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A validade da doação realizada por sexagenário casado no regime da separação obrigatória de bens em favor do seu cônjuge

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Demonstra-se a viabilidade jurídica da doação entre cônjuges casados no regime da separação de bens em razão da imposição legal aos nubentes sexagenários.

1. INTRODUÇÃO:

É cediço que o direito de família apresenta normas de natureza majoritariamente cogente.

Isso porque as relações individuais atinentes à matéria, por refletirem comportamentos, trazem implicações nas relações sociais.

Assim, com vistas a salvaguardar o interesse social, o Estado acaba interferindo, por vezes indevidamente, na esfera privada da vida dos seus subordinados.

A ingerência do legislador, contudo, não se limitou à tentativa de proteção supramencionada. Por isso, não raros dispositivos constantes do Código Civil de 1916, repetidos no atual diploma, tentam resguardar o direito do individuo ao patrimônio do indivíduo, que, em tese, deve ser considerado disponível.

Dentre os dispositivos que expressam a influência do legislador nas relações privadas, exsurge o Artigo 1.641, inciso II, do Código Civil vigente[1] − correspondente ao Artigo 258, inciso II, do Código Civil de 1916 −, o qual estabelece o regime da separação obrigatória de bens no casamento da pessoa com mais de 60 (sessenta) anos.

Com o impositivo legal, supostamente, afastar-se-iam os sexagenários dos casamentos celebrados por meros interesses financeiros.

A pretensão protecionista não se esgotou no estabelecimento do regime de bens aplicável ao matrimônio. O Código Civil de 1916, em seu Artigo 312, in verbis, analisado por via transversa, aparentemente vedou a doação entre os cônjuges casados sob o regramento em comento.

Art. 312.  Salvo o caso de separação obrigatória de bens (art. 258, parágrafo único), é livre aos contraentes estipular, na escritura antenupcial, doações recíprocas, ou de um ao outro, contanto que não excedam à metade dos bens do doador (arts. 263, VIII, e 232, II).

Tal vedação, todavia, não foi reproduzido pelo novel Código Civil. Por conseguinte, como se não bastasse a já dificultada interpretação do dispositivo supracitado, os estudiosos do direito se deparam com a incerteza da sua vigência, assim como com a extensão da sua aplicabilidade.

Para os defensores da manutenção do proibitivo em análise, a doação entre os cônjuges acabaria por burlar o regime patrimonial imposto pela lei, razão pela qual, embora silente o Código Civil de 2002, afigura-se clara a nulidade implícita. Outros, no entanto, entendem que tal disposição não se coaduna com a capacidade para todos os atos da vida civil de que gozam os sexagenários, bem como com os princípios constitucionais norteadores da aplicação do direito, mormente do direito de família.

No presente trabalho serão expostas as principais razões pelas quais existem as divergências na doutrina e na jurisprudência sobre o tema.

Todavia, antes de adentrar na análise do dispositivo em comento, com vistas ao entendimento deste trabalho, inicialmente, serão abordados os principais aspectos atinentes aos institutos atrelados ao tema, a saber: o contrato de doação e os regimes de bens entre os cônjuges.


2. NOÇÕES GERAIS SOBRE O CONTRATO DE DOAÇÃO:

O contrato de doação está disciplinado nos Artigos 538, in verbis, e seguintes do Código Civil de 2002.

Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.

Prefacialmente, importa salientar que, com fundamento no citado dispositivo, a doutrina brasileira estabeleceu como causa da doação a liberalidade, consoante se depreende da lição de Agostinho Alvim (apud (STOLZE, 2008, p.11):

A liberalidade é a intenção de bem fazer, de proteger. Em regra, o doador, levado por sentimento de amor, ou de amizade, transfere algo do seu patrimônio para o de outra pessoa, que aceita o benefício, sem nenhuma vantagem patrimonial para o primeiro, que apenas deu expansão a um daqueles sentimentos, ou a um sentimento de religião e ética.

O mesmo entendimento foi esposado por Pablo Stolze Gagliano (2008, p. 10), em sua tese de Mestrado, que transcorreu sobre o contrato de doação e os seus efeitos no Direito de Família e das Sucessões, senão veja-se:

A liberalidade, tantas vezes mencionada, é a verdadeira pedra de toque do contrato de doação, por que não dizer a sua causa, e que guarda íntima conexão com as características da gratuidade e da unilateralidade.

Podemos dizer, nessa linha, que a liberalidade é a razão típica, objetivada, da doação, ou seja, a sua causa. A causa seria, em outras palavras, a razão determinante, a motivação típica do ato que se pratica, ou, como quer RÁO, “o fim imediato que determina a declaração de vontade”.

Outro não é o entendimento do Professor Caio Mário da Silva Pereira, segundo o qual a liberalidade “é o fator essencial e específico do seu conteúdo”.

Assim, constatado ser o contrato de doação motivado pela liberalidade, faz-se necessária a análise das suas características principais, extraídas das lições acima expostas, a saber: a gratuidade e unilateralidade, o formalismo e o “animus donandi”.

A unilateralidade consiste na imposição de obrigação para apenas uma das partes, qual seja, o doador, haja vista que, ainda que estabelecido encargo ou condição, não haverá contraprestação decorrente do contrato de doação, conforme se infere da lição do já citado Professor Caio Mário da Silva Pereira:

“Contrato unilateral, porque cria obrigações para uma só das partes, o doador, já que a existência de encargo eventualmente determinado constitui simples modus (v. n° 100, supra, vol. I), inconfundível com obrigação. Se o encargo assume o caráter de contraprestação, desfigura-se o contrato, que passará a constituir outra espécie, sem embargo de usarem as partes, impropriamente o nomen iuris doação”.

A gratuidade, por sua vez, embora esteja adstrita à doação pura, diz respeito aos reflexos de natureza patrimonial, que, nesta espécie de contrato, beneficiarão tão-somente o donatário.

Também se apresenta como característica do contrato em análise o formalismo.

Embora, no ordenamento jurídico pátrio, os negócios jurídicos tenham, em regra, forma livre, nos termos do Art. 107 do Código Civil, o contrato de doação se afigura essencialmente formal.

Com efeito, a doação, com exceção daquelas que versem sobre bens móveis de pequeno valor, que podem ser feitas verbalmente, desde que procedidas da tradição, apenas se afigura válida se realizada por escritura pública ou instrumento particular, conforme o Art. 541 do Código Civil, in verbis:

Art. 541. A doação far-se-á por escritura pública ou instrumento particular.

Parágrafo único. A doação verbal será válida, se, versando sobre bens móveis e de pequeno valor, se lhe seguir incontinenti a tradição.

Por fim, deve-se destacar que o “animus donandi”, elemento subjetivo que também caracteriza o contrato de doação, é o propósito do doador em beneficiar patrimonialmente o donatário.

Com base nas características supracitadas, a doutrina formulou diversos conceitos para o instituto da doação, dentre os quais, destacam-se os seguintes:

Chama-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere de seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, que os aceita (Código Civil, art. 538). O Código Civil é, de regra, parcimonioso no definir, e bem age ai proceder desta maneira, por não ser próprio do trabalho legislativo formular definições, senão baixar comandos e instituir normas. Saindo de sua orientação habitual, o legislador de 2002, seguindo a linha do Código de 1916, quis tomar posição diante de controvérsia existente. De um lado. O Código Civil francês (e na sua esteira outros numerosos) não alinha a doação entre os contratos, considerando-a antes modalidade particular de aquisição de propriedade. A razão desta orientação foi o fato de ter se insurgido Napoleão Bonaparte, quando das discussões do projeto no seio do Conseil d’État, contra a concepção contratualista, impressionado pela ausência da bilateralidade das prestações, a seu ver imprescindível a caracterizar o negócio contratual. O Código francês inscreve, então, a doação entre os modos de adquirir a propriedade, ao lado do testamento, e conceitua-a simplesmente como um ato sem caráter contratual. Não lhe falta, porém, apoio histórico, pois que esta já era a orientação das Institutas: “Est et aliud genus adquisitionis danatio”. Esta colocação topográfica tornou-se tão arraigada nos códigos da chamada Escola Francesa, que o italiano de 1942 ainda a conserva, não obstante dominar na moderna dogmática peninsular a concepção contratualista.

De outro lado, alastra a idéia contratualista, sustentada firmemente por Windscheid, Dernunburg, Giorgi, e que domina diversos códigos – alemão, suíço, português, polonês, japonês, argentino, uruguaio, peruano, mexicano – partindo do pressuposto fático do acordo de vontades.

A matéria é debatida e, foi profundamente estudada por Savigny, por Giorgi, e a natureza contratual é afirmada por muitos, a maioria, se bem que negada por outros.

 Na doação, há situações em que o contrato se acha nitidamente desenhado, com o acordo declarado do doador e do donatário; mas outras há em que a participação volitiva do donatário é menos ostensiva, e tem levado a um desvio de perspectiva.

Diante de manifestações doutrinárias e legislativas tão díspares, entendeu o Código Civil brasileiro conveniente, além de inserir a disciplina entre as várias espécies de contratos, proclamá-lo enfaticamente em o art. 538: “Considera-se doação o contrato...” (PEREIRA, 2004, p. 245)

“No Brasil, entretanto, a doação foi tratada como figura contratual típica, ao lado da compra e venda e de outros contratos nominados. 

A doação, nessa linha, é um negócio jurídico firmado entre doador e donatário, por força do qual o primeiro transfere bens, móveis ou imóveis, para o patrimônio do segundo, que os aceita, animado pelo propósito de beneficência ou liberalidade como elemento causal da avença.” (STOLZE, 2008, p. 14)

Dos conceitos supracitados, extrai-se a natureza contratual da doação, consoante dicção do art. 538 do Código Civil.

Disto se depreende que a capacidade ativa para firmar o tipo de contrato em análise é a mesma para os contratos em geral, qual seja, aquela estabelecida para a prática dos atos da vida civil. Contudo, exige, ademais, capacidade de disposição sobre o seu objeto, tendo em vista que é essência deste negócio jurídico a transferência de titularidade de um bem do patrimônio de uma pessoa para outra.

Destaque-se que há, no diploma civil, hipótese em que o doador não possui legitimidade para tanto, como se constata do Art. 550, in verbis:

Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal.

No que tange à capacidade passiva, podem ser beneficiadas até mesmo os incapazes, relativamente ou absolutamente, embora, estes, para manifestarem a aceitação, requisito de validade da liberalidade, dependam de assistência ou representação, respectivamente.

 No que tange ao contrato em análise, vale frisar que o Código Civil, em seu artigo 549, veda, ainda, as doações inoficiosas, assim compreendidas aquelas que excederem à parte de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.

De igual modo, nos termos do artigo 548 do CC “é nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador”.

Disto são retirados os requisitos de validade do contrato de doação, que, em apertada síntese, são: a capacidade do doador, a legitimidade do donatário, a aceitação, a observância da forma prescrita em lei, a idoneidade do objeto, bem como a sua disponibilidade com relação ao patrimônio do doador.

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Vistos os elementos gerais da espécie de contrato em análise, passa-se a discorrer sobre os aspectos específicos que consubstanciam o presente trabalho.


3. REGIME DE BENS ENTRE CÔNJUGES

No Título II do Livro destinado ao Direito de Família, o Código Civil em vigor versa sobre as questões patrimoniais correspondentes.

Já no primeiro dispositivo, o citado título dispõe em seu Art. 1.639, in verbis:

Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.

No artigo subseqüente, o Código Civil estabelece que os nubentes poderão optar pelos regimes de bens nele elencados, quais sejam, o regime de comunhão parcial de bens, o regime de comunhão universal de bens e o regime de separação de bens. Impende destacar que o novo Código trouxe a possibilidade de adoção do “Regime de Participação Final nos Aquestos”, inexistente no Código de 1916, considerado “regime misto”, haja vista que, apesar de ter as características da separação de bens na constância do matrimônio, adota as peculiaridades da comunhão parcial na hipótese de eventual dissolução.

Destaque-se que a opção pelo regime da comunhão parcial, no momento da habilitação, será apenas reduzida a termo, eis que, inclusive, vigorará na ausência de convenção dos interessados, sendo que, nas demais hipóteses, deverão os nubentes manifestar as suas vontades por meio do pacto antenupcial, lavrado por escritura pública.

Como exceção ao livre poder de escolha do regime patrimonial de bens a viger no matrimônio, o Código Civil dispõe:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II - da pessoa maior de sessenta anos; (destacou-se)

III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

Pretendeu o legislador, ao estabelecer o regime da separação de bens como obrigatório, proteger o patrimônio dos cônjuges e dos seus herdeiros nas circunstâncias elencadas nos incisos do artigo supracitado.

Na hipótese do inciso I, do dispositivo em comento, parece ter a imposição a natureza de sanção para aqueles que, nos termos do art. 1.513 do Código Civil, in verbis, não deveriam casar-se.

Art. 1.523. Não devem casar:

I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;

II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal;

III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal;

IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas.

Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo.

As causas suspensivas previstas nos incisos I e III do artigo 1.523 do Código Civil têm como razão de ser evitar a confusão de patrimônios de ambos os consortes. Por sua vez, o inciso II visa coibir a confusão sanguínea. De outro lado, por meio da previsão do inciso IV, o legislador busca impedir a não prestação de contas devida pelos tutores e curadores.

No que tange ao inciso III do artigo 1.641 do Código Civil, este tem como fundamento a intenção do legislador em conferir maior proteção a todos que necessitem de autorização judicial para casar. Isto se deduz da lição de SÍlvio Venosa (2004, p. 180), senão veja-se:

O legislador entende, por exemplo, que o menor que se casa com suprimento judicial da vontade de seus pais ou para furtar-se à imposição de pena criminal necessita de maior proteção no curso do casamento. No entanto, o legislador, direcionando para uma posição essencialmente patrimonial, esbarra em nossa realidade social. Geralmente, os casamentos de pessoas nessas condições ocorrem nas classes menos favorecidas, cujo patrimônio se constituirá nos anos futuros ao casamento. Ainda porque os membros das classes mais favorecidas terão maiores possibilidades de elaborar pacto antenupcial. O melhor regime, o que mais atende às situações sociais, não somente nesta hipótese de imposição legal, mas também nas demais, é o da comunhão parcial. É de curial justiça que os bens adquiridos pelo esforço comum de ambos os cônjuges pertençam a ambos. Não se justifica que em casamento estável, perdurando por décadas, haja imposição de separação absoluta de bens.

Embora possam ser rechaçadas todas as motivações que levaram o legislador a impor o regime da separação de bens, soa mais irrazoável a hipótese do inciso II, a qual será analisada no presente trabalho.

3.1. DO REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS

Conforme se infere da leitura das assertivas acima, o regime de separação de bens pode ser convencional, tratado nos artigos 1.687, in verbis, e 1.688 do Código Civil, ou obrigatório, disposto no artigo 1.641.

Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real.

O primeiro, como visto, decorre da livre vontade dos nubentes e, por isso, imprescinde do pacto antenupcial para viger, no segundo caso, está estatuído na própria lei, pelo que independe da vontade das partes.

Consoante se infere da leitura do dispositivo em comento, conforme exposto por Venosa, “característica desse regime é a completa distinção de patrimônios dos dois cônjuges, não se comunicando os frutos e aquisições e permanecendo cada qual na propriedade, posse e administração de seus bens”.

3.2. A ILEGALIDADE E A INCONSTITUCIONALIDADE DA IMPOSIÇÃO LEGAL DO REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS PARA SEXAGENÁRIOS:

Importante questão afeta ao tema em análise é, conforme entendimento doutrinário, a ilegalidade e a inconstitucionalidade da disposição do regime da separação obrigatória de bens para o nubente sexagenário.

Como dito anteriormente, presumiu o legislador que o nubente sexagenário estaria vulnerável a contrair matrimônio por mero interesse financeiro do parceiro, consonante corrobora o já citado doutrinador Sílvio Venosa, pelo que, como o intuito de protegê-lo, manteve a restrição existente no código de 1916, embora a igualando para homens e mulheres, e estabeleceu ser obrigatório o regime de separação de bens nesta hipótese.

“Quanto ao casamento do maior de 60 e da maior de 50 anos no Código de 1916, o legislador compreendeu que, nessa fase da vida, na qual presumivelmente o patrimônio de um ou de ambos os nubentes já está estabilizado, e quando não mais se consorciam no arroubo da juventude, o conteúdo patrimonial deve ser peremptoriamente afastado. A idéia é afastar o incentivo patrimonial do casamento de uma jovem que se consorcia com alguém mais idoso. O vigente Código, em atendimento à perfeita igualdade constitucional do homem e da mulher, estabelece a idade de 60 anos para ambos o sexo”. (VENOSA, 2004, p. 182)

Continua o referido autor, demonstrando a aversão doutrinária acerca da disposição em análise, senão veja-se:

Sílvio Rodrigues (1999:165) posiciona-se francamente contra a disposição, sustentando, com razão, que se trata de imposição legal atentatória contra a liberdade individual. Dizia, com base no antigo diploma:

“Aliás, talvez se possa dizer que uma das vantagens da fortuna consiste em aumentar os atrativos matrimoniais de quem a detém. Não há inconveniente social de qualquer espécie em permitir que um sexagenário ou uma quinquagenária ricos se casem pelo regime da comunhão, se assim lhes aprouver”.

Como se nota, em que pese a resistência doutrinária, o presente Código manteve a restrição para “pessoa maior de sessenta anos” (art. 1641, II).” (VENOSA, 2004, p. 182)

Washington de Barros Monteiro, favorável à manutenção da restrição, traz a perspectiva histórica e explicação legislativa para a disposição em comento, nos seguintes termos:

“Como bem justificou o Senador Josaphat Marinho na manutenção do art. 1.641, n. II, do atual Código Civil, trata-se de prudência legislativa em favor das pessoas e de suas famílias, considerando a idade dos nubentes. É de lembrar que, conforme os anos passam, a idade avançada acarreta maiores carências afetivas e, portanto, maiores riscos corre aquele que tem mais de sessenta anos de sujeitar-se a um casamento em que o outro nubente tenha em vista somente vantagens financeiras. Possibilitar, por exemplo, a adoção do regime de comunhão universal de bens, num casamento assim celebrado, pode acarretar conseqüências desastrosas ao cônjuge idoso, numa dissolução inter vivos de sua sociedade conjugal, ou mesmo a seus filhos, numa dissolução causa mortis do casamento.

Note-se que a obrigatoriedade do regime da separação de bens nesses casos vigora há quase cem anos, já que a única modificação operada na regra constante do art. 258, parágrafo único, do Código Civil de 1916 foi realizada pelo art. 45 da Lei n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977, que, em caráter transitório e em razão da introdução do divórcio no direito brasileiro, deu liberdade aos nubentes, em idade superior ao limite legal previsto no inciso II daquele dispositivo, quanto à escolha do regime de bens, em caso de existência de comunhão de vidas anterior a 28 de junho de 1977, com duração de dez anos consecutivos ou com filhos.

Impor-se-á a separação ainda que um dos contraentes, de modo doloso, oculte sua verdadeira idade. Conquanto na habilitação matrimonial tenha o nubente diminuído a sua idade, vigorará o regime da separação, independentemente de pronunciamento judicial.” (MONTEIRO, 2004, p. 137)

Apesar de restar clara a divergência sobre o tema, impõe-se que sejam feitas algumas considerações.

Inicialmente, deve-se destacar que, conforme ilação dos artigos 1° a 4° do Código Civil, os maiores de sessenta anos, salvo se apresentarem redução ou supressão do discernimento, são absolutamente capazes para o exercício de todos os atos da vida civil.

Ademais, eventual reconhecimento da incapacidade relativa ou absoluta por causa distinta da idade, deverá ser feita nos autos de processo que vise à interdição do idoso.

Por conseguinte, constata-se que não se afigura justificada a presunção de senilidade feita pelo legislador com afastamento do caso concreto e em absoluta dissonância com a plena capacidade dos idosos ao exercício dos atos da vida civil determinada pelo mesmo diploma.

No que tange à presunção em comento, vale destacar que tal fato implica ainda em ofensa ao Estatuto do Idoso, Lei número 10.741/03, eis que traduz atitude discriminatória, vedada pelo art. 4°, in verbis:

Art. 4°. Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei.

Nesse diapasão, vale destacar que a presumida senilidade dos sexagenários, que data, como bem salientou o citado professor Washington de Barros, das primeiras décadas do século XX, e que foi indevidamente reproduzida pelo novel legislador, também não se coaduna com a expectativa de vida do brasileiro no século XXI.

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados reconheceu, ainda que não tenha andado bem ao manter a restrição, a impropriedade constante do Código Civil vigente, razão pela qual aprovou o projeto de Lei número 108 de 2007, o qual altera o inciso II do Art. 1.641 para majorar a idade dos nubentes para setenta anos, nos seguintes termos:

I - RELATÓRIO

A proposição em epígrafe, de autoria da Deputada Solange Amaral, objetiva alterar o inciso II do Art. 1.641 da Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil -, a fim de estabelecer como obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de setenta anos.

Em sua justificativa, destaca que, quando da edição do Código Civil de 1916, a expectativa de vida média do brasileiro variava entre 50 e 60 anos de idade.

Esse fato condicionou o legislador a estabelecer que, nos casamentos envolvendo cônjuge varão maior de 60 anos e cônjuge virago maior de 50 anos, deveria ser adotado o regime da separação obrigatória de bens.

Por sua vez, o Código Civil de 2002 veio a determinar a adoção desse regime quando se casa pessoa maior de 60 anos.

Alega a autora que, em decorrência da maior longevidade da qual passou a desfrutar o brasileiro, sobretudo acarretada pelo o melhoramento das suas condições de vida, impõe seja modificado o Código Civil para que o regime da separação obrigatória de bens somente seja exigível para pessoa maior de 70 anos.

A proposição se sujeita ao regime de apreciação conclusiva pelas comissões, nos termos do art. 24, II, do RICD. Foi inicialmente distribuída à Comissão de Seguridade Social e Família, a qual adotou parecer pela sua aprovação.

Em cumprimento ao art. 119, caput, I, do mesmo diploma legal, foi aberto o prazo para recebimento de emendas, sendo que nenhuma restou apresentada.

É o relatório.

II - VOTO DO RELATOR

Compete a esta Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania manifestar-se sobre a constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e sobre o mérito da proposição apresentada, nos termos do art. 32, IV, “a”, “c” e “e” e 54 do RICD.

Sob o enfoque da constitucionalidade formal, o projeto não apresenta vícios, porquanto observadas as disposições constitucionais pertinentes à competência da União para legislar sobre a matéria (art. 22, I), do Congresso Nacional para apreciá-la (art. 48) e à iniciativa (art. 61).

No tocante à constitucionalidade material, não se vislumbra qualquer discrepância entre o projeto de lei e a Constituição Federal.

No que guarda pertinência com a juridicidade, a proposição não apresenta vícios sob os prismas da efetividade, coercitividade e generalidade e inovação. A par de se consubstanciar na espécie normativa adequada, suas disposições não conflitam com o ordenamento jurídico vigente. Em relação à técnica legislativa, o projeto se encontra afinado aos ditames da Lei Complementar n.º 95/98.

Quanto ao mérito, é de se considerar que, segundo a pesquisa Tábua de Vida de 2005, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a esperança de vida do brasileiro passou de 71,7 anos, em 2004, para 71,9 anos, em 2005.

Esse indicador estima que a geração que nasceu em 2005 viverá, em média, até os 71,9 anos, número seguramente maior à expectativa de vida do brasileiro em 1916, quando foi editado o antigo Código Civil.

Ademais, tenha-se que a modificação operada pelo Código Civil de 2002 veio a cabo com o objetivo de harmonizá-lo ao princípio da igualdade em relação aos direitos e deveres do cônjuge na sociedade conjugal, a teor do disposto no art. 226, §5.º, da Constituição Federal.

Não tratou, contudo, de verdadeiro aumento da idade para adoção compulsória do regime da separação obrigatória de bens no casamento.

De fato, com o aumento da esperança de vida do nosso povo, afigura-se necessária a atualização do art. 1641, do inciso II, do Código Civil, trazendo-o à realidade dos tempos atuais.

Há de se concluir, portanto, pela conveniência e oportunidade da medida legislativa que ora se propõe.

Em face do exposto, meu voto é no sentido da constitucionalidade, juridicidade e boa técnica legislativa do Projeto de Lei n.º 108, de 2007, e, no mérito, pela sua aprovação.

Como se não bastasse, a disposição em análise atenta contra o princípio da isonomia, previsto na Constituição Federal, uma vez que coloca o sexagenário que decide se casar em posição desfavorável em relação àqueles que vivem em união estável.

Isso porque, nos termos do art. 1.725 do Código Civil, in verbis: “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.

De igual modo, impende destacar que, embora sejam majoritariamente cogentes, as normas que integram o direito de família devem ser utilizadas como instrumento de tutela das relações que são iniciadas e desenvolvidas em torno do afeto, haja vista que não se encerram em si mesmas, como se depreende das lições , do eminente professor João Batista Vilella:

Ao Estado, assim como à Igreja, compete em grau a um só tempo eminente e inabdicável reconhecer a família. Reconhecer a família, contudo, não é apenas abrir-lhe espaço nas constituições e nos códigos, para, depois, sujeitá-la a regras de organização e funcionamento. É, antes, assegurar sua faculdade de autonomia e, portanto, de auto-regramento. O casamento e a família só serão o espaço do sonho, da liberdade e do amor à condição de que os construam os partícipes mesmos da relação de afeto.

Mas falar de sonho, de liberdade e de afeto soa quase estranho a quem tenha sob os olhos as leis, a literatura e a jurisprudência de direito de família. Já notaram os senhores o quão pouco se fala de amor em sede de direito de família, como se este não fosse seu ingrediente fundamental? O amor está para o direito de família assim como o acordo de vontades está para o direito dos contratos. Curiosamente, contudo, enquanto o acordo de vontades constitui a figura central da teoria dos contratos, em torno da qual tudo pivota e tudo se esclarece, parece haver, em direito de família, no mínimo, um bem disfarçado pudor de explicitar a matéria de que ele é feito e sem a qual sua razão de ser não se sustenta e se esboroa. Certo, o discurso do direito de família não deve fazer concessões à pieguice, mas não tem por que ser árido, asséptico, frio e insensível.

Quando fazemos direito de família, o fazemos para quem está buscando a realização de seus mais inefáveis anelos de felicidade ou, ao contrário, para quem se vê, no comum das vezes, submergido nos obscuros poços do desespero.

Casamento, quando não o assola o vírus do tédio e da indiferença, é sempre algo que oscila entre o êxtase e a tragédia. Em qualquer das três hipóteses, lidamos com valores graves e complexos da alma humana. Do êxtase não cuida o direito, propriamente, mas deve concorrer para que os parceiros de uma união o possam encontrar. E, se não os pode vacinar contra os riscos da tragédia que nos espreitam dissimulados em cada esquina da vida, pode muito bem oferecer-lhes os caminhos de uma reconstituição. Que dizer, enfim, do tédio e da indiferença? Mal insidioso e sorrateiro, câncer invisível e indolor, refoge â prevenção do direito e se instala sem que os mesmos parceiros tomem consciência.

Apesar da natureza impositiva, as leis que formam o direito de família devem estar em consonância com o ordenamento jurídico com um todo. Assim sendo, verifica-se que, a restrição em tela, por contrariar outras leis vigentes e princípios constitucionais que devem nortear a atuação do legislador e dos intérpretes, implica em desarrazoada ofensa ao princípio constitucional da autonomia da vontade, conforme defende o supracitado professor João Batista Vilella:

São autoritárias nossas leis da família sempre que retiram às pessoas as faculdades inerentes à capacidade negocial que se lhes reconhece.

Assim, não há razão de lógica, justiça ou bom senso para o art. 256 do Código Civil, que subtrai aos cônjuges a possibilidade de alterar o regime de bens que hajam estabelecido. Ou para o art. 258, parágrafo único, que impõe o regime da separação aos maiores de 60 e às maiores de 50 anos.

Resta constatado, assim, ser ilegal e inconstitucional o disposto no art. 1641, II, do Código Civil, o que, destarte, traz implicações na análise da possibilidade de doação entre os cônjuges sexagenários casados no regime da separação obrigatória de bens.

3.3. DA SÚMULA 377 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:

Atento para as distorções e injustiças causadas pelo legislador ao estatuir a regime de separação obrigatória de bens, o Supremo Tribunal Federal editou, em 03/04/1964, a súmula 377, in verbis:

“No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.

A súmula em comento possui aplicabilidade controversa.

Primeiro, porque, sua origem decorre do Art. 259 do Código Civil, segundo o qual no regime da separação de bens, “embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicabilidade dos adquiridos na constância do casamento”. Este dispositivo tem sua razão de ser na obrigatoriedade de, na vigência do antigo código, restar expressamente consignada a não comunicabilidade dos aquestos no pacto antenupcial. Assim sendo, a súmula estava consubstanciada no regime de separação convencional de bens e não no da separação legal.

Ademais, aponta a doutrina, com fundamento em decisões da mesma Corte, que o reconhecimento da comunhão estaria restrito aos “bens adquiridos pelo esforço comum dos cônjuges sujeitos a regime matrimonial diverso do comum”[2], o que, impende frisar, consistia o cerne da questão posta em análise quando da edição da súmula.

Por fim, diante da revogação do artigo que deu ensejo à edição da súmula pelo novo código civil, entendem alguns doutrinadores a regra não mais pode subsistir. Este pensamento encontra amparo na doutrina de Francisco José Cahali, esposada no artigo “A súmula 377 e o novo Código Civil e a mutabilidade do regime de bens”, que se passa a transcrever em parte:

Com as luzes das lições do Professor Silvio Rodrigues, sobre a origem da Súmula 377 na legislação revogada, fácil é concluir que este enunciado não foi recebido pelo novo Código Civil.

Isto porque o novel Legislador deixou de reproduzir a regra contida no malfadado art. 259 (CC/1916). Dessa forma, superada está a Súmula 377, desaparecendo a incidência de seu comando  no novo regramento.

Sabida a nossa antipatia à Súmula, aplaudimos o novo sistema. E assim, não mais se admite a prevalência dos princípios da comunhão parcial quanto aos bens adquiridos na constância do casamento pelo regime de separação obrigatória (separação legal).

A separação obrigatória passa a ser, então, um regime de efetiva separação dos bens, e não mais um regime de comunhão simples (pois admitida a meação sobre os aqüestos), como alhures.

A exceção deve ser feita, exclusivamente, se comprovado o esforço comum dos cônjuges para a aquisição de bens, decorrendo daí uma sociedade de fato sobre o patrimônio incrementado em nome de apenas um dos consortes, justificando, desta forma, a respectiva partilha quando da dissolução do casamento [3]. Mas a comunhão pura e simples, por presunção de participação sobre os bens adquiridos a título oneroso, como se faz no regime legal de comunhão parcial, e até então estendida aos demais regimes, deixa de encontrar fundamento na lei.

Curioso observar sobre essa questão que a versão aprovada pelo Senado Federal do projeto de lei da nova codificação, acrescentava, no art. 1.641, o complemento “sem a comunhão de aqüestos”. Essa redação, sem dúvida, deixaria clara a rejeição do legislador à Súmula 377. Aprovado por votos de liderança na Câmara, na forma publicada no Diário Oficial, este complemento foi excluído.

Este contexto induziu alguns comentadores da nova Lei a sustentar o acolhimento do enunciado pelo novo Código.

Mas não se deve entender que do tumultuado processo legislativo a Súmula 377 teria sido prestigiada, na abrangência proclamada pelos julgados de então, pois sua origem decorreu, como visto, do disposto no revogado art. 259. Assim, pela análise global das regras propostas no novo Código, a Súmula 377 não sobrevive, impedindo a aplicação dos princípios da comunhão quando imposta a separação obrigatória nos casamentos realizados a partir da vigência do Código de 2002.

Impende destacar, nesse contexto, que a análise do Projeto de Lei que redundou no Código Civil corrobora a tese da vigência da Súmula 377.

Isso porque, entendeu a Câmara dos Deputados que “em se tratando de regime da separação de bens, os aquestos provenientes do esforço comum devem se comunicar, em exegese que se afeiçoa à evolução do pensamento jurídico e repudia o enriquecimento sem causa, estando sumulada pelo Supremo Tribunal Federal (Súmula 377)”. Assim, foi suprimida a última parte do artigo 1.641 que aduzia “é obrigatório o regime da separação de bens no casamento, sem a comunhão de aquestos”.

Feitas as considerações necessárias ao entendimento do tema, uma vez que as conclusões advindas deste estudo delas decorrem, inicia-se a análise específica da matéria.

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Sobre a autora
Roberta Rabelo Maia Costa Andrade

Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Salvador (2005), especialização em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (2008) e especialização em Direito Público pela Universidade de Brasília (2013). Atualmente é Procuradora Federal - membro da Advocacia-Geral da União.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Roberta Rabelo Maia Costa. A validade da doação realizada por sexagenário casado no regime da separação obrigatória de bens em favor do seu cônjuge. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3941, 16 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27331. Acesso em: 2 nov. 2024.

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