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A validade da doação realizada por sexagenário casado no regime da separação obrigatória de bens em favor do seu cônjuge

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4. DA DOAÇÃO ENTRE CÔNJUGES:

Dispunha o art. 312 do Código Civil de 1916, in verbis:

Art. 312.  Salvo o caso de separação obrigatória de bens (art. 258, parágrafo único), é livre aos contraentes estipular, na escritura antenupcial, doações recíprocas, ou de um ao outro, contanto que não excedam à metade dos bens do doador (arts. 263, VIII, e 232, II).

O novo Código Civil não repetiu a disposição supra, nada fazendo menção à vedação de doação entre cônjuges, embora tenha feito-a em relação ao contrato de  compra e venda, nos termos do Art. 499, que considera lícito o negócio jurídico tão-somente com relação aos bens excluídos da comunhão.

Assim sendo, com fundamento no Art. 2° da Lei de Introdução do Código Civil, in verbis, poder-se-ia afirmar que o proibitivo constante do Art. 312 do Código Civil foi revogado pelo novo diploma. 

Art. 2° - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§ 1° - A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Este, contudo, não é o entendimento de parte da doutrina civilista. Isso porque, segundo os defensores do proibitivo legal, ainda que o Código Civil não tenha trazido expressamente a disposição, esta decorreria da lógica do sistema, uma vez que, por constituir uma burla ao regime da separação obrigatória de bens, a doação realizada entre cônjuges estaria eivada por nulidade implícita.

A assertiva acima encontra amparo em parte da doutrina, consoante se infere do texto a seguir transcrito, extraído do livro “Curso de Direito Civil”, escrito pelo já citado autor Washington de Barros Monteiro, atualizado por Regina Beatriz Tavares da Silva:

Doações entre os próprios cônjuges – Segundo o art. 312 do Código Civil de 1916, salvo o caso de regime de separação obrigatória de bens, é livre a estipulação de doação antenupcial, no respectivo pacto, desde que não exceda à metade do patrimônio do doador.

Desse modo, duas limitações eram impostas: a) vedava-se expressamente a doação antenupcial aos nubentes cujo casamento obrigatoriamente deveria realizar-se no regime de separação, ou seja, nos casos do art. 258, parágrafo único, do Código Civil de 1916, agora contemplados no art. 1.641 do Código Civil de 2002; b) nos demais regimes de bens restringia-se a doação antenupcial à metade dos bens do doador.

No entanto, as limitações na realização de doação em qualquer regime de bens, que já eram estabelecidas nos arts. 1.175 e 1.176 do Código Civil de 1916, permanecem no atual Código Civil.

Estabelece o art. 548 do diploma civil vigente: “É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador”. E, caso o nubente tenha herdeiros necessários (art. 1.845), os quais têm direito à legítima, constituída pela metade dos bens da herança (art. 1.846), estatui o art. 549 que “Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”.

Se o regime patrimonial for o da comunhão universal, incomunicáveis serão os bens doados, desde que seja gravada a cláusula de incomunicabilidade, como dispunha o art. 263, n. VIII, do Código Civil de 1916, e continuou a dispor o art. 1.668, n. IV, do Código Civil de 2002. Sem a incomunicabilidade, ociosa seria a doação; basta a realização do casamento, para que in continenti, se comuniquem os bens.

O Código Civil de 1916, além de proibir as doações antenupciais no caso de regime de separação obrigatória, alcançando as hipóteses previstas no art. 183, n. XI a XVI, e também os nubentes que se casavam além do limite de idade de cinqüenta anos para as mulheres e de sessenta anos para os homens, como dispunha o art. 312, vedava expressamente, no art. 226, as doações entre cônjuges, em caso de infração ao disposto no mesmo art. 183, n. XI a XVI, ou seja, diante de impedimentos proibitivos, que hoje são chamados de causas suspensivas, reguladas nos arts. 1.523 e 1.524, sem que no referido art. 226 mencionasse a hipótese de regime de separação obrigatória por alcance do limite legal de idade.

No entanto, já era interpretado que a doação entre cônjuges não deveria opor-se ao regime matrimonial. Assim, como mencionava o Professor WASHINTON DE BARROS MONTEIRO, não pode haver doação entre consorciados no regime de separação legal. Inadmissíveis serão tais doação que burlariam o preceito determinador da obrigatória separação, inclusive nos caso de limitação da idade.

Pelas mesmas razões apontadas pelo saudoso mestre, pode-se entender que, independentemente da atual falta de vedação expressa à realização de doação antenupcial no caso do regime da separação obrigatória de bens, também esta não pode ser realizada, sob pena de burla ao preceito que impõe este regime. (MONTEIRO, 2004, p. 178)

Outro não é o entendimento esboçado pelo autor Sílvio Venosa, mencionado no trecho a seguir:

De outra face, nada impede hodiernamente que os cônjuges efetuem doações entre si durante o casamento, se não houver conflito com o regime de bens. Desse modo, será inócua e ineficaz a doação, se o regime de bens é o da comunhão universal. Nada impede a doação, se o regime de bens é o da comunhão parcial ou da separação, desde que não coercitiva. Em qualquer caso, há que se acautelarem os direitos de terceiros. Doações entre cônjuges, ainda que não conflitem com o pacto antenupcial, podem, por exemplo, configurar fraude contra credores. Também não será permitida a doação nessa hipótese, se o regime é o da separação imposta por lei, pois haveria transgressão ao preceito imposto. (VENOSA, 2004, p. 207)

Nesse diapasão, imperioso ainda trazer à colação o pensamento do professor Pablo Stolze Gagliano:

Na mesma linha, se aplicável o regime da separação obrigatória (art. 1.641), não poderá a doação burlar a restrição legal que preserva, com os temperamentos da Súmula 377 do STF, o patrimônio pessoal de cada cônjuge, consoante já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA DO MAGISTRADO DESIGNADO EM PORTARIA DA PRESIDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PARA AUXILIAR EM VARA CÍVEL. POSSIBILIDADE DE PROFERIR SENTENÇA DURANTE AS FÉRIAS FORENSES, APESAR DE DESIGNADO PARA EXERCER SUAS FUNÇÕES EM VARA DIVERSA. CONVALIDAÇÃO POR PORTARIA SUPERVENIENTE QUE DETERMINA SEU RETORNO COMO AUXILIAR DA ANTERIOR VARA CÍVEL. DIREITO CIVIL. REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS. SEXAGENÁRIO. ART. 258, INCISO II DO CÓDIGO CIVIL. DOAÇÃO DE IMÓVEL AO CÔNJUGE. VIOLAÇÃO DE NORMA DE ORDEM PÚBLICA. NULIDADE. SIMULAÇÃO DE COMPRA E VENDA. CONTRATO DISSIMULADO DE DOAÇÃO. VÍCIO SOCIAL. ART. 104 DO CÓDIGO CIVIL. LEGITIMIDADE DO DOADOR, SEXAGENÁRIO, EM VIRTUDE DE DISPOSIÇÃO LEGAL DE NATUREZA PROTETIVA. FALTA DE CAPACIDADE ATIVA PARA PROCEDER À DOAÇÃO. AUSÊNCIA DE REQUISITO DE VALIDADE DO ATO JURÍDICO.

- A designação de magistrado para exercício em determinada serventia judicial é ato administrativo, que diz respeito à estrutura interna, não retirando a possibilidade de que naqueles processos nos quais o magistrado tivesse posto visto, anteriormente à designação para outra serventia judicial, fosse lançada sentença durante as férias forenses, não só porque a regra constitucional é a competência jurisdicional (não sua excepcionalidade), como pela convalidação por portaria superveniente, que determinou o retorno do magistrado às suas atividades na vara anterior.

- Viola o art. 258, inciso II do Código Civil a disposição patrimonial gratuita (simulação de contrato de compra e venda, encobrindo doação) que importe comunicação de bens não adquiridos por esforço comum, independente da natureza do negócio jurídico que importou em alteração na titularidade do bem, porque é obrigatório, no casamento do maior de sessenta anos, o regime obrigatório de separação quanto aos bens entre os cônjuges.

- Tratando-se de ato simulado malicioso, com infração de ordem pública, de natureza protetiva de uma das partes, esta – que pretendeu contornar a norma protetiva, instituída em seu favor, buscando renunciar o favor legal por via transversa – tem legitimidade para requerer sua declaração de nulidade.

- Há possibilidade jurídica no pedido de supressão da doação, ainda que esta não tenha sido feita por escritura pública, porque a causa de pedir é a invalidade do negócio jurídico que importou em transferência gratuita de bem imóvel, e, em conseqüência, de todos os atos que o compõem, violadores do regime obrigatório de separação de bens do sexagenário. O fundamento jurídico da nulidade do contrato que importou em disposição patrimonial é o distanciamento, a burla, a contrariedade do regime do art. 258, II do Código Civil. (STOLZE, 2008, p. 117)

Apesar de expor o posicionamento acima, prossegue o civilista afirmando entender inconstitucional a imposição do regime de separação de bens aos nubentes sexagenários, senão veja-se:

Entendemos inconstitucional o dispositivo que impõe o regime de separação legal obrigatória aos maiores de 60 anos, não apenas por afronta ao princípio da razoabilidade (com esta idade, ou mesmo superior, pode-se presidir a República), mas, especialmente, por vulnerar a isonomia constitucional, criando uma limitação incompreensível para tais pessoas. E não se diga que o legislador pretendeu evitar o “golpe do baú”, pois, se esse fosse o argumento justificador da norma, chegar-se-ia à conclusão de que a lei viciou-se pelo elitismo, apenando a maioria das pessoas que pretendem casar sem esse risco patrimonial. Nessa mesma linha de pensamento, ROLF MADALENO: “Em face do direito à igualdade e à liberdade ninguém pode ser discriminado em função do seu sexo ou da sua idade, como se fossem causas naturais de incapacidade civil” (Do regime de bens entre os cônjuges. In: Direito de família e o novo Código Civil. 2. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 191). (STOLZE, 2008, p. 117)

Por fim, assevera o renomado professor:

Todavia, mantivemos a referência jurisprudencial por existir também no Código de 2002 (art. 1.641, II) dispositivo semelhante ao da lei revogada.

Visto o posicionamento de parte renomada da doutrina que entende estar em vigência do proibitivo em estudo, faz-se necessária a análise dos argumentos que consubstanciam a sua inaplicabilidade.

4.1. DA INTERPRETAÇÃO DO ART. 312 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916

O art. 312, disposto no capítulo VI do Título III do Livro Especial “Direito de Família”, do Código Civil de 1916, estabelecia, in verbis:

"Art. 312. Salvo o caso de separação obrigatória de bens, é livre aos contraentes estipular na escritura antenupcial, doações recíprocas, ou de um ao outro, conquanto que não excedam à metade dos bens do doador." (Destacou-se)

Da inteligência do dispositivo legal, constata-se que o Diploma Civil vedava apenas a doação realizada através de pacto antenupcial.

Assim sendo, ainda que o Código Civil vigente tivesse reproduzido a norma em comento, o que não ocorreu, dele não decorria necessariamente a impossibilidade de os cônjuges efetuarem doações, favorecendo-se reciprocamente, na constância da união.

Isso porque, pretender, com fundamento no citado dispositivo, vedar a doação entre cônjuges na constância do matrimônio, implica dar interpretação extensiva à norma de caráter restritivo. Todavia, tal desiderato é proibido pelo ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que, com é sabido, não se afigura lícito ao intérprete limitar direitos quando a própria lei não o fez.

Com efeito, mesmo no Código Civil de 1916, não havia norma que impedisse a doação entre cônjuges casados no regime da separação obrigatória de bens.

4.2. MEAÇÃO X DOAÇÃO:

Como dito, o legislador pátrio, ao dispor sobre a obrigatoriedade do regime de separação de bens ao nubente sexagenário supostamente pretendeu afastá-lo, e ao seu patrimônio, do matrimônio contraído tão-somente pelo interesse financeiro do parceiro.

Embora a restrição à livre escolha do regime de bens pelo sexagenário, rechaçada pela maioria dos doutrinadores e pela jurisprudência dos Tribunais Pátrios, diante das razões constitucionais e legais já expendidas, para alguns, embora consista em restrição do direito à liberdade individual, poderia subsistir pelo intuito protetivo.

Contudo, nem sequer pelo argumento acima exposto se afigura razoável a pretensa vedação à doação entre os cônjuges casados no regime da separação legal de bens.

Isso porque, os efeitos da escolha do regime de bens pelo nubente, ou da sua omissão, hipótese em que vigorará, nos termos do art. 1640 do Código Civil, o regime da comunhão parcial de bens, são diversos daqueles que decorrem do contrato de doação.

É sabido que uma das principais consequências da adoção de regime de bens diverso da separação total é a meação dos bens, cuja extensão dependerá da forma escolhida – parcial, universal ou com participação final nos aquestos –, contudo, que se operará independentemente da vontade das partes e, por vezes, alheio a ela, na hipótese de desconhecimento, sempre inescusável, das normas que regem o direito de família.

Na doação, de modo diverso, a vontade do doador de dispor do seu patrimônio é requisito do contrato de doação, sendo a liberalidade, conforme mencionado nas noções gerais, essência desta espécie contratual.

Assim sendo, pode-se considerar o contrato de doação um “plus” à escolha do regime de bens.

Vale ressaltar que, a gratuidade, uma das características do contrato de doação, traz em seu conteúdo o caráter afetivo, haja vista que o “animus” do doador é beneficiar o donatário, sem que aquele aufira qualquer vantagem, ao menos patrimonial, ainda que inexista o vínculo de amor que deve motivar a união matrimonial.

Demais disso, a doação, nos termos dos Arts. 555 a 557 do Código Civil, in verbis, poderá ser revogada por ingratidão, o que corrobora a natureza afetiva do negócio jurídico, a qual deveria constituir a maior razão da existência das normas afetas ao direito de família.

Art. 555. A doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, ou por inexecução do encargo.

Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações:

I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele;

II - se cometeu contra ele ofensa física;

III - se o injuriou gravemente ou o caluniou;

IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.

Impende destacar que, em conformidade com o art. 556 do CC, o direito à revogação da liberalidade por ingratidão sequer pode ser renunciado antecipadamente, o que, indubitavelmente, constitui garantia ao doador contra pessoas que dele se aproximem apenas com o objetivo de obter vantagens patrimoniais.

Art. 556. Não se pode renunciar antecipadamente o direito de revogar a liberalidade por ingratidão do donatário.

Na hipótese de casamento em regime de bens que importe em meação, atos que configuram a possibilidade de revogação da doação por ingratidão não têm o condão de suprimir o direito do cônjuge à sua parte dos bens.

Destaque-se, inclusive, que nos divórcios e separações, acertadamente, a análise da culpa vem sendo afastada pela doutrina. Essa é a conclusão que se extraí das lições do renomado civilista Gustavo Tepedino[4]:

2. A CULPA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO E NA LEI DO DIVÓRCIO

O papel da culpa na separação tem sido atenuado, ao menos no que tange à tendência dominante na política legislativa contemporânea, embora o seu espectro continue presente na cultura do Direito de Família, traduzido na tentativa de reinserir, no âmbito da união estável, efeitos punitivos pela ruptura dos deveres preestabelecidos, posição também sustentada, em doutrina, como proposta legislativa, para a disciplina da sociedade conjugal.

Como se sabe, no regime do Código Civil, anteriormente à Lei do Divórcio, o casamento era indissolúvel, configurando-se duas espécies de desquite: o desquite consensual, ou o desquite litigioso, este associado sempre à idéia de culpa. Vale dizer, se um dos cônjuges não consentisse com o desquite consensual, somente a ocorrência de uma das hipóteses de conduta culposa previstas pelo legislador autorizaria o desenlace. A idéia de culpa estava intensamente presente, portanto, no desquite litigioso, que dependia da prova, atribuída ao autor da ação, de uma das seguintes causas taxativamente enumeradas pelo art. 317, do Código Civil: a) adultério; b) tentativa de morte; c) sevícias ou injúria grave; d) abandono voluntário do lar conjugal durante dois anos.

Não havendo outra forma de desquite unilateral senão a litigiosa, avultavam, no passado, os pedidos de anulação de casamento ou de imputação de culpa como causa do desquite, em particular na hipótese de adultério, não raro forjado em circunstâncias ensejadoras de enorme constrangimento para os cônjuges e para os filhos.

Por outro lado, sendo o casamento indissolúvel, era inegável o estigma da culpa atribuído a quem pretendesse se separar, sendo certo que, do ponto de vista cultural, o cônjuge desquitado, sobretudo o cônjuge-mulher, era visto com Forte preconceito, como pessoa posta à margem das relações familiares.

A introdução do divórcio no ordenamento brasileiro, através da Emenda Constitucional n. 9, de 28 de junho de 1977, que deu nova redação ao § 1° do art. 17S da Carta de 1967, e regulamentado pela Lei do Divórcio (Lei n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977), ocorreu em meio a intenso confronto ideológico entre divorcistas e antidivorcistas, daí decorrendo uma regulamentação assaz limitativa do divórcio. O casamento somente poderia ser dissolvido após prévia separação judicial por ao menos três anos. Admitiu-se, ainda, o divórcio direto (art. 40, caput), sem a etapa da separação judicial, para a hipótese em que, segundo a redação original do dispositivo, os cônjuges já se encontrassem separados de fato quando da promulgação da Lei do Divórcio e desde que decorrido um período mínimo de cinco anos.

O art. 38 da Lei do Divórcio, em sua redação originária, foi veementemente censurado por prescrever que o pedido de divórcio, em qualquer dos seus casos, somente poderia ser formulado uma única vez. O dispositivo, de compreensão obscura - por referir-se ao pedido de divórcio, fazendo supor que a proibição seria apenas da iniciativa do novo divórcio, não excluindo divórcios sucessivos desde que mediante requerimento do cônjuge não antes divorciado - teve o propósito de coibir o que os antidivorcistas chamavam de poligamia sucessiva, oferecendo tratamento flagrantemente desigual às pessoas casadas, "permitindo que algumas se divorciem e que outras permaneçam simplesmente separadas por toda a vida".

Tais restrições demonstram as dificuldades encontradas pelo legislador para a introdução do divórcio, ressaltando as implicações religiosas, culturais e sociais da ruptura do vínculo matrimonial, permeada seguramente pela idéia de que extinção do casamento, mais do que retratar um fracasso conjugal anterior, representaria, em si próprio, um pecado social.

Com a reforma, de toda sorte, na esteira das reformas legislativas francesa, italiana e alemã, abranda-se o sistema, prevendo-se, ao lado da chamada "separação-sanção", insculpida no caput do art. 5°, e associada, portanto, à presença da conduta culposa - já agora não mais sujeita a causas taxativamente expostas -, a "separação-remédio" e a "separação-falência" (ensejadoras do divórcio-remédio e do divórcio-falência), previstas nos §§ 1° e 2° do mesmo art. S°, derivadas da constatação fática da falência do casamento (§ 1°) ou de doença incurável que torna impossível o convívio conjugal (§ 2°), sendo a ruptura do vínculo em ambos os casos o único meio ou remédio para se minorar o drama em que se tornou a convivência familiar.

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A Lei n. 7.841, de 17/10/89, deu nova redação ao mencionado art. 40, caput, da Lei do Divórcio, em consonância com o art. 226, § 6°, da Constituição Federal, de molde a alterar profundamente o sistema. É de se conferir: "No caso de separação de fato, e desde que completados dois anos consecutivos, poderá ser promovida ação de divórcio, na qual deverá ser comprovado decurso do tempo da separação".

Vale examinar, ainda, mais detidamente, a dicção do art. 5° e seus parágrafos;

"Art. 5°. A separação judicial pode ser pedida por um só dos cônjuges quando imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e tornem insuportável a vida em comum.

§ 1° A separação judicial pode, também, ser pedida se um dos cônjuges provar a ruptura da vida em comum há mais de um ano consecutivo e a impossibilidade de sua reconstituição.

§ 2° O cônjuge pode ainda pedir a separação judicial quando o outro estiver acometido de grave doença mental, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de cinco anos, a enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável.

§ 3° Nos casos dos parágrafos anteriores, reverterão, ao cônjuge que não houver pedido a separação judicial, os remanescentes dos bens que levou para o casamento, e, se o regime de bens adotado o permitir, também a meação dos adquiridos na constância da sociedade conjugal."

Na Lei do Divórcio, portanto, em um primeiro momento, o divórcio-remédio, despido da idéia de culpa, tanto o direto (disposição transitória) como o indireto (exigindo o período de três anos de prévia separação judicial), mostrava-se ainda tímido, sendo de se sublinhar, no transcrito § 3º, o resquício da culpa projetada na perda patrimonial de quem toma a iniciativa da separação, além do lapso de três anos para requerê-la no caso de impossibilidade de vida em comum.

De toda sorte, a partir do advento da Lei n. 8.408, de 13/02/92, que reduz para um ano o prazo para a propositura da separação-remédio ou falência (prevista no art. 5°, § 1°, em sua redação original, desde que decorridos três anos), e da Lei n. 7.841/89, que deu a nova redação ao art. 40, expande-se, sensivelmente, a separação ou divórcio-remédio, promovido de maneira objetiva, arrefecendo papel da culpa.

Quanto ao preceito do § 3°, como justamente observou-se em doutrina, tratava-se de uma espécie de indenização compatível unicamente com a comunhão universal, único regime em que há meação dos bens anteriores e posteriores ao casamento. Nos demais regimes, ou não há meação anterior – e portanto, não há bens levados para o casamento (comunhão parcial) ou não há bens comuns posteriores às núpcias (separação total).

Há que se remarcar, ao propósito, que o preceito do § 3°, embora não tenha sido propriamente revogado, tornou-se ineficaz diante da nova redação do art. 40 que, como antes examinado, permite aos cônjuges separados de fato promoverem diretamente o divórcio sem se sujeitarem à sanção prevista na lei especial.

Tal proposta, entretanto, longe de ser pacífica, suscita conceituada objeção de quem afirma que o divórcio direto somente poderá ser promovido, consensualmente, por vontade de ambos os cônjuges, prevalecendo, conseguintemente, as conseqüências previstas no § 3° para os demais casos em

que apenas uma das partes queira se divorciar - sujeitando-se, então, à prévia separação judicial. O argumento, contudo, não colhe, não sendo consentido ao intérprete restringir o alcance do Texto Constitucional, in verbis

"Art. 226, § 6°: O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos."

O papel da culpa, portanto, no que tange aos efeitos patrimoniais, mostra-se reduzido, embora permaneça em realce no tocante ao dever de alimentos, prevendo o art. 19 da Lei do Divórcio que "o cônjuge responsável pela separação prestará ao outro, se dela necessitar, a pensão que o juiz fixar".

Verifica-se, destarte, que o direito à meação decorre ex lege da opção do regime matrimonial, bem como que este não pode ser afastado em razão da imputação de culpa a um dos cônjuges pelo insucesso do matrimônio, ainda que o enlace tenha ocorrido por motivo vil, tal como o mero interesse financeiro.

O mesmo não se pode dizer da doação, uma vez que, consoante disposição do Código Civil, caso o cônjuge beneficiado incorra em uma das hipóteses previstas no art. 556, esta poderá ser revogada.

Ademais, impende frisar que a opção por regime diverso da comunhão parcial de bens, que por ser supletivo dispensa manifestação expressa, assim como o contrato de doação tem como requisito a obediência às formalidades prescritas na lei.

Para que o contrato de doação seja reputado válido, nos termos mencionados nas noções gerais, imprescindível é que seja feito por escritura pública ou instrumento particular. Por sua vez, a opção por regime de bens diferente da comunhão parcial deverá esta realizada por meio de escritura pública, sob pena de nulidade, nos termos do art. 1.653 do CC, in verbis:

Art. 1.653. É nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento.

Constata-se que tanto o contrato de doação quanto a escolha do regime de matrimônio que não seja a comunhão parcial de bens impõem a prática de ato proativo dos envolvidos, o que, indubitavelmente, demonstra ser indevida e abusiva eventual a restrição ao direito à liberdade do sexagenário sob o pretexto de conferir-lhe proteção, mormente com relação àquele negócio jurídico.

4.3. DOS EFEITOS DA SÚMULA 377 DO STF NA POSSIBILIDADE DE DOAÇÃO ENTRE CÔNJUGES CASADOS NO REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS:

Como visto, apesar de encontrar resistência em parte da doutrina, o Supremo Tribunal Federal, em entendimento consolidado por meio da Súmula 377, disciplina que “no regime de separação legal de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.

            Destarte, com a referida Súmula, aplica-se ao regime da separação obrigatória a mesma regra do regime de comunhão parcial, qual seja, são separados os bens que cada um dos cônjuges possuía antes do casamento, mas consideram-se de propriedade comum, e, portanto, sujeitam-se à meação, aqueles adquiridos na constância do casamento, com exclusão da parte do patrimônio advinda de sucessão ou doação.

            Em conformidade com a inteligência do Art. 544 do Código Civil, segundo o qual “a doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”, é possível afirmar que o Código permite a doação entre cônjuges.

            Contudo, importante destacar que não será válida a doação feita entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens.

Isto porque, no regime da comunhão, em razão da regra da comunicabilidade, os bens recebidos donatário acabarão por integrar o acervo patrimonial comum do casal, o que tornaria inócua a realização da liberalidade e, por conseguinte, nula, pela impossibilidade jurídica do seu objeto.

            Nada obsta que no regime da comunhão parcial os cônjuges se beneficiem reciprocamente com doações, porém, pela mesma razão acima expendida, com relação aos bens não integrantes da comunhão.

Assim, como consequência do tratamento similar dos efeitos patrimoniais dado no regime da comunhão parcial de bens e da separação obrigatória, por força da súmula 377 do STF, tem-se que não prospera a alegação de ser impossível a doação entre cônjuges que estejam submetidos a este último regime, eis que, supostamente, consistiria em burla ao sistema jurídico.

4.4. DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA:

Nos termos do Art. 5° da Constituição Federal, in verbis, é garantia do indivíduo, entre outros, o direito à liberdade.

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Consubstanciado no citado direito, a autonomia privada está assentada no poder que possui o indivíduo de comporta-se da maneira que melhor lhe convier, inclusive o modo de gerir os seus interesses pessoais e patrimoniais, consoante Otavio Luiz Rodrigues Junior, no artigo “Autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação”, parcialmente transcrito a seguir, traduz o sentido deste princípio constitucional:

4. Autonomia da vontade e autonomia privada

Nesse item, de modo mais específico, buscar-se-á a resposta ao problema: “como definir autonomia da vontade e autonomia privada?”

A título de preliminar epistêmica, é preciso reconhecer que não há uma autonomia da vontade, mas, verdadeiramente, diversas autonomias, conforme a visão de cada época sobre referido conceito. Dir-se-ia que o Oitocentos e o Novecentos construíram uma concepção de autonomia, o que veio a ser subvertido totalmente no século XX, como bem assertou Federico Castro Y Bravo (1985, p. 11).

Procedida a essa ressalva, cumpre identificar o surgimento próprio da expressão autonomia da vontade nos tempos modernos.

Há duas visões a respeito.

Tradicionalmente, invoca-se Immanuel Kant (1997, p. 85) como o precursor da expressão autonomia da vontade, a partir de sua Fundamentação da metafísica dos costumes.

O Filósofo de Köenigsberg irá assim defini-la:

“Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objectos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal. Que esta regra prática seja um imperativo, quer dizer que a vontade de todo o ser racional esteja necessariamente ligada a ela como condição, é coisa que não pode demonstrar-se pela simples análise dos conceitos nela contidos, pois se trata de uma proposição sintética; teria que passar-se além do conhecimento dos objectos e entrar numa crítica do sujeito, isto é da razão prática pura; pois esta proposição sintética, que ordena apodicticamente, tem que poder reconhecer-se inteiramente a priori.”

Marcel Waline (1945, p. 169-170) também invoca a autoridade kantiana como suporte da autonomia da vontade.

Anote-se, contudo, a posição de Véronique Ranouil (1980, p. 55), fortemente lastreada, no sentido de que a expressão ingressou no direito interno a partir de contribuições dos internacionalistas no século XIX, ao estilo de Brocher e Weiss4. Nadia de Araujo (2000, p. 50), ainda que de modo indireto, também reconhece que os autores de Direito Internacional, no Oitocentos, desenvolveram o conceito de autonomia da vontade, fazendo-o a partir das posições de Charles Dumoulin no século XVI5.

Não há, entretanto, como discordar da influência francesa na difusão desse conceito, seja pela tradução mais famosa da Metafísica dos costumes, tendo como fonte a versão gaulesa Fondements de la métaphysique des moeurs, seja pelos autores de Direito Internacional. Outrossim, é indiscutível o sentido de autonomia da vontade no século XIX, ainda persistente em boa parte da doutrina civilista, tal como anota Antonio Junqueira de Azevedo (1989, p. 14).

Estar-se-ia diante da primeira concepção da autonomia da vontade, de caráter subjetivo ou individualista.

Após os sucessos da Revolução em França e a prevalência do dístico da igualdade, fraternidade e liberdade, nada mais natural que se desse uma hipérbole na posição humana na sociedade. A homens nascidos livres e iguais, indispensável reconhecer-lhes a liberdade de criar ou produzir direito.

A autonomia da vontade elevou-se à categoria de princípio do Direito e de fonte das relações jurídicas. Essa concepção, como visto, é o resultado de um constante evoluir do pensamento jusfilosófico, em que ocupam posições destacadas a doutrina da Igreja, o Direito Natural e o individualismo decorrente das idéias liberais da Ilustração (RIPERT, 2000, p. 52).

É assim que juristas como LAURENT (apud RANOUIL, 1980, p. 35) vão oferecer justificações filosóficas e positivas à autonomia da vontade. As primeiras fundam-se na idéia de que “la liberté est l’essence dês contrats et la liberté de contracter est ellemême un droit naturel de l’homme (73.) Les formules utillisées sont très significatives: ‘...l’homme ne vit pas uniquement de pain; le corps n’est que l’instrument de l’âme; (...) ‘La liberté de contracter a toujours été considérée comme une dépendance du droit des gens, elle appartient à tour homme comme tel”.

Antonio Junqueira de Azevedo (2002a,p. 13) identifica o período em que se forjou essa concepção de autonomia da vontade com uma óptica insular da dignidade humana, de caráter dualista, separando homem e natureza em níveis distintos. E, prosseguindo, vale-se de uma figura metafórica das mais elegantes: “O racionalismo iluminista, que deu origem à concepção insular, corresponde visualmente à figura do homem europeu: o terno que veste deixa-lhe à mostra somente a cabeça e as mãos (= razão + ação, ou vontade); o resto do corpo é a parte oculta do iceberg – a natureza física, cuja essência, no homem, aquela filosofia ignora”6.

Percebe-se que essa visão da autonomia da vontade, denominada “francesa” por Antonio Junqueira de Azevedo (1986, p. 77), corresponde a uma certa noção de liberdade ou de possibilidade conferida a cada pessoa para agir ou não agir, de um modo ou de outro. Seria “uma esfera de autodeterminação individual que pode, ou deve, ser maior ou menor, segundo a maneira de ver dos vários autores”.

Absolutamente emblemática sobre essa autonomia da vontade à francesa, fortemente contaminada por influxos jusnaturalistas, é a interessante passagem do Marquês de São Vicente (apud RODRIGUES JUNIOR, 2002, p. 40-41), abaixo transcrita:

“O direito ou liberdade de contratar é de tal modo evidente que ninguém jamais dirigiu-se a impugná-lo; seria para isso necessário pretender que o homem não pode dispor de sua inteligência, vontade, faculdade ou propriedade.

Não basta porém reconhecer este direito como inconcusso, é demais necessário saber respeitá-lo em toda a sua latitude e suas lógicas conseqüências, senão o princípio, posto que consagrado, será mais ou menos inutilizado com grave ofensa dos direitos do homem; entraremos pois em resumida análise do mesmo.

O contrato não é uma invenção ou criação da lei, sim uma expressão da natureza e razão humana, é uma convenção ou mútuo acordo, pela qual duas ou mais pessoas se obrigam para com uma outra, ou mais de uma, a prestar, fazer ou não fazer alguma coisa. É um ato natural e voluntário constituído pela inteligência e arbítrio do homem, é o exercício da faculdade que ele tem de dispor dos diversos meios que possui de desenvolver o seu ser e preencher os fins de sua natureza, de sua existência intelectual, moral e física.

O contrato não é mais do que um expediente, uma forma que o homem emprega para dispor do que é seu, dos seus direitos privados, segundo sua vontade e condições do seu gosto, segundo suas necessidades e interesses; é o meio de estipular suas relações recíprocas; é em suma a constituição espontânea, livremente modificada, que cria ou transporta seus direitos ou obrigações particulares, de que pode dispor como lhe aprouver.

Inibir ou empecer direta ou indiretamente esta faculdade, o livre direito de contratar, é não só menosprezar essa liberdade, mas atacar simultaneamente o direito que o homem tem de dispor de seus meios e recursos, como de sua propriedade. Uma das primeiras garantias, sem a qual não há plenitude de propriedade, é a da livre disposição dela; ora, proibir ou restringir a liberdade de contratar é evidentemente proibir ou restringir o livre uso e disposição da propriedade”.

Embora seja cediço que a autonomia privada possa encontrar limites traçados por leis, não pode o Estado oprimir o individualismo, ainda que deva adequá-lo aos interesses sociais.

Como exaustivamente ressaltado, com fundamento na suposição de ser o matrimônio de pessoa com mais de sessenta anos decorrente apenas do interesse financeiro, o ordenamento jurídico pátrio retira dos nubentes sexagenários o poder de autodeterminar-se, ou seja, de fazer as suas próprias escolhas, quando determinada o regime de bens ao qual que deverá reger a sua relação com o seu parceiro.

Contudo, tal ingerência, se tornaria ainda mais gravosa se implicar em vedação à doação entre cônjuges casados no regime de separação obrigatória de bens.

Isso porque, além de implicar em injustificada supressão da autonomia da vontade, a restrição à capacidade negocial do nubente sexagenário significaria, ainda, limitação ao direito à propriedade, haja vista que não se pode falar em exercício desta garantia sem que tenha o proprietário livre poder de dispor do seu bem, o que, igualmente, não encontra amparo na Constituição Federal.

Nesse diapasão, vale enfatizar que não se vislumbra nenhum interesse social que justifique a restrição ao direito de propriedade dos cônjuges sexagenários, uma, na hipótese em análise, esta pode ser uma das conseqüências da inconstitucional imposição do regime da separação obrigatória de bens aos nubentes desta idade, que decorre apenas do juízo de valor atribuído pelo legislador acerca das uniões por eles estabelecidas.

No contrato de doação, imbuído pela capacidade para a prática dos atos da vida civil que lhe defere o ordenamento jurídico brasileiro, assume o doador o ônus de sofrer uma diminuição no seu patrimônio, uma vez que a sua vontade está dirigida a fazer o bem ao donatário, frise-se, ponto fulcral desta espécie contratual.

Por conseguinte, diante da natureza, requisitos e essência da doação, pode-se afirmar que a proteção dirigida aos sexagenários se tornaria mais gravosa se retirasse a sua livre vontade de dispor do seu patrimônio por meio deste contrato.

Nesse diapasão, impende destacar que a ingerência do legislador na autonomia da vontade do doador, que, como dito exaustivamente, é movida pela afeição, não se coaduna com a Constituição Federal nem com o conteúdo do direito de família.

Esta é a ilação da lição do professor João Baptista Villela:

Ao Estado, assim como à Igreja, compete em grau a um só tempo eminente e inabdicável reconhecer a família. Reconhecer a família, contudo, não é apenas abrir-lhe espaço nas constituições e nos códigos, para, depois, sujeitá-la a regras de organização e funcionamento. É, antes, assegurar sua faculdade de autonomia e, portanto, de auto-regramento. O casamento e a família só serão o espaço do sonho, da liberdade e do amor à condição de que os construam os partícipes mesmos da relação de afeto.

Mas falar de sonho, de liberdade e de afeto soa quase estranho a quem tenha sob os olhos as leis, a literatura e a jurisprudência de direito de família. Já notaram os senhores o quão pouco se fala de amor em sede de direito de família, como se este não fosse seu ingrediente fundamental? O amor está para o direito de família assim como o acordo de vontades está para o direito dos contratos. Curiosamente, contudo, enquanto o acordo de vontades constitui a figura central da teoria dos contratos, em torno da qual tudo pivota e tudo se esclarece, parece haver, em direito de família, no mínimo, um bem disfarçado pudor de explicitar a matéria de que ele é feito e sem a qual sua razão de ser não se sustenta e se esboroa. Certo, o discurso do direito de família não deve fazer concessões à pieguice, mas não tem por que ser árido, asséptico, frio e insensível. Quando fazemos direito de família, o fazemos para quem está buscando a realização de seus mais inefáveis anelos de felicidade ou, ao contrário, para quem se vê, no comum das vezes, submergido nos obscuros poços do desespero.

Casamento, quando não o assola o vírus do tédio e da indiferença, é sempre algo que oscila entre o êxtase e a tragédia. Em qualquer das três hipóteses, lidamos com valores graves e complexos da alma humana. Do êxtase não cuida o direito, propriamente, mas deve concorrer para que os parceiros de uma união o possam encontrar. E, se não os pode vacinar contra os riscos da tragédia que nos espreitam dissimulados em cada esquina da vida, pode muito bem oferecer-lhes os caminhos de uma reconstituição. Que dizer, enfim, do tédio e da indiferença? Mal insidioso e sorrateiro, câncer invisível e indolor, refoge â prevenção do direito e se instala sem que os mesmos parceiros tomem consciência. Poucos o terão descrito com o rigor poético e o desnudamento incomplacente de um Mia Couto:

"Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames.

O amor, afinal, que utilidade tem?"13

Que utilidade tenha cabe aos amantes mesmos descobrir ou redescobrir. Certo é, porém, que o colapso do encantamento há de poder encontrar remédio também no direito e não apenas quando ateste a falência definitiva de um empreendimento amoroso. Não se pretende que o direito de família substitua-se à psicoterapia, mas seria redução imperdoável de suas virtualidades concebê-lo ou praticá-lo com exclusão do aconselhamento preventivo e reparatório, assim como da mediação extrajudicial. Merece, no mínimo, observação e estudos um movimento que nos Estados Unidos levaria â criação da ativíssima Academy of Family Mediators e que, na Inglaterra, associou juristas na experiência conhecida por Solicitors in Mediation, a qual, por sua vez, desembocaria, em 1988, na Family Mediators Association. A avaliação crítica da experiência de mediação tem mostrado seus limites. E é natural que ela os tenha.

Contudo, parece definitivo o seu espaço enquanto ela se revelar fiel à divisa que lhe propôs Irène Théry:

"A Justiça se ocupa do passado e do presente, a mediação se ocupa do futuro".14

Perder, assim e em resumo, esta perspectiva - a de que o direito de família está preordenado ao bem-estar pessoal - é fazer do homem instrumento, e não fim, do ordenamento jurídico.

Mas o discurso envergonhado e distante não é tudo e pode bem se explicar, em parte, pelas erráticas orientações do conjunto normativo de que se entretece o direito positivo na matéria.

Uma análise ainda que perfunctória de nossa produção em direito de família irá mostrar, com efeito, que o parasitam traços de marcada hostilidade à nossa capacidade de nos exprimirmos a nós mesmos, no espaço das relações amorosas.

Não creio laborar em equívoco ou exagero, se disser que o direito de família brasileiro é procriacionista, autoritário, determinista, substitutivista, invasivo e extremamente guloso.

Abstenho-me de descrever em pormenores as configurações que revelem cada um desses desvios aberrantes de uma ordem familial saudável.

Evoco, porém, a título de exemplo, alguns nichos em que, decididamente, a dogmática, a interpretação ou a aplicação se põem ao desserviço das pessoas nas situações de família, seja esta de direito ou de fato.

Prossegue o professor, asseverando sobre os equívocos decorrentes da exacerbada regulamentação do direito de família:

Não posso, aqui e agora, senão confirmar o que, de outra feita, assinalei quanto ao patológico pendor nacional para a regulamentação: "Em sua crônica obstinação de navegar na contracorrente da história, o Brasil insiste em impor normas para tudo, quando a consciência dos novos tempos e a superação de paradigmas positivistas apontam para a desregulamentação. A bulimia normativa constitui um dos traços mais persistentes e autoritários de nossa cultura: legisla-se sempre, e, cada vez mais, sobre o imaginável e o inimaginável, como se a regra do Estado apusesse aos assuntos uma espécie de selo de qualidade".18

Disse "patológico pendor nacional"? Patológico, sim, sempre. Nacional, nem tanto. Ou, pelo menos, não só nacional. Pode-nos servir de consolo ou de alívio ao sentimento de auto-estima saber que do mesmo mal se queixa também fora do Brasil. E não apenas juristas. Muito explicável, de resto, pois não somos os únicos a experimentar as perturbações provocadas pelo fenômeno. Dirse-á até que os juristas temos como melhor nos proteger da incontinência legislativa. Em entrevista sobre temas variados, o cientista Reinhard Kurth, que dirige o Instituto Robert Koch, em Berlim - uma organização no ramo das doenças infecciosas -, perguntado o que faria em primeiro lugar, se lhe fosse dado governar por um dia a Alemanha, respondeu:

"Uma lei contra a fúria regulamentatória".19

Os custos da contínua e crescente usurpação de nossa liberdade de auto-regramento por parte do Estado são múltiplos e elevados. Ela começa por nos desqualificar como sujeitos. Depois "alimenta a infantilização das pessoas individualmente consideradas e a castração da sociedade civil. É como se umas e outra fossem incapazes de adotar, por si mesmas, regras de convivência e de composição dos seus interesses. E, portanto, devessem estar sob a permanente tutela de uma super organização, o Estado, supostamente tão sábio, arguto, sensível e prudente, que lhes devesse ditar até mesmo como viver uma experiência amorosa. Na verdade, o casamento ou qualquer outra forma de associação íntima entre pessoas só interessa ao Estado sob dois estritos aspectos: a proteção dos filhos menores e a adequada liquidação de um eventual patrimônio promíscuo que se tenha formado. E, quanto a isso, seja dito de passagem em favor de nossos tribunais, as questões suscitadas pelo concubinato vinham encontrando soluções armadas com habilidade, imaginação e arte. Tudo o mais, isto é, fora as questões de menores e divisão de patrimônio, depende antes das pessoas em cada caso envolvidas. Mais precisamente de seus sonhos, de seus gostos, de suas inclinações e até mesmo de seus caprichos e idiossincrasias.

Para resumir: o par que opta por não se casar (podendo fazê-lo gratuitamente quantas vezes queira) e escolhe outra forma de união, o faz porque, definitivamente, não se quer pôr sob o regime que a lei estabelece. Portanto, haveria que deixá-lo em paz, vivendo seu próprio e personalíssimo projeto de vida amorosa. Mas nas estruturas autoritárias de poder isso é impensável: há que regulamentar, regulamentar, regulamentar. Na hipótese concreta, o delírio normativista do Estado traduz-se, por assim dizer, em casar ex officio quem não quis casar motu proprio. Ou seja, submeter compulsoriamente ao regime legal do casamento, tanto quanto possível, aqueles que deliberadamente fizeram a opção pelo não casamento. Tanto a Lei n° 8.971, de 29 de dezembro de 1994", quanto a mais recente "Lei n° 9.278, de 10 de maio de 1996 aplicaram o quanto puderam de casamento a todas as formas de convivência".20

Por fim, assinala o doutrinador os efeitos da exaustiva regulamentação, qual seja, a interferência do legislador na capacidade e autonomia negocial dos indivíduos, e, assim, da dissociação do direito de família com as relações que por ele devem ser tuteladas.

A Justiça de Família, tal qual a própria família, só pode ganhar em concentrar-se no que constitui o seu fazer específico. Se Maclver pôde dizer, com luminoso acerto, que a família, abdicando sucessivamente de outras funções, acabou por encontrar a sua mesma, não há erro em antecipar que a aplicação das varas de família às questões de seu específico interesse institucional importará em tratamento mais adequado dos problemas submetidos à sua jurisdição.

Competindo ao juiz sempre ouvir as partes com atenção e equanimidade, situações há, contudo, em que este dever assume um caráter de todo fundamental para a sorte dos feitos e a crença no poder da Justiça. Elas estão implicadas sempre que o processo envolve a privação da liberdade ou a restrição ao convívio - perdas que cortam na alma, ainda quando deixam intacto o patrimônio. A crise do processo penal e a crise do processo de família são, sobretudo, uma crise de escuta. O acusado quer ser ouvido. E não só sobre as circunstâncias próximas da conduta incriminada, sendo certo que seu eventual desvio de comportamento não o faz perder o direito à interlocução. As crianças e os adolescentes, cujos conflitos os tenham levado à presença do juiz, têm o sagrado direito de encontrar na pessoa do magistrado o pai ou a mãe que não puderam ter ou que, se tiveram, não souberam ou não puderam bem exercer as suas funções. Ora, ser pai ou ser mãe é, em larga medida, saber ouvir.

Finalmente, quanto aos cônjuges desavindos: se há algum sentido em que compareçam perante a autoridade judiciária, só pode ser o de que nela identifiquem os ouvidos atentos da empatia e a voz serena do bom conselho.

Como se chegar, porém, a esse ideal de escuta e de expressão, se o magistrado não dispõe de tempo, porque os autos se empilham sobre sua mesa e as partes se acotovelam na ante-sala das audiências?

Não serve, pois, à Justiça de Família uma política expansionista.

De resto, também nisto vale o símile da gula: o guloso é basicamente alguém que perdeu o sentido do gosto e que, portanto, sacrifica o bom em favor do muito, vale dizer, sobrepõe a quantidade à qual idade.

O que nos faz a nós - e especialmente o que nos faz nas relações de família - é a nossa capacidade de dar e receber amor. Não a matéria de que nossos corpos são feitos ou o sangue que por ela circula. Foi precisamente quando punha a nu os equívocos na família assentada na consangüinidade que David Cooper deixou escapar uma afirmação forte, dura mesmo - direi - mas, quem sabe, tornada necessária pelos equívocos que culminariam na cultura do DNA. "O sangue" - disse Cooper - "é mais espesso do que a água apenas porque se constitui na corrente energizadora de uma certa estupidez social".26

Chamei de guloso o direito de família. De que outra forma poderia qualificar a tendência de reconduzir às varas de família questões que de família nada têm? A liquidação de um patrimônio comum entre conviventes, em que não estejam envolvidos incapazes, nada tem de específico que imponha o especial apetrechamento do juízo de família. Trata-se de pura questão patrimonial para cuja solução é mesmo de se supor que estejam mais bem aparelhadas as varas cíveis comuns, às quais deve ser levada. Isto, claro, quando não a possam resolver extrajudicialmente os próprios sócios ou condôminos. Condôminos, sim, Senhoras e Senhores:

O grande movimento que Sir Henry Maine descreveu no seu clássico Ancient Law como a passagem de uma ordem fundada no regulamento para uma ordem fundada no contrato, e que caracteriza a transformação das sociedades que evoluem27, encontraria, um século depois, em Michel Vasseur, curiosa e feliz replicação. Para Vasseur, assistimos hoje ao deslocamento progressivo de uma sociedade fundada no unilateral imposto para uma sociedade que se inspira no bilateral negociado.28

Quem fala bilateral negociado, fala em espaço para a expressão das individualidades e, portanto, em recuo dos atos de autoridade. E em "Direito de Família" quero ver o direito que se impõe à família e não ò direito que a família se autoconfere, e, se na família está o dinamismo criador de nossos sonhos, diria que a aplicação das geniais formulações de Maine e Vasseur está em diminuir o coeficiente de direito - leia-se: de autoridade, invasão e arbítrio - e elevar o de família - leia-se: de liberdade e de criação. Se assim for, penso que continuará sendo uma santa receita que ao homem (assim como à mulher) não é bom viver só.

Das lições acima, verifica-se que a vasta normatização do direito de família, por vezes, acaba retirando do sujeito o seu direito de se autodeterminar, o que implica ofensa ao princípio da liberdade esculpido na Constituição Federal.

4.5. DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA:

Leciona Adilson de Abreu Dallari:

O princípio da isonomia é uma decorrência imediata do princípio republicano, motivo pelo qual o insuperável GERALDO ATALIBA, às págs. 133 e ss. de seu “República e Constituição”, (RT, São Paulo, 1985) afirmou que ele se irradia sobre todos os dispositivos constitucionais, afetando tanto a elaboração das leis quanto todos os atos administrativos:

“Não teria sentido que os cidadãos se reunissem em república, erigissem um estado, outorgassem a si mesmos uma constituição, em termos republicanos, para consagrar instituições que tolerassem ou permitissem, seja de modo direto, seja indireto, a violação da igualdade fundamental, que foi o próprio postulado básico, condicional da ereção do regime. Que dessem ao estado – que criaram em rigorosa isonomia cidadã – poderes para serem usados criando privilégios, engendrando desigualações, favorecendo grupos ou pessoas, ou atuando em detrimento de quem quer que seja. A res pública é de todos e para todos os cidadãos. De nada valeria a legalidade, se não fosse marcada pela igualdade.

A igualdade é, assim, a primeira base de todos os princípios constitucionais e condiciona a própria função legislativa, que é a mais nobre, alta e ampla de quantas funções o povo, republicanamente, decidiu criar. A isonomia há de se expressar, portanto, em todas as manifestações de Estado, as quais, na sua maioria, se traduzem concretamente em atos de aplicação d lei, ou seu desdobramento. Não há ato ou forma de expressão estatal que possa escapar ou subtrair-se às exigências da igualdade.

Nos casos em que as competências dos órgãos do Estado – e estes casos são excepcionais – não se cinjam à aplicação da lei, ainda aí, a isonomia é princípio que impera e domina. Onde seja violado, mistificado, fraudado, traído, há inconstitucionalidade a ser corrigida de ofício ou mediante pronta correção judicial. Toda violação da isonomia é uma violação aos princípios básicos do próprio sistema, agressão a seus mais caros fundamentos e razão de nulidade das manifestações estatais. Ela é como a pedra de toque do regime republicano.”

Consoante afirmado quando da análise da inconstitucionalidade da disposição do Art. 1.641, II, do Código Civil, a imposição do regime de separação de bens afronta ao princípio da isonomia.

Outro não deve ser o entendimento no que tange à eventual vedação à doação entre cônjuges casados sobre o supramencionado regime.

O Código Civil, embora traga regra sobre o contrato de compra e venda entre cônjuges, possibilitando-o quanto aos bens excluídos da comunhão, não faz qualquer menção quanto à doação.

Assim sendo, para a doutrina, possível a doação entre cônjuges, ainda que casados sobre o regime da separação convencional de bens, bem como entre companheiros, uma vez que o regime jurídico a eles aplicado é o da comunhão parcial de bens.

A única ressalva, decorrente da própria lógica do sistema, embora não consignado no Código Civil, seria a impossibilidade da prática da liberalidade para aqueles sujeitos à separação obrigatória de bens, sob pena de burla ao regime matrimonial.

Caso prevaleça este o entendimento, observar-se-á uma inconsistência no ordenamento jurídico, a saber: os nubentes sexagenários que permanecerem na informalidade, vivendo em união estável, possuirão tratamento diferenciado e mais benéfico em relação àqueles que decidirem se unir em matrimônio, uma vez que, conforme se depreende do ensinamento de Pablo Stolze, abaixo transcrito:

Tecidas tais considerações, e no que tange especificamente à problemática da doação, cumpre-nos observar que o codificador dedicou as suas regras tutelares à relação familiar constituída entre COMPANHEIROS (pessoas desimpedidas ou simplesmente separadas de fato), ao passo que, por outro lado, negou a tutela do direito de Família aos CONCUBINOS (pessoas de convivência proibida), dispensando, a estas últimas, apenas a disciplina do Direito Obrigacional, segundo a teoria da sociedade de fato.

E, aqui, chegamos ao clímax do nosso pensamento: para que possamos compreender devidamente o problema da doação, necessário que travemos uma diagnose diferencial entre companheiros (inserida no âmbito do Direito de Família) e a relação travada entre concubinos (inserida no âmbito do Direito Obrigacional).

O que notamos é que o Código Civil, ao tratar do contrato de doação, proíbe a doação entre concubinos (especialmente na hipótese de quebra do dever de fidelidade por subsistência de outra relação amorosa, ao lado do casamento, e não entre companheiros (partes em uma união estável):

“Art. 550. A doação entre cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal. (grifamos)

Fixada, portanto, a premissa de que a proibição sob análise diz respeito à doação entre concubinos, podemos concluir, por consequência, que pretendeu o legislador, no caso, preservar a estabilidade patrimonial do casamento e dos próprios herdeiros necessários do doador. (STOLZE, 2008, p.132)

Nesse diapasão, verifica-se que, por dispensar tratamento diferenciado entre os cônjuges casados no regime da separação legal de bens e os companheiros, evidente a ofensa ao princípio da isonomia, esculpido na Constituição Federal.

Ademais, não se pode olvidar que, diante da presunção de capacidade civil dos sexagenários, afastada tão-somente mediante processo no qual seja discutida a senilidade, com vistas à sua interdição, não se afigura razoável a vedação à doação promovida por pessoas acima desta idade, apenas em razão do regime de bens ao qual está submetido em função do matrimônio, mormente porque aleatória, e dissonante com a realidade fática, a escolha da idade para a imposição legal.

Pode-se concluir, portanto, que incompatível com o princípio constitucional da isonomia que possa uma pessoa com sessenta anos incompletos, por exemplo, possa ter o seu casamento regido pelo regime de bens que escolher e praticar todos os atos que atinentes à capacidade civil que lhe atribui o diploma civil.

Isso é o que se infere da doutrina do professor Adilson de Abreu Dallari, aproveitando-se das ilações de mestre Celso Antônio:

Conforme ensina o mencionado mestre, nem toda especificação ou diferenciação feita por lei é compatível com o sistema jurídico. Dado que um dos princípios do sistema jurídico brasileiro é exatamente o princípio da isonomia, somente são com ele compatíveis as discriminações que preencham determinados requisitos:

“Para que um discrímem legal seja conveniente com a isonomia, consoante visto até agora, impende que concorram quatro elementos:

  1. que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto, um só individuo; 
  2. que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferenciados;
  3. que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;
  4. que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja permanente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público.

O último elemento encarece a circunstancia de que não é qualquer diferença, conquanto real e logicamente explicável, que possui suficiência para discriminações legais. Não basta, pois, poder-se estabelecer racionalmente um nexo entre a diferença e um consequente tratamento diferenciado. Requer-se, demais disso, que o vínculo demonstrável seja constitucionalmente pertinente. É dizer: as vantagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interesses acolhidos no sistema constitucional.(Destacou-se)

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO. “Conteúdo jurídico do princípio da igualdade”. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 41 e 42.

Prossegue o Adilson de Abreu Dallari, asseverando a estreita correlação havida entre o princípio da isonomia e o da razoabilidade.

Não existe uma solução mágica e universamente aplicável, como um gabarito, que, por simples comparação possa dizer, com absoluta segurança quando uma determinada exigência legal é constitucionalmente aceitável, ou quando ofende ao princípio da isonomia. A solução deve ser buscada na observação cuidadosa das circunstâncias de cada caso, fundamentalmente com o uso do bom-senso, que, no mundo jurídico corresponde à aplicação do princípio da razoabilidade:

“O princípio da razoabilidade, na origem, mais que um princípio jurídico, é uma direção de senso comum, ou mais exatamente, de bom-senso, aplicada ao direito. Esse “bom-senso jurídico” se faz necessário à medida que as exigências formais que decorrem do princípio da legalidade tendem a reforçar mais o texto das normas,a palavra da lei, que o seu espírito. A razoabilidade formulada como princípio jurídico, ou como diretriz de interpretação das leis e atos da administração, é uma orientação que se contrapõe ao formalismo vazio, à mera observância dos aspectos exteriores da lei, formalismo esse que descaracteriza o sentido finalístico do direito”.

“A invocação do princípio da razoabilidade é, portanto, chamado à razão, para que os produtores da lei e seus aplicadores não se desviem dos valores e interesses maiores protegidos pela Constituição, mesmo quando aparentemente estejam agindo nos limites da legalidade”..

(MARIA PAULA DALLARI BUCCI, “O princípio da razoabilidade em apoio à legalidade”, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, n° 16, Editora RT, São Paulo, 1996, p. 173)

Assim sendo, resta claro que o legislador apenas estará autorizado a estabelecer diferenciações que estejam calcadas no princípio da razoabilidade, sob pena de não encontrarem guarida na Constituição Federal.

Destarte, vê-se que a vedação à doação entre cônjuges sexagenários casados no regime de separação obrigatória, por decorrer de norma que fornece tratamento desigual e irrazoável entre pessoas que se encontram na mesma situação de fato, não pode prevalecer, haja vista que dissonante com o princípio constitucional da igualdade.

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Sobre a autora
Roberta Rabelo Maia Costa Andrade

Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Salvador (2005), especialização em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (2008) e especialização em Direito Público pela Universidade de Brasília (2013). Atualmente é Procuradora Federal - membro da Advocacia-Geral da União.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Roberta Rabelo Maia Costa. A validade da doação realizada por sexagenário casado no regime da separação obrigatória de bens em favor do seu cônjuge. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3941, 16 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27331. Acesso em: 22 dez. 2024.

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