VII – A PRISÃO PREVENTIVA
Por força do art. 313, III do Código de Processo Penal será admitida esta prisão provisória, independentemente do crime e da pena máxima a ele sancionada (uma injúria, por exemplo), “se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.” (Alterado pela L-012.403-2011).
Aqui mais um absurdo: permite-se que qualquer que seja o crime (doloso ou culposo), ainda que apenado com detenção, seja decretada a prisão preventiva, bastando que estejam presentes o fumus commissi delicti (indícios da autoria e prova da existência do crime – art. 312, CPP) e que a prisão seja necessária para garantir a execução das medidas protetivas de urgência. A lei criou, portanto, este novo requisito a ensejar a prisão preventiva.
“A primeira observação que se faz é que, com a alteração legislativa, o artigo 313, inciso III do Código de Processo Penal passou a prever, além de mais uma hipótese legal para a prisão preventiva, qual seja a possibilidade de sua decretação nos crimes dolosos praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, mais um fundamento daquela custódia cautelar, consubstanciado na garantia da execução das medidas protetivas de urgência, previstas na Lei 11.340/06.Tecnicamente, melhor seria se essa última parte da disposição legal tivesse sido inserida no artigo 312 do Código de Processo Penal. Entretanto, o equívoco do legislador não lhe retira a natureza de verdadeiro fundamento da prisão preventiva, calcada que está na necessidade da restrição. Assim, a partir da vigência da Lei 11.340/06, é possível a decretação da prisão preventiva para a garantia das medidas protetivas de urgência previstas na referida lei.”[56]
Não seria mais necessária a demonstração daqueles outros requisitos (garantia da ordem pública[57] ou econômica, conveniência da instrução criminal e aplicação da lei penal, além da magnitude da lesão causada - art. 30 da Lei nº. 7.492/86, que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional[58]).
A respeito, veja-se a preocupação dos juristas espanhóis Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Dominguez:
“Tampoco puede atribuirse a la prisión provisional un fin de prevención especial: evitar la comisión de delitospor la persona a la que se priva de libertad. La propia terminología más frecuentemente empleada para expresar tal idea – probable comisión de ´otros´ o ´ulteriores´ delitos – deja entreverque esta concepción se asienta en una presunción de culpabilidad. (…) Por las mismas razones no es defendible que la prisión provisional deba cumplir la función de calmar la alarmasocialque haya podido producir el hecho delictivo, cuando aún no se ha determinado quién sea el responsable. Sólo razonando dentro del esquemalógico de la presunción de culpabilidad podría concebirse la privación en un establecimiento penitenciario, el encarcelamiento del imputado, comoinstrumento apaciguador de las ansias y temores suscitados por el delito. (…) La vía legítimaparacalmar la alarmasocial – esa especie de ´sed de venganza´ colectiva que algunos parecen alentar y por desgracia en ciertos casos aflora – no puede ser la prisión provisional, encarcelando sin más y al mayornúmero posible de los queprima facie aparezcan comoautores de hechos delictivos, sinounarápida sentencia sobre el fondo, condenando o absolviendo, porquesólo la resolución judicial dictada en un proceso puede determinar la culpabilidad y la sanción penal.”[59]
Obviamente, mais uma vez não se observou o princípio da proporcionalidade[60], perfeitamente exigível quando se trata de estabelecer requisitos e pressupostos para a prisão provisória; aqui, prende-se preventivamente quando, muito provavelmente, não haverá aplicação de uma pena privativa de liberdade (quando da sentença condenatória). Como ensina Alberto Bovino, não é possível “que a situação do indivíduo ainda inocente seja pior do que a da pessoa já condenada, é dizer, de proibir que a coerção meramente processual resulte mais gravosa que a própria pena. Em conseqüência, não se autoriza o encarceramento processual, quando, no caso concreto, não se espera a imposição de uma pena privativa de liberdade de cumprimento efetivo. Ademais, nos casos que admitem a privação antecipada da liberdade, esta não pode resultar mais prolongada que a pena eventualmente aplicável. Se não fosse assim, o inocente se acharia, claramente, em pior situação do que o condenado. ”[61]
Incabível, pois, a decretação da prisão preventiva nos termos do art. 313, III do Código de Processo Penal, pois, “não obstante o fato de ocorrer exclusivamente em sede parlamentar a atuação do princípio da proporcionalidade, isso não significa que as disposições normativas penais não possam ser submetidas a um eventual controle constitucional acerca da proporção nelas contidas. Não apenas isto é permitido, mas, acima de tudo, é recomendável quando alguma dúvida houver neste sentido.”[62]
Com o mesmo entendimento, Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Domínguez, advertem que “las medidas cautelares son homogéneas, aunque no idénticas, con las medidas ejecutivas a las que tienden a preordenar.”[63]
Segundo Humberto Ávila, “um meio é proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos direitos fundamentais. Para analisá-lo é preciso comparar o grau de intensidade da promoção do fimcom o grau de intensidade da restrição dos direitos fundamentais. O meio será desproporcional se a importância do fim não justificar a intensidade da restrição dos direitosfundamentais.”[64]
Aliás, no art. 20 da lei já se prevê que “em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial”, podendo o Juiz “revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.”
VIII – A POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A propósito, o Superior Tribunal de Justiça decidiu contrariamente: “A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, concedeu a ordem de habeas corpus, mudando o entendimento quanto à representação prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006. Considerou que, se a vítima só pode retratar-se da representação perante o juiz, a ação penal é condicionada. Ademais, a dispensa de representação significa que a ação penal teria prosseguimento e impediria a reconciliação de muitos casais.” (HC 113.608-MG, Rel. originário Min. Og Fernandes, Rel. para acórdão Min. Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ-SP, julgado em 05 de março de 2009).
Entendemos absolutamente acertada esta última decisão e esperávamos que passasse a ser um importante precedente na própria Corte.
IX – CONCLUSÃO
Diante destas considerações, entendemos que os arts. 17 e 41 da Lei nº. 11.340/2006, além do inciso III do art. 313 do Código de Processo Penal, não devem ser aplicados, pois, apesar de normas vigentes formalmente (porque aprovadas pelo Poder Legislativo e promulgadas pelo Poder Executivo), são substancialmente inválidas, tendo em vista a incompatibilidade material com a Constituição Federal [65]. Relembremos que “não se pode interpretar a Constituição conforme a lei ordinária (gesetzeskonformen Verfassunsinterpretation). O contrário é que se faz.”[66]
Uma coisa é lei vigente, outra é lei válida e outra é lei eficaz.Vejamos a lição de Miguel Reale: “Validade formal ou vigência é, em suma, uma propriedade que diz respeito à competência dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do Direito no plano normativo.”[67] Nem toda lei vigente é válida e só a lei válida e que esteja em vigor deve ser observada pelos cidadãos e operadores de Direito.[68]
Como afirma Enrique Bacigalupo, “la validez de los textos y de las interpretaciones de los mismos dependerá de su compatibilidad con principios superiores. De esta manera, la interpretación de la ley penal depende de la interpretación de la Constitución.”[69]
A propósito, Ferrajoli (que, aliás, já está tergiversando sobre o garantismo penal, mas isso fica para outra oportunidade):
“Para que una norma exista o estéen vigor es suficiente que satisfagalas condiciones de validez formal, condiciones que hacenreferencia a las formas y losprocedimientos de acto normativo, así como a la competência delórgano de que emana. Para que sea válida se necesita por elcontrario que satisfagatambiénlas condiciones de validez sustancial, que se refieren a sucontenido, o sea, a susignificado.” Para o autor, “las condiciones sustanciales de la validez, y de manera especial las de la validez constitucional, consisten normalmente en el respeto de valores – como la igualdad, la libertad, las garantias de los derechos de los ciudadanos.”[70](Grifos no original).
Mais uma vez Janaína Paschoal adverte:
“O perigo que vislumbramos na nova lei é justamente o de, novamente, prevalecer o caminho mais fácil, qual seja o de simplesmente prender-se o agressor, tratando-se como uma ´safada` que gosta de apanhar que, depois de denunciar, se opõe a essa prisão. (...) A idéia de que a Mulher precisa se libertar, psicologicamente, de seu agressor é totalitária, e tão preconceituosa como a que deve se submeter às vontades do marido.”[71]
Ademais, não olvidemos, outrossim, que a exclusão do Juizado Especial Criminal para o processo e julgamento de tais crimes só facilitará o transcurso do prazo prescricional (e a extinção da punibilidade), pois, optando por outros procedimentos (especiais ou sumário) certamente a demora na aplicação da pena será bem maior do que, por exemplo, se houvesse a possibilidade (bem ou mal) da transação penal (com a proposta imediata de uma pena alternativa).
Segundo o jornal Folha de São Paulo, edição online do dia 07 de agosto de 2008,
“o número de denúncias de agressões a mulheres no país mais do que dobrou no comparativo do primeiro semestre deste ano em relação a igual período de 2007. Números apresentados nesta quinta-feira pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres com base no número de serviço 180 --a central de atendimento à mulher-- apontam que de janeiro a junho de 2008 foram feitos 121.891 contra 58.417 em igual período de 2007, num incremento de 107,9%. A lei Maria da Penha, que pune com mais rigidez os agressores de mulheres, completa dois anos hoje. Os dados mostram ainda um crescimento quase três vezes e meio superior na quantidade de pessoas que pretendem se informar sobre a lei. Enquanto no primeiro semestre do ano passado 11.020 ligações foram atendidas com o intuito de prestar esclarecimentos sobre a lei, no primeiro semestre de 2008 os atendimentos foram de 49.025. Distrito Federal, São Paulo, Pará e Goiás lideram o ranking das denúncias. Na outra ponta estão Acre, Maranhão e Amazonas. O levantamento mostra que 61,5% das mulheres informaram sofrer agressões diariamente e outras 17,8% são alvo toda semana de destratos. A maior parte das agressões (63,9%) são praticadas pelos próprios companheiros. Em 58,4% dos casos relatados, os agressores estavam bêbados ou eram usuários de drogas. Segundo a subsecretária Aparecida Gonçalves, da área de Enfrentamento à Violência da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, a maior incidência de denúncias na região Centro-Oeste do país se deve ao que ela considera um maior nível de informação a respeito da legislação que estabelece maior rigor nas punições aos agressores de mulheres. Isso relativiza o fato de Estados do extremo do país apareçam nas últimas colocações. "A cada ano temos uma maior divulgação da lei, e a medida que ela passa a ter uma maior efetividade, isso reflete nas denúncias. Só as respostas efetivas aos casos de agressões virão a fortalecer esses números", afirma Gonçalves. Apesar de a maior parcela das agressões ser cometida quando o parceiro estar drogado ou bêbado, ela afirma que a questão é cultural. "Se fosse só a agressão em si, ele [agressor] bateria num amigo do bar, não na mulher, ao chegar em casa", afirma. Durante cerimônia ocorrida no Palácio do Planalto, foram mostrados também os resultados de uma pesquisa a respeito da lei Maria da Penha. A pesquisa Ibope/Themis (Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero) --esta última uma ONG gaúcha-- revelou que 68% da população brasileira já ouviu falar da lei. Outros 82% conhecem a sua eficácia. A consulta foi realizada entre os dias 17 e 21 de julho, com 2.002 entrevistados em 142 municípios brasileiros. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos. A pesquisa mostra que 32% não conhece e nem ouviu falar da lei. Um quinto dos pesquisados (20%) respondeu acreditar que a lei Maria da Penha coloca o agressor na cadeia e 33% afirmaram que ela inibe a violência doméstica. Após ser agredida, segundo os respondentes, 38% das mulheres procuram as delegacias especializadas de atendimento à mulher e 19% outras delegacias. Para 42% dos entrevistados, as mulheres não procuram serviço de apoio.”
A título de conclusão (e que me perdoem os burrocratas da ABNT), e para refletirmos, oportuna também a transcrição da lição de Roberta Toledo Campos:
“O homem exalta a violência. Virou o grande monstro que ameaça a família. O povo grita por socorro. E o Estado, num ato salvacionista, edita a Lei Maria da Penha. Lógico! Como é inadimplente na implementação dos direitos fundamentais, como educação, saúde, moradia, cultura, emprego etc., e, assim, gerador de muitas das mazelas humanas, faz uso de uma de suas atribuições a mais viável economicamente: o processo legislativo e o sistema penal. Ao criar leis, o Estado transmite ao povo carente de direitos fundamentais a sensação de dever cumprido, já que as leis entram em vigor imediatamente e induzem a ilusão de que agora temos leis fortes, que não deixam mais brechas para a impunidade. (...) Não nos escapa que é momento de refletir sobre a crise da masculinidade e da feminilidade. Há dúvida de que a natureza determina de modo tão sumário a diferença entre masculino e feminino. Homem, mulher, masculino e feminino são construções. Efetivamente, muitos de nós criticamos o modelo masculino ou feminino sob o qual fomos criados. Já se sabe atualmente que é possível ser homem sem ser macho e opressor. O desmoronamento dos modelos tradicionais de gênero é mais uma possibilidade do que uma perda. É a possibilidade de mudança. E é esta crise que nos leva à auto-reflexão para a construção de um novo ser humano. Ser humano este não determinado por sua biologia, mas capaz de encontrar livremente a sua própria identidade, o seu ser, tomando o cuidado para não cometer o erro de supor a possibilidade de uma nova síntese, de uma nova identidade estereotipada. (...) Não é possível diante da principiologia democrática constitucionalizada estabelecer modelos de identidade masculina ou feminina. Estereotipar a identidade em masculino e feminino é, no mínimo, discriminatório. Falar em encontrar uma nova identidade masculina ou feminina é um equívoco. É possível apenas refletir sobre a construção da nova identidade do sujeito constitucional no atual Estado Democrático de Direito.”[72]