5. CONCLUSÃO
Com a suposta intenção de proteger os sexagenários e as quinquagenárias contra pessoas que com eles pretendessem casar por meros interesses financeiros, o artigo 258 do Código Civil de 1916 estabelecia como regime obrigatório entre os cônjuges a separação de bens.
O Código Civil vigente manteve a odiosa restrição à liberdade de escolha do regime de bens, disposta no artigo 1.641, inciso II, embora tenha igualado a idade para os homens e as mulheres sujeitos à norma, qual seja, sessenta anos.
A imposição do regime de separação obrigatória de bens para os sexagenários, apesar de reproduzida pelo novel legislador, não encontra amparo na Constituição Federal.
Inicialmente, impõe-se destacar que a norma importa em grave ofensa ao princípio constitucional da isonomia.
Isto porque, importa distinção entre pessoas que possuem capacidade para todos os atos da vida civil conferidas pelo próprio código civil.
Evidente se torna a ofensa ao princípio supracitado em razão presunção de senilidade que pairou sobre os sexagenários, o que demonstra ser irrazoável e injustificada a desigualação, permitida em hipóteses excepcionais e sempre com o intuito de estabelecer situações positivas.
Como se não bastasse, a situação desigualitária imposta aos sexagenários acaba por afrontar à Lei 10.741/2003, por meio do qual são vedadas quaisquer ações que importem em discriminação dos idosos, mormente porque atentatória ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Ademais, a determinação constante do art. 1641, inciso II, do Código Civil, indubitavelmente, restringe a capacidade negocial dos nubentes.
Impende destacar que, atenta à incompatibilidade da restrição aos sexagenários com a perspectiva de vida dos brasileiros, bastante diferente da que se verificava no início do século XX, mas mantendo a imposição inconstitucional e ilegal, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que altera a idade dos nubentes para setenta anos.
Apesar da restrição imposta pelo Código Civil, o STF, por intermédio da súmula 377, entendeu que, no regime da separação obrigatória de bens, se comunicam os bens adquiridos na constância do matrimônio.
Segundo parte da doutrina, com o advento do Código Civil, restou revogada a citada Súmula, que, contudo, continua sendo aplicada pelos Tribunais Pátrios, com a chancela dos juristas que entendem que o entendimento manifestado pelo STF coíbe o enriquecimento sem causa.
Embora o Código Civil vigente tenha reproduzido, em seu artigo 1.641, a disposição constante do art. 258 do Código Civil de 1916, não o fez com relação à restrição existente no artigo 312 do diploma anterior, por intermédio do qual restavam vedadas as doações antenupciais entre cônjuges casados no referido regime de bens.
Vale ressaltar que, não obstante o artigo 312 supramencionado apenas fizesse referência às doações antenupciais, muitos doutrinadores, com fundamento neste dispositivo, assim como considerando que a prática da liberalidade consistira em burla ao regime de bens, entendem que a vedação está implícita no ordenamento jurídico.
Todavia, a vedação da doação entre cônjuges casados no regime da separação de bens, especialmente em decorrência da imposição estabelecida por lei para os sexagenários, não encontra amparo na lei nem na Constituição Federal.
Inicialmente, deve-se rechaçar a aplicabilidade do artigo 312 do diploma civil, haja vista que, além de não ter sido reproduzido pelo Código Civil, o que traduziria a sua revogação, tratando-se de norma que impõe restrição, não poderia o intérprete dar interpretação extensiva ao dispositivo que impedia tão-somente a doação realizada no pacto antenupcial.
Demais disso, longe de configurar burla ao regime de bens, e, portanto, ao ordenamento jurídico, a possibilidade do estabelecimento da liberalidade entre os cônjuges sexagenários dele decorre logicamente.
Isso porque, como a suposta vedação à doação entre os cônjuges sexagenários está consubstanciada na imposição inconstitucional da separação de bens para estes nubentes, por conseguinte, restaria eivada pelo vício dela decorrente.
Nesse diapasão, impende salientar que a vedação à doação se afigura ainda mais gravosa que a imposição do regime de bens aos sexagenários, uma vez que, ao firmar o contrato em tela, está o doador exercendo a sua livre vontade de dispor dos seus bens com o intuito claro e expresso de beneficiar o donatário, o que não decorre, ao menos de forma imediata, da simples escolha do regime de bens.
Assim, a vedação à doação traduziria supressão da capacidade negocial do nubente sexagenário, o que consistiria em ofensa ao princípio da autonomia da vontade, e, implicaria, ainda, em limitação ao seu direito à propriedade, que abrange o poder da livre disposição do bem pelo proprietário, igualmente tutelado pela Constituição Federal.
Outrossim, a vedação à doação também não se coaduna com o princípio da isonomia, eis que, inexistindo norma que estabeleça a proibição da liberalidade entre companheiros sexagenários, não poderia o ordenamento jurídico estabelecer distinção entre pessoas que estão na mesma situação de fato, mormente pois, ao privilegiar a informalidade, a desigualação mostrar-se-ia irrazoável.
Importa destacar que o Código Civil não estabeleceu proibição à doação entre cônjuges, como fez com relação ao contrato de compra e venda, nos termos do Art. 499 do Código Civil.
Assim, harmonizando-se os regramentos atinentes à compra e venda e à doação, lícitos seriam os contratos firmados entre cônjuges no que tange aos bens excluídos da comunhão.
Por conseguinte, com fulcro na Súmula 377 do STF, que aproxima, no que concerne aos efeitos patrimoniais o casamento com separação de bens dos nubentes àquele em que há comunhão parcial, desconstituindo, assim, as conseqüências legais típicas que dele decorreriam, pode-se afirmar que não há incompatibilidade entre a realização da liberalidade e aquele regime.
Longe de configurarem meras assertivas, o entendimento manifestado no presente trabalho encontra respaldo nas decisões dos Tribunais de Justiça pátrios e foi chancelado pelo o Superior Tribunal de Justiça que, em decisão recente, entendeu válida doação feita por um cônjuge ao outro, mesmo sendo eles casados no regime da separação de bens em razão da imposição constante do Art. 1.641, inciso II, do Código Civil, consistindo em importante precedente.
Assim sendo, conclui-se que a invalidade dos contratos de doação firmados entre cônjuges sexagenários sujeitos ao regime da separação obrigatória de bens apenas poderá ser reconhecida se inoficiosos ou quando se observar a incapacidade do doador, a ilegitimidade do donatário, a inexistência de aceitação, a inobservância da forma prescrita e a inidoneidade do objeto.
6. REFERÊNCIAS
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Notas
[1]Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
II - da pessoa maior de sessenta anos;
[2] STF – RE 7243 – Rel. Min. Filadelfo Azevedo – j. 12.07.43 – RF 98/67.
[3] Cf. Curso de Direito Civil, Vol. 6, 28ª Edição, 2004, do Professor Silvio Rodrigues, atualizada por Francisco José Cahali, pp. 192-193 (n. 88).
[4] Artigo “O papel da culpa na separação e no divórcio”, in, Repensando o Direito de Família, Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família, IBDFAM, Belo Horizonte, 1999, págs. 191/206). Site: