2014 (CGCOPA) que a utilização do RDC em obras com término posterior à Copa do Mundo de 2014 – ou às Olimpíadas de 2016, conforme o caso – só é legítima nas situações em que ao menos fração do empreendimento tenha efetivo proveito para a realização desses megaeventos esportivos, cumulativamente com a necessidade de se demonstrar a inviabilidade técnica e econômica do parcelamento das frações da empreitada a serem concluídas a posteriori, em atendimento ao disposto nos arts. 1º, incisos de I a III; 39 e 42 da Lei 12.462/2011, c/c o art. 23, § 1º, da Lei 8.666/93 (Acórdão nº. 1538/2012-Plenário, TC 010.765/2010-7, rel. Min. Valmir Campelo, 20.6.2012).
Portanto faz-se necessário que se traga este posicionamento do TCU, retificado pelo acórdão 1538 de 2012. Nele o órgão plenário entendeu que o RDC pode se perpetuar no tempo mesmo após o término dos jogos olímpicos de 2016. Para tanto, as obras devem ter sido iniciadas antes deste termo final e possuir ao menos em parte, efetivo proveito para a realização dos eventos, bem como devem ser demonstradas a inviabilidade técnica e econômica de se parcelar a empreitada já iniciada.
Todavia, não obstante os comentários tecidos nos parágrafos anteriores, inclusive com o entendimento do TCU, percebe-se que principalmente após a inclusão legislativa da previsão de aplicação do RDC às ações do PAC e nas obras e serviços de engenharia no âmbito dos sistemas públicos de ensino e do SUS, a Lei 12.462 deixou definitivamente de lado o caráter de transitoriedade de suas normas.
Passará a ter efeito postergado para além do ano da realização dos jogos olímpicos, possuindo então o caráter de uma norma como outra qualquer, no sentido de que sua vigência obedecerá à regra da indeterminação, conforme disposto na LICC, pertencendo ao mundo jurídico até que outra lei a modifique ou revogue.
6 Conclusão
Após a escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, iniciou-se no país uma grande mobilização para a construção da infraestrutura dos jogos, de forma a atender a todos os prazos estabelecidos pela FIFA e pelo COI.
Este fato inevitavelmente demandaria grande trabalho para o Poder Público em um curto período de tempo, algo talvez nunca vivenciado no país. Seria necessária alternativa para a realização de grandes projetos arquitetônicos e a execução de imensas obras sem que fossem infringida a Lei Maior, e as normas licitatórias vigentes.
O Poder Executivo Federal, com seu arcabouço de atribuições e prerrogativas constitucionais, se mobilizou para de forma ágil aprovar um novo regime de contratações públicas, por saber dos dificultosos procedimentos da Lei nº 8.666/93, os quais poderiam ser empecilho para a eficiência da realização dos eventos internacionais.
Foi desta forma que, mesmo estando em plena tramitação o Projeto de Lei PL 1.292/95, o qual altera a lei 8.666/93, atento a tantos clamores pela modificação do regime geral de licitações, vigente por duas décadas e carente de modernismo, o Poder Executivo optou pela edição de uma lei que desse contornos específicos às muitas contratações públicas inevitavelmente e naturalmente necessárias para os jogos sediados pelo país.
Com isso, foi introduzido no sistema legal pátrio, mediante a Lei nº 12.462, de 2011, o Regime Diferenciado de Contratações Públicas. Há de se dizer, moderno e inovador em relação ao clássico regime da lei geral de licitações, atento às necessidades transitórias do país, e porque não dizer, um laboratório de experiências para o futuro dos processos de licitação e contratações públicas no país.
Isto porque o que se vê desde o início da vigência do novo regime é que este poderá servir para o Poder Público não apenas para as necessidades advindas da realização dos eventos do esporte, mas para uma possível e promissora aplicação em outras situações alheias àquelas motivadoras de sua criação.
Os benefícios tragos desde o primeiro ano de vigência para os órgãos e entes da Administração Pública direta e indireta, e por conseqüência ao próprio estado e povo brasileiro, foram vistos esculpidos na eficiência dos procedimentos de contratação, na redução dos gastos e prazos, na maior preocupação com o meio ambiente, na geração de postos de trabalho, dentre outros.
Há de se falar que mesmo havendo posições contrárias à sua constitucionalidade em diversos aspectos, não se pode falar que o RDC é inconstitucional, visto não haver decisão de mérito das ADI’s que tramitam no Supremo Tribunal Federal. Sua vigência é legítima e comprovadamente benéfica ao interesse público.
Em relação à eficácia temporal, mesmo que o antes mencionado projeto de lei seja aprovado e modernize o regime geral de licitações, como realmente é necessário que ocorra, é provável que ele acabe incorporando regras do próprio RDC, que se mostra um bom “protótipo” para a modernização legal que provavelmente acontecerá.
Contudo enquanto isto não ocorra, a Lei nº 12.462/11 continuará vigendo, com eficácia garantida e estendida no tempo, tendo em vista a já mencionada previsão de aplicabilidade para o PAC, e para os sistemas públicos de ensino e de saúde.
De fato, o que a experiência recente vem demonstrando é que os benefícios tragos pelo RDC superaram a desconfiança inicial por aquilo que era novo, e este vislumbra ares de futuro, mostrando que já foi concebido com o intuito muito maior do que apenas morrer em 2016.
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Nota
[1] Disponível em: <http://www.infraero.gov.br/images/stories/Infraero/Contas/Relatorios/relatorio_anual 2012.pdf>. Acesso em: 05 mai. 2013
Abstract: This work is aimed at reviewing the modern institute named Differentiated Regime for Public Contracting (DRC), created by the law 12.462/2011, specifically about the innovations and benefits to brazilian legal system, and about the discussion around its constitutionality and legality.
Keywords: Differentiated Regime for Public Contracting (DRC). Law n. 12.462/2011. Innovations. Constitutionality. Legality.