CAPÍTULO III- COLISÃO DE NORMAS E PRINCÍPIOS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Primeiramente, é preciso fazer uma diferença — ainda que superficial — entre normas e princípios do Direito. Canotilho afirma que a norma vincula um sujeito objetivamente quando fundamenta deveres. Os princípios, segundo ele, são normas que exigem que algo seja realizado. Isso da melhor forma possível com base nas possibilidades fácticas e jurídicas. “Os princípios não proibem, permitem ou exigem algo em termos de tudo ou nada; impõem a optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a reserva do possível, fáctica ou jurídica”.[96] Vejamos como Dworkin aborda o assunto:
“Quando dois princípios entram em colisão — por exemplo, se um diz que algo é proibido e outro, que é permitido —, um dos dois tem que ceder frente ao outro, porquanto um limita a possibilidade jurídica do outro. O que não implica que o princípio desprezado seja inválido, pois a colisão de princípios se dá apenas entre princípios válidos”.[97]
Celso Antônio Bandeira de Mello compara a violação de um princípio e de uma norma. Ele afirma:
"Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada".[98]
Para Humberto Ávila, as “normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto de interpretação; e as normas, no seu resultado”.[99] E os princípios, na visão de Carlos Ari Sundfeld, “são as ideias centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de organizar-se”.[100]
Com base em princípios e normas, a colisão de direitos fundamentais tem sido objeto de estudos por doutrinadores. Para Canotilho, em linhas gerais, a colisão de direitos fundamentais acontece quando o exercício de um direito fundamental pelo seu titular confronta com o direito fundamental de outro titular.
Um dos exemplos mencionados por ele é o da liberdade de imprensa, que abrange a liberdade de expressão e criação dos jornalistas assim como intervenção na orientação ideológica dos veículos de comunicação, em colisão com o direito de propriedade das empresas jornalísticas.[101]
Segundo o autor, os direitos fundamentais são sempre prima facie. Ele menciona outro exemplo concreto — o da demonstração da alta probablidade de o julgamento público de um indivíduo colocar em risco seu direito à vida (risco de enfarte). Para ele, neste caso, a ponderação justificaria o adiamento do julgamento.
Isso porque o direito à vida tem peso decisivo sobre o exercício da ação penal.[102]
Neste Trabalho de Conclusão de Curso o objetivo é analisar o confronto de dois direitos fundamentais. De um lado, está a liberdade de expressão e de informação. E do outro os direitos da personalidade, que abrangem a honra, a intimidade, a imagem e a vida privada do cidadão. Barroso trava a discussão em torno dos personagens retratados. Ele discute se esses personagens, parentes ou herdeiros tem ou não o direito de impedir a exibição de programas ou pedir indenização quando há referências a eles.[103]
3.1 – CONFRONTO E PONDERAÇÃO
É importante ressaltar que as circunstâncias do caso concreto são relevantes, quando há colisão de direitos fundamentais, para ponderar o que deve prevalecer quando dois direitos fundamentais estão em jogo. Gilmar Mendes trata do juízo de ponderação na busca pela solução. Este juízo, de acordo com o ministro, está ligado ao princípio da proporcionalidade e pode ser feito tanto pelo juiz quanto pelo legislador.
André Ramos Tavares lembra que o Direito brasileiro não prevê expressamente o critério da proporcionalidade.[104] Mas afirma que este critério tem base jurídica no art. 5º, parágrafo 2º, da Constituição de 1988. Diz o dispositivo: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Segundo André Ramos Tavares, o critério da proporcionalidade tem função relevante para a racionalidade do Estado Democrático de Direito. Isso porque “garante o núcleo essencial dos direitos fundamentais através da acomodação dos diversos interesses em jogo em uma sociedade”.[105] Para ele, este critério é um instrumento importante de solução de conflitos porque otimiza princípios. Segundo o autor, é relevante um sopesamento de princípios quando há conflitos no caso concreto. Paulo Bonavides também trata do critério da proporcionalidade quando há a colisão de dois direitos fundamentais. Afirma ele:
"Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado. As cortes constitucionais europeias, nomeadamente o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia, já fizeram uso frequente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos".[106]
Um dos fatores a ser ponderado, para Gilmar Mendes, é o peso abstrato do direito em questão. Ele entende que a prevalência de um direito sobre outro tem sua base nas peculiaridades do caso concreto. Gilmar Mendes diz que, em um confronto de princípios sobre um caso concreto, é preciso buscar a conciliação entre eles. O exemplo usado pelo ministro é o de uma notícia sobre a vida de alguém. Neste cenário, dois direitos fundamentais podem entrar em atrito: privacidade e liberdade de expressão. Para o ministro, é preciso considerar as cirscunstâncias do caso concreto e os interesses em conflito. Sobre o tema mencionado, ele diz que se o personagem retratado na notícia tiver vida pública ativa, é mais provável que a sua vida particular seja prestigiada. E isso não irá significar “recusa do direito à privacidade à personalidade pública”. [107]
Segundo ele, se o retratado vive de crédito público, “a sociedade tem o direito de saber se a sua vida pessoal corresponde ao que pretende fazer crer”.[108] O oposto acontece, por exemplo, quando são divulgados dados íntimos de pessoas que não vivem da imagem pública e que não estão no centro de um acontecimento considerado socialmente relevante. Neste caso, de acordo com o ministro Gilmar Mendes, a interferência da imprensa sobre a privacidade não se justifica.
Para Barroso, como existe o princípio da unidade da Constituição, não há que se falar em hierarquia jurídica entre as normas. Ele lembra que todos os direitos fundamentais desfrutam da condição de cláusulas pétreas. Barroso tem a mesma visão de Gilmar Mendes para a solução adequada destes conflitos. Segundo Barroso, é preciso levar em consideração as particularidades do caso concreto para resolver o assunto.
A técnica da ponderação surgiu após a subsunção. Durante muito tempo, segundo Barroso, este era o caminho para se resolver conflitos. Basicamente, prevalecia a premissa maior (a norma) sobre a premissa menor (os fatos). Ele ressalta que, apesar de este raciocício jurídico ainda ser utilizado, a dogmática jurídica estendeu os limites. Para ele, somente a subsunção diante da expansão de princípios já não adianta mais para resolver as situações.[109]
Há doutrinadores que classificam a ponderação em graus ou etapas. Um deles é Robert Alexy. Afirma ele:
“Segundo a lei da ponderação, a ponderação deve realizar-se em três graus. No primeiro grau dever ser determinada a intensidade da intervenção. No segundo grau trata-se, então, da importância dos fundamentos que justificam a intervenção. Somente no terceiro grau realiza-se, então, a ponderação em sentido restrito e verdadeiro”.[110]
Barroso também define a técnica de ponderação em três etapas.
Resumidamente, para ele, na primeira, o papel do intérprete é detectar as normas relevantes para resolver o caso. E ainda: indentificar os eventuais conflitos entre elas. Na segunda etapa, os fatos, as circunstâncias do caso concreto e a interação com os elementos normativos são examinados pelo intérprete.
É, então, somente na terceira etapa que a ponderação irá se concretizar. Nesta etapa, a análise das normas e a repercussão dos fatos será feita de forma conjunta. “Em seguida, é preciso ainda decidir quão intensamente esse grupo de normas — e a solução por ele indicada — deve prevalecer em detrimento dos demais, isto é: sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida, cabe ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve ser aplicada.”[111]
Ana Paula Barcellos entende que a ponderação é uma técnica que deve ser usada para casos de difíceis soluções. Diz ela sobre a ponderação:
“ (...) pode ser descrita como uma técnica de decisão própria para casos difíceis (do inglês ‘hard cases’), em relação aos quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado. A estrutura geral da subsunção pode ser descrita da seguinte forma: premissa maior – enunciado normativo – incidindo sobre premissa menor – fatos – e produzindo como conseqüência a aplicação da norma ao caso concreto. O que ocorre comumente nos casos difíceis, porém, é que convivem, postulando aplicação, diversas premissas maiores igualmente válidas e de mesma hierarquia que, todavia, indicam soluções normativas diversas e muitas vezes contraditórias. A subsunção não tem instrumentos para produzir uma conclusão que seja capaz de considerar todos os elementos normativos pertinentes; sua lógica tentará isolar uma única norma para o caso”.[112]
No caso da colisão de liberdade de informação e expressão e direitos da personalidade, Barroso sugere um roteiro a ser seguido. A sequência é: análise das normais constitucionais e fixação de parâmetros possíveis, investigação das normas infraconstitucionais que podem repercutir sobre a hipótese e, enfim, a consideração dos fatos relevantes que devem ser apurados para a solução do conflito.
Para ele, é preciso que o intérprete resolva o bem constitucional que deve preponderar no caso concreto assim como a medida ou intensidade desta preponderância. Ele lembra que a restrição mais radical, excepcional e não prevista explicitamente na Constituição de 1988 é a proibição prévia da publicação de algum fato ou até mesmo opinião em um veículo de imprensa. Barroso menciona que a própria Constituição prevê responsabilização civil por danos morais e materiais, no art. 5º, incisos V e X, assim como responsabilidade criminal em caso do exercício abusivo das liberdades de informação e de expressão.
3.2 – PARÂMETROS DE PONDERAÇÃO
Se de um lado há os direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à imagem, de outro está a liberdade de expressão e de informação. Quando há confronto entre esses dois direitos, a solução não é encontrada pela negação de quaisquer desses direitos, na visão da ministra do Superior Tribunal de Justiça, Nancy Andrighi. Diz ela: “Ao contrário, cabe ao legislador e ao aplicador da lei buscar o ponto de equilíbrio onde os dois princípios mencionados possam conviver, exercendo verdadeira função harmonizadora”.[113]
Barroso sugere que sejam adotados alguns parâmetros para a ponderação quando há a colisão desses direitos fundamentais. Para tanto, são elencados oito parâmetros possíveis. O primeiro trata da veracidade dos fatos. Barroso lembra que a informação protegida pela Constituição Federal de 1988 é a verdadeira. Segundo o autor, a publicação de notícia falsa deliberadamente “em detrimento do direito da personalidade de outrem, não constitui direito fundamental do emissor”.[114] De acordo com o ministro, para haver responsabilidade, é preciso averiguar se houve clara negligência na apuração dos fatos ou até mesmo dolo na difusão da falsidade.
O segundo parâmetro é o da licitude do meio empregado para a obtenção da informação. Para Barroso, a informação deve ter sido obtida por meios que são admitidos no direito brasileiro. Na sua visão, assim como a Constituição proíbe o uso, em juízo, de provas obtidas ilicitamente também veda a divulgação de notícias conseguidas mediante cometimento de crime. O autor usa alguns exemplos para tratar da obtenção ilícita de notícias. Entretanto, ele trata de crimes cometidos pela fonte de notícias e não pelo jornalista. Diz ele:
“Se a fonte da notícia fez, e.g, uma interceptação telefônica clandestina, invadiu domicílio, violou segredo de justiça em um processo de família ou obteve informação mediante tortura ou grave ameaça, sua divulgação não será legítima”.[115]
Ele lembra, no entanto, que notícias obtidas em registros públicos — por meios regulares e lícitos — são consideradas públicas. Logo, conclui, não afetam a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem dos envolvidos.
O terceiro parâmetro é a personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia. Segundo Barroso, quem ocupa cargos públicos tem o direito de privacidade tutelado de forma mais branda. O mesmo vale para outras figuras notórias como artistas, atletas e modelos, por exemplo. Barroso afirma, no entanto, que esse abrandamento não significa supressão do direito à privacidade. No caso de pessoas que não ocupam cargos públicos nem são conhecidas publicamente, o autor entende que há uma tutela mais ampla da privacidade.
O quarto parâmetro é o local onde ocorrem os fatos. No entendimento de Barroso, se os fatos acontecem em local reservado há proteção mais ampla do que naqueles casos em que o local é público. Para ele, em regra, o que acontece dentro do domicílio de uma pessoa, por exemplo, não é passível de divulgação sem a vontade dos personagens envolvidos. Mas se os fatos acontecem na rua, em um restaurante, em uma praça ou em outro lugar público qualquer, o cenário é outro: podem ser noticiados.
A natureza do fato é o quinto parâmetro elencado. Barroso diz que há fatos, por si só, que já são noticiáveis independentemente de quem sejam os envolvidos em questão. E cita como exemplos acontecimentos da natureza como enchentes e tremor de terra, acidentes como incêndio e desabamento e crimes. Nestes casos, segundo o autor, há interesse jornalístico nos fatos mesmo que gerem exposição da intimidade, da honra ou da imagem dos personagens retratados.
O sexto parâmetro é a existência do interesse público na divulgação em tese. Existe a presunção, na visão de Barroso, de que qualquer divulgação de fato verdadeiro tem o interesse público como regra geral. Ele ressalta como vive a sociedade moderna com notícias, informações e ideias por todos os lados. Para Barroso, essa livre circulação de notícias faz parte do sistema democrático e de uma sociedade pluralista. Portanto, quem tiver interesse que um fato não seja divulgado, deve comprovar se existe interesse privado excepcional, segundo Barroso, que prevaleça sobre o interesse público.
O sétimo parâmetro de ponderação é a existência de interesse público na divulgação de fatos relacionados com a atuação de órgãos públicos. Barroso diz que a regra, em um regime republicano, é que a atuação do poder público seja pública. E menciona, ainda, o art. 5º, XXXIII, que garante o direito de acesso à informação produzida em órgãos públicos — exceto se o sigilo for indispensável para a segurança da sociedade e do Estado.
O oitavo parâmetro é o da preferência por sanções a posteriori, que não envolvam a proibição prévia da divulgação. O uso abusivo tanto da liberdade de expressão quanto da liberdade de informação pode ser reparado posteriormente. O autor reafirma que a própria Constituição prevê a responsabilização cível e criminal nestes casos.
Barroso conclui que a colisão de direitos fundamentais não é resolvida com critérios tradicionais. O caminho indicado por ele é o da técnica da ponderação de normas, valores ou interesses. Para o autor, neste caso, vale fazer concessões recíprocas entre as pretensões que estão em jogo. Além disso, ele considera que é legítima a exibição, independentemente de autorização dos envolvidos em programas ou notícias em que:
“(I) sejam citados os nomes ou divulgada a imagem de pessoas relacionadas com o evento noticiado; ou (II) sejam relatados e encenados eventos criminais de grande repercussão ocorridos no passado, e que tenham mobilizado a opinião pública”.[116]
Assim, de acordo com Barroso, se estiverem presentes os elementos da técnica de ponderação, não é admissível a proibição da divulgação, a tipificação da veiculação da matéria ou do programa como difamação e a pretensão de indenização com a alegação de que houve violação dos direitos da personalidade previstos na Constituição.