Movimentos populares, democracia, pluralismo e direitos fundamentais –

Uma breve análise do atual contexto juridico-social brasileiro

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Os movimentos populares ocorridos no ano de 2013 possuem características que já foram vistas em outros movimentos brasileiros, no entanto o significado jurídico mudou.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo realizar uma breve análise sobre os atuais movimentos populares que ocorreram no ano de 2013 e sua possibilidade dentro do Estado brasileiro, para tanto, valeu-se de um sucinto estudo dos principais movimentos sociais na história do país como um exame dos princípios e direitos fundamentais previsto na Constituição Federal que garantem a possibilidade de existência de tais movimentos, como um exercício democrático.

Palavras-chave: Movimentos populares. Democracia. Pluralismo politico. 


INTRODUÇÃO

É intuitivo concluir que, ao longo de sua história, tenha o Brasil passado por um contingente número de manifestações populares, de maior ou menor magnitude, e com finalidades várias.

Nesse aspecto, em análise as várias manifestações populares ocorridas ao longo do ano de 2013, que tomaram espaços públicos contra o estado atual de coisas – governo, política, serviços públicos e etc. – vislumbramos terreno fértil para estudo sobre a ligação de tais acontecimentos, os quais possuem vínculo tão imediato com a ideia de “governo do povo pelo povo e para o povo”[1] – democracia, fundamento do Estado brasileiro - e com alguns direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Para tanto, primeiro partimos na busca de movimentos populares outros pela história do Brasil e detivemo-nos ao encontrar aqueles que possuíam características assemelhadas e traçamos o paralelismo entre elas. Aqui ressaltamos a necessidade de escolha de algumas características apenas, aquelas que emergiram de maneira mais imediata de nosso processo comparativo, em razão da brevidade do presente trabalho.

Ainda nessa linha, confrontamos tais caracteres à luz do pluralismo e da atual concepção de democracia, porquanto essa constitui expresso fundamento da República brasileira.

Em seguida, falamos dos direitos de reunião e de manifestação do pensamento, que são os direitos fundamentais que entendemos mais imediatamente relacionados à espécie de manifestação popular mencionada.

Por fim, debateremos essa vinculação entre os fatos e o direito, enquanto ciência.


1. ASPECTOS HISTÓRICOS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS BRASILEIROS

Como já assinalado, buscamos na história do Brasil – dentre as diversas manifestações populares - algumas manifestações que ajudaram ao desenvolvimento do presente trabalho, as quais passamos a comentar.

1.1              Revolta Vintista

A Revolta Vintista foi um movimento político que nasceu em Portugal, mas teve várias repercussões em território nacional. Marcado esse movimento, em Portugal, por uma revolução liberal, ocorrida em 24 de agosto de 1820, na cidade do Porto, seus corolários foram sentidos do outro lado do Atlântico, conforme se verá.

O contexto histórico era o seguinte:

Desde a transferência da Corte, Portugal vivia uma situação de penúria e caos, decorrente da devastação provocada pela invasão do país pelas tropas francesas, da aguda crise econômica e da perda dos antigos privilégios de que gozava enquanto metrópole de um vasto império colonial.[2]

 Com essa vinda, as condições jurídicas e sociais brasileiras evoluíram, o Brasil passou a gozar do status de metrópole, com cada vez mais vantagens e direitos em relação a Portugal[3].  

Nesse contexto, eclode, como citado, a Revolução Vintista, que visava entre outras coisas limitar, via constituição formal, os poderes do então imperador D. João e obrigar a sua volta à metrópole. Tal Constituição seria elaborada em Portugal e dela participariam representantes, denominados de deputados, eleitos de cada uma das províncias brasileira.

Foi esse um movimento popular semelhante aos ocorridos em 2013, porquanto mobilizou toda a, então, Colônia brasileira, com províncias favoráveis e contrárias aos ideais da revolução portuguesa em comento.

1.2              Dia do Fico

O “dia do fico” (9 de janeiro de 1822), apesar de assim denominado, não cingiu-se a apenas um evento estático no tempo, mas foi parte de um contingente de fatos que redundariam, posteriormente, na independência do Brasil.

Nessa linha, corolário histórico imediato da Revolução Vintista, o denominado “dia do fico” ocorreu devido à resistência da Assembleia Constituinte portuguesa convocada por essa revolução em acatar os pedidos levados pelos deputados brasileiros e à exigência do retorno do príncipe regente D. Pedro para Portugal[4].

Nesse ínterim, só como exemplo, “Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais colocam-se, assim, à frente do movimento pelo fico, organizando representações solicitando a permanência de dom Pedro”[5].

Considerando esses dados, fica fácil concluir a proporção do movimento popular que esteve contido no fato histórico conhecido como “dia do fico”, parecido, assim, com os movimentos de 2013 a seguir tratados.

1.3              Movimentos/manifestações populares de 2013

Primeiramente, assinalamos que não há ainda denominação própria, ou ao menos amplamente conhecida, a denominar os movimentos/manifestações populares que invadiram as ruas de inúmeros municípios brasileiros.

Tais movimentos ocuparam espaços públicos, com reuniões ou passeatas, reunindo, por vezes, centenas de milhares de pessoas, em torno de temas variados, como contra o aumento do transporte público, melhoria na educação, melhora na saúde, contra a homofobia, contra os políticos, enfim, com uma pluralidade de temas.

Além desses dados, que retratam a proporção desses movimentos, coforme divulgado na mídia, apenas no dia 20 de maio de 2013, brasileiros de dezessete capitais protestaram ao longo do dia e, se somadas apenas os manifestante dos municípios do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Recife, houve um total de 452.000 (quatrocentas e cinquenta e duas mil) participantes[6].

Assim, fixamos, sem dúvida, o caráter de manifesto popular desses acontecimentos ocorridas em 2013 e o despertar do interesse em estudá-lo.


2                    CARACTERÍSTICAS DOS MOVIMENTOS POPULARES

Os movimentos sociais são interpretados de diversas maneiras, divergindo os mais variados estudos em ciências sociais sobre a construção de um conceito de tais movimentos.

Em um âmbito jurídico, a característica mais citada é de que se trata de um grupo sem personalidade jurídica[7]. E nesse singelo pensamento é que deve se basear a busca da caracterização dos movimentos sociais. Isso porque, como apontado acima, os movimentos populares decorrem de lutas sociais vivenciadas no curso da história da sociedade.

“Os movimentos sociais são definidos como fluídos, fragmentados, perpassados por outros projetos sociais”[8]. Lutas são motivadas pela ação ou omissão do Estado em relação a um determinado grupo social, que, assim, desvinculado do próprio Estado – como um “corpo social” – busca melhorias de suas condições, reivindicando direitos fora da estrutura organizacional e jurídica do próprio Estado.

Todavia, há outros elementos que também contribuem a configurar a imagem dos movimentos populares. Elementos estes de significativa importância e que, com base na experiência que se teve no ano de 2013, tornaram-se mais visíveis, os quais passamos a trabalhar nos tópicos abaixo, para um melhor aproveitamento do presente trabalho.

2.1 Manifestações em espaços públicos.

Interessante observação fazemos aqui, no sentido de assinalar a ligação dos movimentos populares com as reuniões públicas e em espaços públicos como mecanismos de diálogo entre o povo e os governantes.

Ao contrário da união no sentido da realização de algum ato formal como forma de protesto – cartas, pedidos de reuniões com autoridades, etc. -, prefere o povo tomar os espaços públicos e expor suas pretensões.

Nesse sentido, durante o desenrolar das consequências da Revolução Vintista em solo brasileiro, ao longo do ano de 1820, quando dom João decide retornar a Portugal, atendendo às exigências dos revolucionários portugueses, ocorre,

Em 21 de abril, na Praça do Commercio, uma assembléia de eleitores que seriam consultados acerca das instruções a serem deixadas por dom João VI a dom Pedro, bem como acerca da indicação daqueles que ficariam como secretários do príncipe, foi além das expectativas do governo, reunindo uma multidão de pessoas (...).[9]

Nesse mesmo aspecto, como uma das causas do “dia do fico”, tivemos o seguinte movimento, desencadeado, principalmente, após os revolucionários vintistas portugueses terem decidido exigir a volta de dom Pedro, então príncipe regente, a Portugal, que podemos narrar assim:

O principal manifesto, redigido por frei Sampaio e assinado por nada menos que oito mil pessoas, proveio do povo do Rio de Janeiro, tendo o presidente do Senado da Câmara desta cidade, José Clemente Pereira, como seu principal promotor. (...) No dia 9 de janeiro, uma procissão de homens bons e do povo em geral da cidade dirigiu-se ao Paço para entregar o manifesto a dom Pedro, juntamente com uma representação, no mesmo tom dramático e alarmista, de negociantes e oficiais de ourives.[10] (grifos no original).

Por fim, há um interessante resumo, com relação às manifestações de 2013, que embasam o raciocínio aqui esposado:

Na noite da última quinta-feira, dia 20, depois de duas semanas de manifestações sucessivas nas ruas de dezenas de cidades, por volta de 1,2 milhão de brasileiros ocuparam as ruas do país num protesto de misturou euforia, emoção e violência – e, sobretudo, perplexidade.[11]

Assim, fixamos que a ocupação de espaços públicos por multidões é característica dos movimentos populares.

2.2              Mudança na estrutura política/jurídica

As manifestações populares em estudo tem por aspecto geral o objetivo, nem sempre consciente, de realizar alguma alteração nos estruturas políticas/jurídicas.

Dito isso, observamos que, durante a Revolução Vintista, em contraponto aos desejos dos revolucionários portugueses, os brasileiros “(...) passaram a exigir a adoção imediata da Constituição espanhola enquanto a portuguesa não fosse redigida, a permanência da família real no Brasil, a nomeação, pela assembléia, de uma junta ou conselho de governo”[12], ou seja, desejavam alterar o status jurídico da época, com a adoção de mecanismos de limitação do poder governamental (constituição e nomeação de junta de governo).

Já no âmbito dos movimentos atinentes ao “dia do fico”, dadas as limitações que a citada revolução pretendia impor ao Brasil, surgem vozes brasileiras a reivindicar a estruturação de “um corpo legislativo particular para o reino do Brasil”[13], mudança nas estruturas políticas e jurídicas em relação a metrópole Portugal – um sinal de mais autonomia.

Por último, com relação aos movimentos populares de 2013, reivindicaram eles alterações nas estruturas políticas e jurídicas brasileiras, voltando-se, inclusive, contra institutos ligados ao âmago e à história do Estado brasileiro, como os partidos políticos. Nesse diapasão:

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“Sem partido! Sem partido!”, gritavam manifestantes pelo Brasil sempre que a bandeira de alguma legenda surgia na multidão. Até grupos políticos de extrema esquerda, cujo passado os aproximava da luta e das bandeiras do MPL[14], como o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), foram calados e expulsos. A rejeição mais eloquente se voltou contra o partido do governo, o PT. Acostumado a encabeçar manifestações de rua em seus 30 anos de existência, (...). Os petistas acabaram hostilizados.[15]

Desta forma, alterações na estrutura política, jurídica e, logo, das instituições postas, são objetivos dos movimentos populares em estudo, estando em suas características.

2.3              Divisão dos movimentos

Como última característica eleita por nós para estudo, vislumbramos que é da essência dos movimentos populares que eles desenvolvam-se e em seu interior convivam posições distintas sobre o mesmo tema, até o momento em que ocorre a sua cisão. Vejamos

A Revolução Vintista foi vista, inicialmente, com bons olhos pela colônia por motivos distintos. Brasileiros e comerciantes estrangeiros não portugueses viam a possibilidade, entre outras, do fim do absolutismo e das prerrogativas e privilégios ainda existentes. Já os comerciantes portugueses que viviam no Brasil visavam à retomada de todos os privilégios e monopólios que lhes beneficiavam e que foram parcialmente suprimidos por dom João, após sua chegada ao Brasil.[16]

Como já assinalado, o “dia do fico” foi acontecimento importante de um conjunto que desaguou na independência brasileira. Contudo, ainda que em tese pensemos que deveria ele ser um evento apoiado por todo o Brasil, encontramos narrativa que afirma a divisão, rompimento esse com ligações ainda da Revolução Vintista, assim

Nem todas, entretanto, concordaram com a idéia, havendo algumas províncias, como Bahia e Maranhão, que interpretaram a medida[17] como gérmen ilegal de uma Assembléia Legislativa, a qual conflitaria com a soberania das Cortes e com a própria representação brasileira aí presente.[18]

No que tange às manifestações de 2013, como citado, ao longo delas muitos manifestantes insurgiram-se contra a participação de partidos políticos, contudo foi noticiado que o Movimento Passe Livre - MPL é apoiado por partidos políticos e que manifestações toleraram a participação de membros de deles.[19]

Resta demonstrado, desta forma, o caractere da natural divisão que ocorre nos movimentos populares.


3. DA DEMOCRATIZAÇÃO E CONSTITUCIONALIDADE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO

Conforme demonstram nossas narrativas históricas no início deste trabalho, os indivíduos, seja no seio de um Estado ou de qualquer outra forma de organização social, sempre buscaram limitar o poder vigente, para que pudessem gozar de melhores status jurídico, econômico, social e político.

Os movimentos sociais citados invadiram espaços públicos, pugnaram pela mudança no contexto político e jurídico, com seus respectivos corolários sociais e econômicos, tudo em nome de melhores condições de vida.

Nessa linha ainda, dividiram-se para buscar o que cada linha de pensamento entendia ser o melhor, sem, contudo, prescindir da procura por uma conjuntura que lhes parecesse melhor do que a anterior.

Tanto buscou-se mediante movimentos populares esse ambiente mais favorável, que direitos, princípios e liberdades foram erigidos para, dentre outros objetivos, resguardar e fundamentar a possibilidade de protestar.

Atualmente, com base na Constituição Federal, temos a democracia e o princípio do pluralismo político – como princípios fundamentais do Estado brasileiro -, o direito de reunião em locais públicos e a liberdade de manifestação do pensamento.

3.1              Democracia

Como aponta Noberto Bobbio, ao se tratar de Democracia, é possível elencar certos elementos que são apontados como regras universais, ou seja, para uma ideia de democracia é necessário que estejam presentes tais elementos. Das quais, cita-se: 1) Um órgão legislativo, constituído por representantes eleitos pelo povo; 2) Outros órgãos políticos que também contenham representantes eleitos; 3) Todo cidadão que atingiu a maioridade pode exercer o direito ao voto, independente de raça, sexo ou crença; 4) Universalidade do voto; 5) Liberdade em votar e escolher seus representantes; 6) Tanto nas eleições, como em decisões proferidas pelos representantes, deve prevalecer o princípio da decisão da maioria, todavia, tal decisão não deve limitar os direitos das minorias, havendo paridade de condições; 9) Deve haver credibilidade e confiança entre o povo com seus representantes. Como se percebe aqui, trata-se de elementos ideológicos sobre como deve ser regido um sistema democrático em especial no que tange a forma de como se forma os representantes do povo.

Mas, ainda, desenvolveu-se o pensamento de que o modelo democrático não pode ficar restrito apenas em regras universais, uma vez que, isso, facilmente, geraria em uma detenção do poder nas mãos de minorias que possuem o poder econômico de determinado Estado, afinal, como demonstra a história da humanidade, em um mundo em que impera ainda o modelo capitalista, aquele que detém o poder econômico dita “as regras do jogo” dentro de uma sociedade. Desenvolver a democracia apenas por meio de procedimentos universais, por fim, acaba ferindo o próprio conceito democrático, tanto que, como aponta Noberto Bobbio, tais regras universais caracterizam apenas um pensamento de “democracia formal”[20].

Nesse sentido, o conceito de democracia, em uma visão ainda contemporânea, vai além de apenas ditar conceitos universais, afim de evitar que um modelo democrático, no fim, torna-se um modelo ditatorial, outros elementos que constituem um Estado Democrático devem vir a tona para um sadio desenvolvimento e convívio social. Neste sentido, surge, também o pensamento da Democracia substancial, formada pelo conceito dos regimes políticos adotados dentro de um sistema democrático. Como aponta Noberto Bobbio, “a democracia formal é mais um Governo do povo; a substancial é mais um Governo para o povo”[21], buscando, portanto, na democracia substancial uma igualdade formal, jurídica e social para todos.

Aliás, é por meio dessa busca de uma democracia substancial que se encontra uma das vertentes de nossa Constituição Federal (fruto de um processo histórico de redemocratização após um período ditatorial), que busca não apenas o fortalecimento do Estado, mas também de seus cidadãos, por meio de direitos e garantias à dignidade da pessoa humana e efetivação dos direitos fundamentais, ideologias de um Estado Social e Democrático de Direito. Essa abertura dada pela própria Carta Magna carrega a necessidade de uma democracia participativa por meio do povo, a qual, não se pode mais – diante o que muitos apontam como “crise do Poder Legislativo” – conter-se com apenas o modelo representativo dentro de um Estado Democrático. A ideia de participação popular em processos decisórios é uma categoria hermenêutica da própria Constituição Federal de 1988.

Não há democracia sem participação. De sorte que a participação aponta para as forças sociais que vitalizam a democracia e lhe assinam o grau de eficácia e legitimidade no quadro social das relações de poder, bem como a extensão e abrangência desse fenômeno político numa sociedade repartida em classes ou em distintas esferas e categorias de interesses[22].

A ideia da democracia participativa em um Estado Democrático de Direito, é baseado no princípio da soberania popular, a qual, encontra respaldo nos artigos 1°, parágrafo único e 14 da Constituição Federal, por meio dos direitos políticos[23]. Todavia, ainda como aponta o próprio Paulo Bonavides, esse ainda é um modelo de exercício semidireto de democracia pelo povo, assim, retornamos ao pensamento de Noberto Bobbio, ao classificar a Democracia substancial.

O retorno do pensamento de democracia substancial se dá pelo fato de que, como aponta o caput do artigo 14 da Constituição Federal, o exercício semidireto nos procedimentos decisórios feito pela população em relação a seus representantes será realizado nos termos da lei[24]. A busca de uma igualdade substancial, portanto, pode-se dizer, que ainda não é alcançada, devido essa limitação participativa dentro do Estado de Direito, sendo que, para os cidadãos buscarem o ideal de uma igualdade substancial, se faz necessário uma participação mais direta no processo democrático.

Para Habermas, como aponta Flávio Rezende Dematté, isso é uma característica que traz o modelo republicano:

De modo que, aqui, o cidadão do Estado é aquele que ostenta direitos de cidadania e de atuação política que exigem uma postura participativa ativa por parte dele e o torna responsável politicamente pela comunidade que integra, a qual ele almeja que seja formada por pessoas livres e iguais (HABERMAS, 2007, p. 280), sendo que a política extrai a sua força da prática participativa e comunicacional dos cidadãos de, consensualmente, definirem os contornos dos interesses políticos. Seguindo essa linha, a compreensão republicana de direito recai sobre uma ordem jurídica cujas normas viabilizem aos cidadãos as condições necessárias para conviverem entre si de maneira íntegra, tais como respeito mútuo, igualdade, e, claro, autonomia, elementos possibilitadores daquela referida atuação política efetiva.[25]

Portanto, em respeito à própria Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito que ela rege, a participação do cidadão não deve restringir apenas de forma indireta ou semidireta (sistema que vigora no Brasil), que a própria Carta Magna, como também leis infraconstitucionais, concede a seus cidadãos.

Entretanto, a garantia e a proteção de participação do cidadão não restringem apenas nessa possibilidade de direitos políticos, mas a ações diretas que confrontam com o Poder Público diante de determinada situação. Garantias e proteções essas que ajudam a fortalecer o livre exercício de movimentos sociais, objeto de estudo, como o pluralismo e os direitos de reunião e de livre manifestação do pensamento, que passamos a expor.

3.2 Pluralismo político

Primeiramente, está previsto na atual ordem constitucional como princípio fundamental (art. 1º, V). Vejamos:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

V - o pluralismo político.

Ao contrário do que aparentemente pode parecer, o pluralismo político não significa apenas a instituição pelo Estado brasileiro de um sistema que permite a pluralidade de partidos políticos, que é instituído, mais precisamente, pelo art. 17, da Carta Magna.

Nesse ponto, interessante é o posicionamento de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, no sentido de que pluralismo político implica “que nossa sociedade deve reconhecer e garantir a inclusão, nos processos de formação da vontade geral, das diversas correntes de pensamento e grupos representantes de interesses existentes no seio do corpo comunitário”[26]

Vale ser citado, nesse aspecto, que pluralismo retrata “uma sociedade plural, na qual se consagra o respeito à pessoa humana e sua liberdade.”[27]

Dito isso, temos que pluralismo representa o reconhecimento de uma sociedade plural, na qual há uma série de linhas de pensamento sobre os mais variados assuntos, que implicam diretamente no convívio social, a imposição de respeito por cada um dos posicionamentos existentes, bem como pelo dever de abertura dos processos de decisão dos assuntos sociais a todos os representantes ou a todas as concepções existentes.

Ou seja, o pluralismo político previsto no artigo 1° da Constituição Federal não se limita apenas em uma participação semidireta da população – elegibilidade de seus representantes ou utilização de instrumentos de participação popular, tais como, o plebiscito – mas, também, em discussões ideológicas, manifestação de pensamento, reunião de pessoas para debates e/ou requererem algum ato político, além da participação partidária.

Nessa medida, pluralismo vai ao encontro da democracia substancial, porquanto uma decisão política tomada com base em ampla discussão popular condiz, efetivamente, com um governo do povo para o povo e, logo, com uma deliberação legítima.

Sem perder o raciocínio, observamos que os movimentos populares atuam como veículo legítimo de manifestação do pluralismo político, via os quais as diversas correntes de pensamento participam das escolhas políticas. Neste sentido, vale transcrever o pensamento de José Afonso da Silva:

Resta, no entanto, realizar na prática o tipo de sociedade aí prometida e assegurada. Essa será luta subsequente do povo brasileiro em prol da efetivação das normas constitucionais que lhe garantem essa sociedade de direitos fundamentais.[28]

É, ainda, em razão do princípio do pluralismo político resguardado pela Constituição Federal é que se concede espaço para os movimentos populares adquirirem forças dentro do país. Conforme já apontado, o sistema de representação política, dentro de uma democracia, nunca carregará um status de perfeição, uma vez que a Democracia se forma em pensamentos de liberdade e igualdade, logo, os atos dos representantes do povo ficam sujeitos a aprovação ou não da própria população, que serão levados a tona por grupos que, mesmo sem personalidade jurídica, apresentam, tanto a população como ao Poder Público, seus interesses em prol a uma categoria ou ao bem comum, afim de evitar um abuso do próprio Estado. Como ensina Celso Ribeiro Bastos:

Os interesses expressos em determinado grupo despertam, quase sempre, organização de entidades opostas que defendem os interesses prejudicados. Não se pode negar, outrossim, que estas formas de organização intermediária, que se intercalam entre o indivíduo e o Estado, têm constituído uma das principais barreiras erguidas contra a invasão avassaladora do Estado[29].

Assim, movimentos populares, democracia e pluralismo estão intimamente ligados.

3.3 Liberdade de manifestação do pensamento

Liberdade agasalhada pelo art. 5º, IV, CF, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

De maneira sucinta, “Trata-se de regra ampla, e não dirigida a destinatários específicos. Qualquer pessoa, em princípio, pode manifestar o que pensa, desde que não o faça sob o manto do anonimato.”[30]

A ideia de liberdade (em sentido amplo), como já exposto anteriormente, se trata de uma das características ideológicas do conceito de democracia, por influencia do pensamento liberal, a qual, em um Estado Democrático de Direito, soma-se com o pensamento marxista sobre igualdade, para formar a concepção de Estado Social como se tem hoje.

Em razão desse seu conteúdo, a liberdade de manifestação do pensamento concorda com a compreensão de democracia substancial e de pluralismo político – o povo discute amplamente para decidir sobre si próprio – e os movimentos populares constituem, nesse diapasão, mecanismo de expressão dessa liberdade.

Destarte, movimentos populares, democracia, pluralismo e, agora, liberdade de manifestação do pensamento congregam-se.

3.4 Direito de reunião

Juntamente com a liberdade de manifestação do pensamento, o direito de reunião, previsto no artigo 5°, inciso XVI, da Constituição Federal, cria uma base saudável para o exercício pleno das atividades dos movimentos populares objeto de estudo.

A liberdade de reunião pode ser vista como “instrumento da livre manifestação de pensamento, aí incluído o direito de protestar”. Trata-se de “um direito à liberdade de expressão exercido de forma coletiva. Junto com a liberdade de expressão e o direito de voto, forma o conjunto das bases estruturantes da democracia[31].

O direito de reunião, assim como a liberdade de manifestação de pensamento, é um direito fundamental que decorre da liberdade do indivíduo a participar de uma manifestação coletiva. Todavia, o próprio texto constitucional impõe limitações a esse direito de liberdade. Assim, o direito de reunião pode ser exercido desde que, pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.

As limitações constitucionais ao direito de reunião, por mais que se trata de um direito individual, tem, com base em um fundamento social, o intuito de evitar um abuso de direito em manifestações de cunho político.

Embora o exercício de tal liberdade tenha, tanto em sua origem histórica quanto contemporaneamente, contornos político-ideológicos e, portanto, de participação política, sua natureza continua sendo de liberdade em sentido negativo (liberdade contra restrição estatal injustificada) e não de direito político (de participação no processo político democrático propriamente dito). Assim, como ocorre nas liberdades de comunicação social, a fixação do escopo do exercício do direito é da competência exclusiva de seus titulares. Regulamentações estatais que diferenciem em face do grau de “politização” de uma reunião são, destarte, intervenções estatais que precisam ser justificadas para não violar a liberdade. Portanto, a liberdade de reunião pode, mas não necessariamente tem que servir ao processo de formação da opinião pública.[32]

Assim, a não interferência estatal à liberdade de reunião (desde também que não viole as limitações impostas constitucionalmente) configuram elemento essencial para o exercício da democracia pelo próprio cidadão, em um Estado Democrático de Direito.

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Sobre os autores
Vinicius de Almeida Gonçalves

Advogado. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN) e pós graduando em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

Christopher Banhara Rodrigues

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) e pós-graduando "lato sensu" em Direito Constitucional Aplicado pelo Instituto Damásio de Jesus, Advogado da Câmara Municipal de Dourados/MS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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