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O estado de flagrância como hipótese autorizativa de prisão na Justiça Penal

05/04/2014 às 16:41
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A prisão em flagrante representa uma medida necessária dentro da sociedade, mas deve realizar-se dentro dos limites impostos pelos princípios da ampla defesa e da legalidade.

De regra, a detenção física do indivíduo pressupõe a existência de sentença penal condenatória com trânsito em julgado. Isso significa que, somente após esgotados todos os meios de defesa constitucionalmente garantidos, o Estado tem o direito de obrigar o condenado a cumprir a sanção penal imposta pela prestação jurisdicional. Nesse estágio do procedimento, o direito de liberdade do indivíduo, que fez decorrer a formação do devido processo legal, cede lugar ao direito de punir do Estado, que se realiza por meio da prisão, como forma de expressão de sua soberania.

Com efeito, o vocábulo “prisão”, na terminologia jurídica, corresponde ao termo utilizado para expressar o cerceamento ou supressão, mediante clausura, do direito de liberdade, inerente ao ser humano. De acordo com Heráclito Antônio Mossin, prisão “é o vocábulo tomado para exprimir o ato pelo qual se priva a pessoa de sua liberdade de locomoção, de ir e vir, recolhendo-a a um lugar seguro e fechado. É o tolhimento da liberdade física da pessoa nas condições estabelecidas pela Constituição Federal e pelas leis ordinárias”[1].

Fernando da Costa Tourinho Filho, por seu turno, conceitua a prisão como “a privação da liberdade individual de ir e vir; e, tendo em vista a denominada prisão-albergue, podemos definir a prisão como a privação, mais ou menos intensa, da liberdade ambulatória”[2].

Para Liberato Póvoa e Marco Villas Boas, a prisão pode ser definida “como toda e qualquer restrição à liberdade corpórea individual, dentro de recinto fechado, seja em casa, ou penitenciária, ou dependências policiais, ou de quartel, ou de casa fechada destinada à punição ou correção, ou, ainda, pela limitação da liberdade mediante algemas, ou ligações a presos etc.”[3].

Como se observa, a prisão, seja considerada como pena, seja tomada na qualidade de medida cautelar (prisão processual), caracteriza-se como providência coativa que atinge essencialmente o direito individual de liberdade.

Em específico no que concerne à prisão em flagrante, é admitida na Justiça Penal como exceção ao princípio de que ninguém pode ser preso sem sentença penal passada em julgado e sem ordem escrita de autoridade competente, podendo o indivíduo surpreendido em situação de flagrante delito vir a ser preso, não só pelos órgãos da Polícia Judiciária, mas também por qualquer do povo.

Tal modalidade de prisão processual subsiste seja em virtude da repercussão grave e imediata que um crime praticado nessas condições produz no sentimento popular, seja devido à grande probabilidade de a captura, em tais casos, ser legítima antecipação do resultado final do processo penal que irá instaurar-se contra o autor da infração.

Nesse tocante, Heráclito Antônio Mossin justifica a prisão em flagrante, fundamentalmente, por duas razões:

“Primeiro porque, visando a lei repressiva à tutela de bens jurídicos fundamentais do cidadão, atendíveis ao equilíbrio social, a prisão no próprio momento em que o delinqüente executa ação penal ilícita atenua a revolta causada no sentimento popular, em decorrência do impacto e repercussão séria que um crime, nessas circunstâncias, produz. Segundo porque a detenção do autor de qualquer fato punível em situação de flagrância induz a uma quase certeza da procedência da pretensão punitiva a ser formulada pelo encarregado da persecutio criminis na peça angular da relação jurídico-processual.”[4]

De fato, a prisão em flagrante constitui uma medida cautelar de natureza processual que dispensa ordem escrita, encontrando previsão expressa no art. 5º, inciso LXI, da Constituição Federal e no art. 301 do Código de Processo Penal (CPP). De acordo com José Frederico Marques, tal prisão “é, ao mesmo tempo, coação cautelar e notitia criminis, pois é o conhecimento da prática de infração realizada ao vivo, no próprio instante em que o delinqüente viola a lei penal”[5]. Além disso, “o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, não impede a prisão em flagrante, de natureza processual, que não foi suprimida pelo legislador constitucional”[6], como bem acentuado por Julio Fabbrini Mirabete.

O flagrante delito ocorre quando o agente é surpreendido no momento em que executa a ação penalmente ilícita. Em tal caso, pode-se falar em “certeza visual do crime”, por meio de sua comprovação direta. Conduz o flagrante delito, portanto, à irrefutabilidade das provas sobre a autoria, garantindo a incidência da Justiça repressiva sobre o transgressor da figura penal[7].

Como consequência, de outro lado, tem-se que, caso não demonstrada a situação de fragrância, afigura-se ilegal a prisão decretada sob tal fundamento. Nesse sentido, veja-se o entendimento jurisprudencial ilustrado no precedente do Superior Tribunal de Justiça a seguir colacionado:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRISÃO EM FLAGRANTE. AUSÊNCIA DAS HIPÓTESES DO ROL TAXATIVO DO ARTIGO 302 DO CPP. CONSTRANGIMENTO ILEGAL.

1. Não evidenciado o estado de flagrância, previsto no rol taxativo do artigo 302 do Código de Processo Penal, mostra-se ilegal a prisão em flagrante do paciente.

2. Habeas corpus concedido.”

(HC 171.261/AC, Rel. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador Convocado do TJ/CE), Sexta Turma, julgado em 28/09/2010, DJe 25/10/2010 – grifou-se)

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Assim, na flagrância, existindo manifesta evidência probatória quanto ao fato típico e sua autoria, justifica-se a detenção daquele que é surpreendido cometendo a infração penal, a fim de que a autoridade competente possa, com presteza, constatar a realidade fática e colher prova da infração[8].

A prisão em flagrante delito pode dar-se ao ser o criminoso surpreendido “na atualidade ainda palpitante do crime” ou “em circunstâncias que evidenciam sua relação com este”, conforme se extrai do item VIII da Exposição de Motivos do CPP. No primeiro caso, tem-se o flagrante real, que corresponde aos incisos I e II do art. 302 do CPP (“Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem: I - está cometendo a infração penal; II - acaba de cometê-la;”), enquanto na segunda hipótese ocorre o quase-flagrante, que se refere ao inciso III do mesmo dispositivo (“III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;”).

Além desses, existe ainda o flagrante presumido, que sucede quando o agente é encontrado, logo depois da infração, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração, como prevê o inciso IV do art. 302 do CPP (“IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.”). Tal hipótese encerra o rol taxativo de situações autorizativas da prisão em flagrante, enunciadas no referido dispositivo legal.

Por fim, não se pode olvidar que, embora represente uma medida necessária dentro da sociedade, a prisão em flagrante deve realizar-se dentro dos limites impostos pelos princípios da ampla defesa e da legalidade. Nesse sentido, revela-se oportuna a crítica de David Alves Moreira ao afirmar que “quando a mesma servir ao sistema, indiscriminadamente, como justificativa às cobranças de um povo que se vê sempre ameaçado e sem segurança, deixará de atender sua finalidade e, por conseqüência, perderá sua utilidade”[9].


Bibliografia:

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1997, vol. 4.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.

MOREIRA, David Alves. Prisão Provisória: as medidas cautelares de natureza pessoal no processo penal: de sua indevida aplicação, conseqüências e fundamentos à sua reparação. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996.

MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 1998, vol. 2.

PÓVOA, Liberato; VILLAS BOAS, Marco. Prisão temporária. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 1996.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, vol. 3.


NOTAS

[1] MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 1998, vol. 2, p. 358.

[2] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, vol. 3, p. 373.

[3] PÓVOA, Liberato; VILLAS BOAS, Marco. Prisão temporária. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 1996, p. 18.

[4] MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 1998, vol. 2, p. 360.

[5] MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1997, vol. 4, p. 80.

[6] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, pp. 370-371.

[7] MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 1998, vol. 2, p. 360.

[8] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, vol. 3, pp. 421-422.

[9] MOREIRA, David Alves. Prisão Provisória: as medidas cautelares de natureza pessoal no processo penal: de sua indevida aplicação, conseqüências e fundamentos à sua reparação. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996, p. 67.

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Sobre a autora
Kalinca de Carli

Procuradora Federal em Brasília (DF). Coordenadora de Licitações, Contratos e Convênios da Procuradoria Federal junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DE CARLI, Kalinca Carli. O estado de flagrância como hipótese autorizativa de prisão na Justiça Penal . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3930, 5 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27469. Acesso em: 22 dez. 2024.

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