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A justa causa nos crimes de preconceito contra pessoas com deficiência

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16/04/2014 às 07:31

Resumo:


  • Os tipos penais da Lei 7853 de 1989 visam proteger os direitos das pessoas com deficiência, como acesso à educação, trabalho e saúde.

  • Esses crimes incluem recusar inscrição em escolas, obstar o acesso a cargos públicos, negar empregos e dificultar assistência médica, entre outros.

  • Apesar da existência desses dispositivos legais, a aplicação dos mesmos e a comprovação do preconceito contra pessoas com deficiência ainda são desafios na prática jurídica.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

6 Preconceito no Acesso à Saúde

O delito que passamos a estudar decorre do Art. 2º, inciso II, o qual em suas alíneas elenca direitos das pessoas com deficiência no que se refere à saúde. A alínea c, especialmente, apresenta particular ligação com o tipo a estudarmos. Visa garantir o acesso das pessoas com deficiência aos estabelecimentos de saúde públicos e privados, e seu adequado tratamento neles, sob normas técnicas e padrões de conduta apropriados.

Pelo Art. 8º, inciso IV, constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro), anos e multa, recusar, retardar ou dificultar internação ou deixar de prestar assistência médico-hospitalar e ambulatorial, quando possível, à pessoa portadora de deficiência.

As formas pelas quais o delito pode ser praticado consistem em recusar, retardar, ou dificultar a prestação de assistência médico-hospitalar a portador de deficiência em razão desta. Recusar é o ato de negar-se terminantemente a cumprir com o dever imposto por lei, não é simplesmente um comportamento omissivo, mas desobediência a preceitos legais atinentes à função do agente e dos quais ele deve ter pleno conhecimento. Retardar significa protelar, utilizar-se de delongas desnecessárias no cumprimento do dever jurídico de prestar assistência ao deficiente, ou seja, retarda sem necessidade, quem procrastina quando já estão presentes as mínimas condições de realização do atendimento exigido pelo caso concreto. Deixar de prestar assistência constitui-se na modalidade pela qual o agente comete o crime ao omitir-se de executar o dever de prestar assistência, considerando para tal atitude negativa, unicamente a deficiência da vítima.

Se o agente desconhece a condição de portador de deficiência da vítima, não se pode imputar a ele a prática do delito de Preconceito no Acesso à Saúde, apenas a de omissão de socorro, prevista no Art. 136 do Código penal. “A prestação de assistência incumbe àquele sujeito determinado que no estabelecimento hospitalar está encarregado de tal serviço. Trata-se, pois, de crime omissivo em que o sujeito é especializado, determinado, próprio. Ainda assim é possível o concurso de agentes, uma vez que mais de um agente, obrigado a prestar a assistência a deficiente venha a omi­tir-se.”7

A impossibilidade no cumprimento do dever legal inviabiliza a caracterização do tipo penal, devendo se examinar, no caso concreto, as circunstâncias em que ocorrem os fatos, tais como as condições técnicas, e materiais tanto do agente quanto do estabelecimento.

Assim, podemos afirmar que o elemento subjetivo constitui-se com o dolo direto do agente em recusar, retardar ou dificultar o acesso da pessoa para atendimento médico ou ambulatorial, exclusivamente em razão de sua deficiência.

Em todos os tipos até aqui estudados, observa-se que para a configuração dos delitos, é premente que a conduta seja levada a efeito por motivo exclusivamente derivado da deficiência da vítima. Esta condição, que é extremamente subjetiva do agente, dificulta a caracterização dos crimes, isto é, não havendo confissão do agente, a prova de que houve discriminação incumbe ao autor da Ação Penal.

Comumente, pessoas com deficiência (cegos, surdos, ou paraplégicos), procuram postos de saúde, pois apresentam quadro clínico que requer cuidados, (normalmente, febre, resfriado e dores de cabeça). Muitos não conseguem atendimento, uma vez que alega-se que o estabelecimento não tem especialização para tratar de pessoas com deficiência, como se febre, resfriado e dores de cabeça fossem doenças específicas de pessoas com deficiência. Juridicamente, esta atitude é criminosa, o atendimento é negado única e exclusivamente em razão da deficiência das pessoas, porém, a maior dificuldade está em comprovar este fato.


7 Descumprimento de Ordem Judicial em Ação Civil Pública

Quando qualquer dos legitimados, pretendendo propor a Ação Civil Pública, requer, às autoridades competentes, certidões ou informações que julgue necessárias para instrução da peça inicial, e as têm negadas, por razões não admitidas em lei ou sem qualquer explicação, a ação pode ser proposta sem estes documentos, cabendo ao juiz requisitá-las, desde que estejam presentes as condições estabelecidas no Art. 3º, Parágrafo 4º da Lei 7853/89.

Pelo inciso V do Art. 8º da Lei Especial, constitui crime deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, execução de ordem judicial expedida na ação civil aludida no bojo do texto legal. Decompondo as modalidades executivas, observa-se que deixar de cumprir refere-se a desobedecer sem qualquer justificativa, portanto, consiste na omissão que por si só, é suficiente para caracterizar o delito, desde que seja certo o recebimento da ordem judicial. Retardar é a modalidade pela qual o agente protela deliberada e desnecessariamente, com a finalidade de tornar mais lenta a resposta. Frustrar é valer-se de qualquer meio tendente a impedir ou evitar que se cumpra a determinação judicial. João Mestieri ensina que “O crime é próprio, sendo autora a pessoa obrigada a acatar a ordem judicial, mas o concurso de agentes é admissível, uma vez que terceiro, conscientemente, venha a participar da ação delituosa. A tentativa é, em tese, reconhecível, pois o processo executivo é fracionável.”8

O justo motivo ocorre sempre que fatos alheios à vontade do responsável pelo cumprimento da ordem o impedem de obedecê-la. O tipo subjetivo cabível é o dolo direto, consistente na vontade de deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, a execução de ordem judicial expedida na Ação Civil Pública.


8 Desacato a Órgão do Ministério Público

Em 1978, a professora Ada Pelegrine Grinover publicou a obra "A Tutela Jurisdicional dos Interesses Difusos". Depois desta publicação, a ação Civil Pública foi estruturada por meio de projetos de lei que vieram a se constituir na Lei 7347/85, a qual passou a ser um dos fundamentos de atuação processual no sentido de se evitar e reparar danos ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Com a entrada em vigor da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, bem como do Código de defesa do Consumidor, o Ministério Público passou a ter as atribuições de promover a ação e o inquérito civil públicos. Somando-se a isto, foi promulgada a Lei 8884/94, que introduziu no bojo do pedido da ação civil pública, os danos de natureza moral. A Lei 7853/89 inclui na abrangência da Ação Civil Pública os interesses coletivos e difusos relativos às pessoas com deficiência, conforme previsto no Caput de seu Art. 3º.

A norma legal contida no inciso VI do Art. 8º visa sancionar comportamentos assumidos no sentido de causar óbices na obtenção de dados técnicos indispensáveis à propositura da Ação Civil Pública objeto da Lei 7853/89, quando requisitados pelo Ministério Público. Encontra-se diretamente relacionado com o que vem preceituado no Art. 6º da Mesma Lei, tendo como finalidade precípua, assegurar, por meio de norma penal, o exercício das funções atribuídas ao órgão do Ministério Público na propositura da referida ação.

As modalidades pelas quais se executa o crime encontram-se definidas em recusar, retardar ou omitir. As duas primeiras guardam o mesmo valor e significado já expostos no item anterior, inclusive quanto aos objetivos. Omitir, refere-se a deixar de apresentar dados técnicos, passando a conotação de que estes inexistem. “A modalidade permite o surgimento de concurso de delitos, com a falsidade; contudo, sendo esta a única forma de se expressar à omissão, tipicamente exigida, há de se considerar como absorvida pela infração à lei especial.”

É certo que a recusa, o retardamento ou a omissão deve ser de dados técnicos, indispensáveis para a propositura da ação Civil Pública, pois é este o elemento normativo do tipo. O tipo subjetivo constitui-se do dolo direto, ou seja, da vontade livre e consciente de recusar ou retardar a apresentação dos dados indispensáveis a propositura da ação. A última das modalidades, isto é, omitir, teoricamente admite a forma culposa, visto que o responsável pelo fornecimento dos dados pode agir com negligência, imprudência ou imperícia e assim, mesmo sem ter a intenção, deixar de apresentar todos os dados solicitados. Quanto ao dolo eventual, não se vislumbra qualquer possibilidade de sua ocorrência.

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9 Conclusão

Os tipos Penais aqui analisados resultaram da tentativa do Poder Legislativo e do desejo das pessoas com deficiência de uma sociedade inclusiva. A sociedade inclusiva foi assim pensada sob fundamentos cuja opção é discutível: optou-se pelos comandos inclusivos rígidos para que as pessoas com deficiência passassem a receber tratamento igualitário em suas demandas por direitos, tais como trabalho, educação e saúde.

O Estado, através da Lei penal disseminou a crença de que a violação aos direitos protegidos pelo art. 8º da Lei 7853 de 1989 resultaria em prisão para os autores da discriminação. Com isso, as escolas passaram a buscar meios justos para recusar estudantes deficientes, as empresas continuaram a não empregar trabalhadores com deficiência sob argumentos juridicamente lícitos e os hospitais que recusam pacientes com deficiência continuam a recusá-los porque na saúde a tarefa parece ser mais fácil, sobretudo quando se inclui na motivação argumentos relativos às especialidades médicas.

Não deixa de ser uma verdade que as pessoas com deficiência passaram a contar com dois importantes instrumentos em sua busca por oportunidades de acesso à educação, ao trabalho e à saúde: o primeiro são os comandos inclusivos rígidos do art. 8º da Lei 7.853 de 1989. O segundo é o medo que esses comando geram nos autores das discriminações. Disto resulta que a Lei e o medo têm produzido coação e esta coação tem feito uma falsa inclusão. Seja como for, casos em que tenham sido aplicados os dispositivos criminais da Lei 7853 de 1989 são raríssimos. O propósito da Lei, que era forçar a inclusão parece ter sido atingido. Atualmente as discriminações precisam ser explicadas por argumentos juridicamente lícitos e politicamente corretos.


Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Josemar Figueiredo. Depois da Lei de Cotas: Um Estudo dos Atuais Resultados da Política de Inclusão das Pessoas com Deficiência no Mercado de Trabalho. São Paulo: Livre Expressão Editora, 2013).

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 1966.

MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito Penal.: Parte Geral. 17. ed.São Paulo: Atlas, 2000.

STJ. Superior Tribunal de Justiça. Professora que recusou na classe segunda aluna com necessidades especiais não cometeu crime . Disponível em <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=104010> Acesso em 22 out. 2013.

TEPERINO, Maria Paula (Org.). Comentários à Legislação Federal Aplicável às Pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: Forense, 2003.


Notas

1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. P. 1380.

2 MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1966, Vol. 3, P. 22.

3 TEPERINO, Maria Paula. (Org.) Comentários à Legislação Federal Aplicável às Pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: Forense, 2003. P. 215.

4 Ao julgar HC 1022478º, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou que não houve ilícito penal na conduta de uma professora do ensino fundamental que se recusou a receber uma criança com deficiência auditiva em sua classe. O episódio ocorreu na Escola Municipal Josafá Machado, no Rio Grande do Norte, no ano de 2004. A aluna foi impedida de frequentar a classe sob a alegação de que já havia outra criança com necessidades especiais na turma e houve a recomendação de que os pais buscassem outra turma junto à mesma escola. O argumento da professora foi o de que não seria possível conduzir os trabalhos de forma regular com a presença da segunda criança com necessidades especiais na turma.

5 Sobre o tema, recomendamos ainda ao leitor a consulta à nossa obra: Depois da Lei de Cotas: Um estudo dos atuais resultados da Política de inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. São Paulo: Livre Expressão Editora, 2013.

6 TEPERINO, Maria Paula. (Org.) Comentários à Legislação Federal Aplicável às Pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: Forense, 2003, P.. 215.

7 ibid. p. 18 P. 218.

8 IBID P. 221.

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Sobre o autor
Josemar Figueiredo Araújo

Doutorando e Mestre em Ciências jurídicas e Sociais e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Bacharel em Direito pela Faculdade da Cidade. Professor da Universidade Veiga de Almeida (UVA) e do Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro (UniverCidade). É advogado com atuação destacada para a defesa dos direitos humanos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Josemar Figueiredo. A justa causa nos crimes de preconceito contra pessoas com deficiência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3941, 16 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27759. Acesso em: 22 dez. 2024.

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