O fim do fator previdenciário e a valorização do princípio constitucional da isonomia

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05/02/2014 às 09:10
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3. COBERTURA E ORGANIZAÇÃO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

Atualmente a previdência social brasileira comporta o Regime Geral de Previdência Social e o Regime Facultativo Complementar de Previdência Social, sendo o primeiro o alvo pretendido nas explanações que se seguem.

Ao Ministério da Previdência e Assistência Social compete a administração da Previdência Social, enquanto as políticas das ações concernentes à mesma são executadas pelo INSS, autarquia federal instituída em 1990.

Atentando para as disposições contidas no Plano de Benefícios da Previdência Social, Lei 8.213/91, assimila-se que se trata de um regime contributivo. Ou seja, a previdência é "organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória", nos termos do artigo 201, da CF/88.

Conforme menciona o artigo 1º do aludido Plano, a finalidade da previdência é

assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.

Dentre as contingências citadas apenas a hipótese de desemprego involuntário não é mais resguardada pela previdência por ser objeto de lei específica.

A Lei garante a cobertura destas contingências aos seus beneficiários, sendo estes os segurados propriamente ditos bem como seus dependentes.

Na seara previdenciária também foram estabelecidos objetivos/princípios para orientação das ações e garantia de tratamento equânime aos beneficiários. Alguns deles são congêneres ao determinado pela Seguridade Social, já abordados anteriormente, logo, basta relatar os extraordinários. Para tanto o artigo 2º da Lei já mencionada bem destaca esses elementos:

I - universalidade de participação nos planos previdenciários;

IV - cálculo dos benefícios considerando-se os salários-de-contribuição corrigidos monetariamente;

VI - valor da renda mensal dos benefícios substitutos do salário-de-contribuição ou do rendimento do trabalho do segurado não inferior ao do salário mínimo;

VII - previdência complementar facultativa, custeada por contribuição adicional;

A universalidade referida no inciso I ressalta a possibilidade/liberdade de qualquer cidadão participar dos planos previdenciários, sejam eles públicos ou privados.

A regra trazida pelo inciso IV relembra a característica da contributividade do sistema previdenciário, de forma que para se chegar ao valor do benefício é essencial que sejam considerados os salários que serviram de base para o financiamento e, logicamente, sendo estes atualizados monetariamente.

O inciso VI visa garantir que o mínimo essencial seja proporcionado ao beneficiário impossibilitado de prover seu próprio sustento. Ainda que, pelos cálculos do tempo de contribuição, o valor do benefício esteja aquém do mínimo, este lhe será assegurado.

A última disposição trata da liberalidade de participação em plano previdenciário complementar. Neste caso a contribuição é adicional, totalmente independente do Regime Geral.

Com relação às prestações previdenciárias em si, cabe apenas informar que a lista é expressiva devido à quantidade de contingências sociais acauteladas e volume de beneficiários abrangidos pela Previdência Social. Considerando que cada benefício ou serviço contém uma série de peculiaridades a seu respeito e que a análise pormenorizada desta seara não guarda relação com o intuito maior deste estudo passa-se, então, ao debate primordial.


4.O FATOR PREVIDENCIÁRIO

No Regime Geral do atual sistema previdenciário para se obter o valor do salário de benefício é necessário fazer-se um cálculo predeterminado em lei. Horvath Júnior (2005, p. 155) leciona que

o salário de benefício é o valor básico utilizado para definir a renda mensal dos benefícios, inclusive dos regidos por normas especiais. Na realidade, não é nem salário, nem benefício; é apenas uma etapa da apuração do valor da renda mensal do benefício.

Ainda neste sentido, o artigo 29 da Lei 8.213/91, com a redação dada pela Lei 9.876/99, traz o conceito de salário de benefício para as aposentadorias que, neste ínterim, mais nos interessa. Segundo o referido dispositivo legal, para as aposentadorias, por tempo de contribuição e por idade, “o salário de benefício consiste na média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo, multiplicada pelo fator previdenciário”.

Conforme estipulação da lei 9.876/99, no seu artigo 7º, o segurado que tenha direito a aposentar-se por idade pode optar pela não aplicação do fator previdenciário.

Portanto, o fator previdenciário consiste numa fórmula utilizada para se calcular o valor da renda mensal da aposentadoria por tempo de contribuição, de forma compulsória, e da aposentadoria por idade, facultativamente. Essa fórmula leva em consideração a idade do sujeito ao aposentar-se, o seu tempo de contribuição para o sistema, a alíquota de contribuição correspondente a 0,31 e a sua expectativa de sobrevida. Ressalte-se que a expectativa de sobrevida é obtida a partir do levantamento de dados feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada na “tábua completa de mortalidade, considerando-se a média única para ambos os sexos”. (ibidem)

O aludido fator surgiu após a Emenda Constitucional n.º 20/98 que, complementando a reforma previdenciária, trouxe esta ideia com o fito de se buscar o equilíbrio financeiro e atuarial que foi inserido no texto constitucional como meta a ser alcançada quando da regulamentação da forma de cálculo.

A fim de entender o sentido do termo equilíbrio financeiro e atuarial, sem, contudo, extraviar-se do rumo da matéria, relevantes são as palavras de Clemilton Barros (2012):

Por equilíbrio financeiro deve ser entendida a justa relação entre os valores arrecadados e os valores despendidos com os custos securitários, consistindo no equilíbrio da equação previdenciária, ou seja, a igualdade absoluta ou aproximada nas contas da Previdência Social, considerados os valores arrecadados e os valores gastos a título de pagamento de prestações previdenciárias, de modo que resulte em zero ou próximo disso.

[...]

Por outro lado, o equilíbrio atuarial é a relação entre os riscos protegidos e os recursos disponíveis sob as perspectivas do presente e do futuro, tudo associado à previsibilidade do sistema.

Em síntese, trata-se da busca incessante de se equilibrar receitas e despesas no sistema previdenciário, levando-se em consideração possíveis alterações demográficas, econômicas e sociais. É a perseguição da sustentabilidade do sistema examinando ponderadamente o futuro.

Anterior à nova regra de cálculo, a CF/88 trazia no seu artigo 202 esta regulamentação nos seguintes termos:

É assegurada a aposentadoria, nos termos da lei, calculando-se o benefício sobre a média dostrinta e seisúltimos salários de contribuição, corrigidos monetariamente mês a mês e comprovada e regularidade dos reajustes dos salários de contribuição de modo a preservar seus valores reais e obedecidas as seguintes condições [...] (grifo nosso)

Até então, a matéria era totalmente regimentada nesta redação da CF/88. Com a reforma da previdência a competência passou à lei ordinária. Fato este que fundamenta a constitucionalidade da Lei 9.876/99, editada justamente para a especificação e complementação da norma programática.

Conforme será abordado em linhas posteriores, a Previdência Pública adota, substancialmente, o regime de repartição simples para seu financiamento. Contudo, existe nessa modalidade fragilidades que têm potencial para desestabilizar contas e, consequentemente, afetar o equilíbrio financeiro e atuarial.

Ibrahim (2009, p. 42) aponta a variação demográfica como principal fator que influi negativamente na repartição simples, ou seja, a taxa de natalidade e a expectativa de sobrevida.

Complementando a ideologia do autor supracitado, Sasaki e Menezes (2012, p. 180) ressaltam a questão da informalidade no mercado de trabalho:

Baseada na solidariedade coletiva, a seguridade social temcomo fonte principal as contribuições dos empregadores, constituindoobrigação trabalhista e previdenciária. A criação de empregoscom carteira de trabalho, portanto, é desejável como garantia de financiamento da proteção social dos trabalhadores e de suasfamílias.O crescimento do trabalho informal sem a filiação previdenciáriados trabalhadores tem sido apontado como fator queimpacta a arrecadação previdenciária.

Tendo em vista essa “fragilidade” no método de financiamento o legislador, tentando combatê-la, criou o fator previdenciário, introduzindo técnicas do regime de capitalização. Mais especificamente, passou-se a utilizar para efeitos de benefícios programados, como aposentadoria por idade e tempo de contribuição, um regime de financiamento misto denominado capitalização virtual.

Para melhor compreensão, necessária é a diferenciação entre tais institutos. No regime de capitalização puro há cotização individual que financiará as prestações futuras ao sujeito contribuinte, sendo aplicadas taxas de juros variáveis. O que ocorre é uma espécie de pré-financiamento, uma vez que o trabalhador, através de suas contribuições ao longo da vida laboral, acumulará o importe necessário para gozar de uma aposentadoria, por exemplo. Este modelo assemelha-se a uma poupança e é comum nos regimes privados de previdência. (IBRAHIM, 2009, p. 40)

Por sua vez, a capitalização virtual se distingue por não haver uma capitalização individualizada, pois os valores recolhidos dos trabalhadores ativos subsidiarão os benefícios concedidos aos inativos desta mesma geração. Todavia, estes benefícios serão calculados tendo por base as cotizações realizadas aplicando-lhes o coeficiente atuarial incorporado pela reforma previdenciária. (IBRAHIM, 2009, p. 42)

Vale lembrar que este sistema de capitalização virtual, por suas características peculiares, não se aplica, inevitavelmente, à aposentadoria por idade em virtude da faculdade de utilização do fator previdenciário.

Assim, para realização do cálculo do salário de benefício da aposentadoria por tempo de contribuição é utilizada a seguinte fórmula, conforme doutrina de Horvath Júnior (2005, p. 156-157):

S.B. = M x (F)

Onde:

S.B = salário de benefício

M = média de 80% dos maiores salários de contribuição do segurado, apurados entre julho de 1994 e o momento do requerimento da aposentadoria, corrigidos monetariamente [...]

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F = fator previdenciário

Sendo que este último é obtido da seguinte forma:

Onde:

f = fator previdenciário

Es = expectativa de sobrevida no momento da aposentadoria

Tc = tempo de contribuição até o momento da aposentadoria

Id = idade no momento da aposentadoria

a = alíquota de contribuição correspondente a 0,31. Este valor surge da seguinte justificativa. 20% é a contribuição patronal + 11% (alíquota máxima do empregado = 31%/100 = 0,31).

4.1Direito comparado

As medidas adotadas para combater o desequilíbrio financeiro do sistema previdenciário brasileiro muito se assemelham com os procedimentos realizados por outras nações. Na maioria das hipóteses o que se observa é a aplicabilidade do requisito idade mínima para concessão de aposentadorias.

No Brasil, conforme disposição constitucional, para aposentadoria por tempo de contribuição é exigido apenas o cumprimento de cotização por 35 anos, se homem, e de 30 anos, se mulher. No entanto, o texto legal traz a ressalva para os professores, que terão este tempo exigido reduzido em cinco anos.

Já para a aposentadoria por idade deve-se obedecer à idade mínima de 65 anos, se homem, e de 60 anos, se mulher. Para esta opção de aposentadoria também há uma exceção. Haverá redução em cinco anos no limite de idade “para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal”. (CF/88, artigo 201, § 7º, inciso II)

Em ambos os casos há determinação quanto à carência, que deve ser de 180 meses ou contribuições, para os dois sexos.

Há ainda, na Previdência brasileira, a possibilidade de aposentadoria proporcional ao tempo de contribuição em que, segundo as informações trazidas no site do Ministério da Previdência e Assistência Social, os homens podem requerer aposentadoria proporcional aos 53 anos de idade e 30 anos de contribuição, mais um adicional de 40% sobre o tempo que faltava em 16 de dezembro de 1998 para completar 30 anos de contribuição. As mulheres têm direito à proporcional aos 48 anos de idade e 25 de contribuição, mais um adicional de 40% sobre o tempo que faltava em 16 de dezembro de 1998 para completar 25 anos de contribuição.

A possibilidade de aposentadoria proporcional mencionada funciona como regra de transição, pois essa modalidade foi extinta do ordenamento jurídico com a publicação da Emenda Constitucional nº 20/98. Portanto, apenas tem direito à proporcional quem já contribuía para o sistema até dezembro de 1998.

Dentre diversos exemplos, interessante é a análise, ainda que de forma sintética, das regras impostas por alguns ordenamentos jurídicos estrangeiros.

Segundo as informações trazidas na publicação de Exame.com (2010) na Alemanha, para aposentadoria exige-se 65 anos de idade. No entanto, há possibilidade de se requerer o benefício se o sujeito cumular 63 anos de idade com 35 anos de contribuição. Ocorrendo uma contribuição de 45 anos pode-se aposentar sem observância do requisito idade.

Na Espanha utilizam-se regras bastante similares às aplicadas no Brasil. Requer-se uma idade mínima apenas para aposentadoria por idade, enquanto para a outra modalidade são exigidos 35 anos de cotização. Os espanhóis têm ainda a possibilidade de receber uma pensão correspondente a 50% da renda cotizada se contar com 15 anos de contribuição.

Para os italianos as normas são completamente diferenciadas. Em suma, nas leis previdenciárias da Itália não há chance de aposentadoria completa, vez que o cálculo do valor do benefício será feito apenas de acordo com o saldo arrecadado para os cofres do sistema durante os anos de trabalho do indivíduo.

Semelhantemente ocorre na Suécia, pois não há neste país um “conceito de aposentadoria com 100% dos rendimentos”. Há apenas a estipulação de idade mínima para o requerimento do benefício, que é de 61 anos.

Nas normas suecas existe um coeficiente análogo ao fator previdenciário brasileiro. Contudo, este coeficiente varia conforme a idade do sujeito, com vistas a não prejudicá-lo quando do recebimento de seu benefício, que terá por base o aporte acumulado ao longo dos anos através das contribuições.

Na Grécia, além da estipulação de idade mínima, há previsão de “incentivos para quem trabalhar até os 67 anos de idade”.

No ordenamento jurídico dos Estados Unidos a idade mínima para aposentadoria por tempo de contribuição é de 62 anos, mas seu valor será correspondente à cotização feita ao sistema. Para que os rendimentos sejam integrais é demandada contribuição de 35 anos mais a idade de 66 anos.

Em todos estes países há cautela quanto à disparidade de tempo de contribuição e idade entre os segurados, seja com a utilização do requisito idade mínima ou aplicação de coeficiente que considere as características pessoais do beneficiário. O que se observa é que em todos os casos há uma alteração contínua nos métodos mencionados, principalmente quanto à idade mínima, pois a questão do aumento da expectativa de sobrevida é um fato certo e que afeta todo o mundo. Logo, estas alterações se fazem necessárias a fim de preservar o sistema de seguro social, evitando sua decadência financeira que, sem dúvida, acarreta inúmeros problemas ao Estado e à sociedade.

No Brasil também acontecem alterações buscando este objetivo, todavia estas alterações devem estar sempre alinhadas com os preceitos fundamentais consagrados na Carta Constitucional.

Ocorre que o legislador, atentando para a ideologia da reforma previdenciária iniciada em 1998, criou a nova forma de cálculo dos benefícios visando equilibrar o sistema. Porém, indiretamente, acabou inserindo uma idade mínima para aposentadoria por tempo de contribuição sem atentar para a observância do tratamento isonômico entre os segurados. Desta feita, estabeleceu-se um desalinho no ordenamento jurídico, provocando instabilidade e insegurança aos beneficiários da previdência pública.

Neste sentido, Hugo L. Silva (2009) demonstra um dos pontos negativos:

[...] apesar de o fator previdenciário propiciar uma pseudo-taxa de juros capaz de capitalizar ou não o seu benefício composta da idade na data da aposentadoria e do tempo de contribuição, a expectativa de sobrevida, entendida aqui como uma variável exógena, pode ser capaz de distorcer qualquer previsão realizada pelo segurado de uma provável data para se aposentar, tendo por vezes que contribuir mais para se aposentar com menos.

O referido autor menciona ainda que o intuito do legislador quando da criação do fator foi de “incentivar o filiado ao sistema a manter-se nesta posição por mais tempo, contribuindo para uma aposentadoria de valor mais vantajoso e ao mesmo tempo, equilibrar o fluxo de receitas e despesas da Previdência Social”.

Teoricamente, a proposta da utilização desse fator atuarial é inegavelmente eficaz, vez que possibilita ao sistema previdenciário a estabilização de suas contas quando estas são ameaçadas pela redução da taxa de natalidade cumulada com o aumento da expectativa de sobrevida. No entanto, a sustentabilidade do instituto não deve desvirtuar nem desrespeitar direitos individuais garantidos constitucionalmente. Importante ressaltar que não há que se falar em sobreposição do interesse público sobre o privado, pois o que acontece é o desprezo do princípio da isonomia ao tornar possível que indivíduos em condições semelhantes sejam tratados de forma totalmente distintas, restando-lhes o prejuízo.

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Sobre a autora
Érica de Lourdes Mendes

Advogada Previdenciarista

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