Resumo: A criação de unidades de conservação de proteção integral implica o reconhecimento da competência do seu órgão gestor para conceder serviços públicos, exorbitando as regras gerais sobre a matéria.
Palavras-chaves: Direito constitucional e administrativo. Serviços públicos. Concessão. Competência. Unidades de conservação de proteção integral. Órgão gestor.
A conservação da natureza e a defesa do meio ambiente são matérias de competência comum da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, cuja cooperação, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e o bem estar nacional, será disciplinada em Lei Complementar, segundo dispõe o art. 23, parágrafo único, da Constituição da República.
Com o objetivo de assegurar a todos o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o Poder Público foi dotado de instrumentos constitucionais para defendê-lo e preservá-lo, conforme reza o art. 225, § 1º, da CF, in verbis:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
Sob essa perspectiva, a criação de unidades de conservação em todo território nacional pela União, Estados, Municípios e pelo Distrito Federal representa, ao mesmo tempo, a concretização do mandamento constitucional de proteção do ambiente e também implica, sob o ponto de vista da organização da Administração Pública, o reconhecimento da competência do ente federado que criou a unidade de proteção integral para conceder serviços públicos que serão desenvolvidos no seu interior.
Isto porque essas unidades, a exemplo dos Parques Nacionais, se caracterizam pela proibição de seu uso direto, retirando da livre-iniciativa dos particulares uma série de atividades que somente poderão ocorrer mediante autorização do Poder Público, que passa a ser o titular desses serviços naquele espaço especialmente protegido.
Com efeito, conquanto seja uma unidade de domínio público (art. 11 § 1º da Lei nº 9.985/2000), um Parque Nacional não é acessível, em plena liberdade, por qualquer pessoa ou sujeito à livre ordenação municipal, como são a maior parte dos bens de uso comum do povo (art. 99, I do Código Civil), pois, a exemplo de qualquer unidade de conservação, está sujeito a um regime especial de administração (art. 2º, I da Lei nº 9.985/2000).
Em âmbito federal, a obrigação de defender e preservar um Parque Nacional implica reconhecer a competência do órgão gestor, Instituto Chico Mendes da Conservação da Biodiversidade, autarquia criada pela Lei nº 11.516/2007 para executar a política nacional das unidades de conservação, visando “a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico” (art. 11 da Lei nº 9.985/2000).
Diante dessa peculiaridade que informam a situação jurídica dessas unidades é que se coloca a questão de saber se a prestação de serviços público, quando admitida no interior da unidade, será concedida pelo ente titular do serviço ou se será concedida pelo ente que tutela o órgão gestor da unidade.
Transpondo o problema para esfera federal, fica evidente que será da competência será do ICMBIO, e não do Estado, do Município ou mesmo de agência reguladora federal, a delegação do serviço público em favor de particulares e
Com efeito, a existência de unidades de conservação, que são criadas em razão de atributos naturais que merecem especial proteção, não deve ser desprezada ou esvaziada diante do exercício da competência de outros entes federados. É preciso de uma solução que busque a concordância prática entre os interesses envolvidos, de modo a garanti-los na maior medida possível, diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes.
Em matéria de gestão das unidades de conservação, o que envolve a exploração do bem público mediante concessão, é preciso observar o limite da competência de cada entidade competente para conceder um serviço público.
Serviço público, nas lições de Marçal Justen Filho1, é “uma atividade pública administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, destinada a pessoas indeterminadas e executada sob um regime de direito público”.
No texto constitucional, os serviços públicos estão disciplinados em regras esparsas, mas que ditam os limites da atuação do Poder Público na prestação ou delegação dos serviços públicos. Com efeito, existem i) serviços de prestação obrigatória pelo Estado e de concessão obrigatória, que é o caso do serviço de radiofusão sonora e de sons e imagens previsto no art. 223 da CF; ii) serviço de prestação obrigatória e exclusiva pelo Estado ou de concessão proibida, que é o caso do serviço postal e correio aéreo nacional previsto no art. 21, X da CF; iii) Serviço de prestação obrigatória sem exclusividade e de concessão proibida (foram chamados de serviços “mistamente públicos e privados” pelo STF na ADI nº 1923/DF); iv) serviços cuja prestação direta pelo Estado não é obrigatória, mas lhe incumbe incentiva e promover a atividade, a exemplo dos serviços de transporte rodoviário, ferroviário, de navegação aérea, dentre outros previstos no art. 21, XI e XII da CF, cuja numeração não é exaustiva.
O STF, ao julgar a ADI nº 1923/DF, decidiu que seria inconstitucional uma lei que afastasse, em caráter definitivo, a prestação dos serviços que o Estado é obrigado, ao mesmo tempo em que seria inconstitucional lei que “estatizasse” a prestação de serviços que são livres à iniciativa privada, a exemplo da educação e previdência social.
Esses são os limites constitucionais para a atuação do Estado no campo dos serviços públicos.
Partindo-se da hipótese de que o serviço de transporte de passageiros no interior de um Parque Nacional é um serviço público, estar-se-ia diante de uma atividade que o Poder Público não é obrigado a prestar, mas deve promove-los para atender aos objetivos legais da criação da unidade, que inclui a visitação em contato com a natureza e o turismo ecológico, conforme art. 11 da Lei nº 9.985/2000.
Em se tratando, por exemplo, de serviço de transporte ferroviário de passageiros, tanto a Lei de criação da ANTT, quanto a lei de criação do ICMBIO apontariam para a competência da última autarquia, sem prejuízo da indispensável intervenção da Agência na fiscalização da prestação dos transportes (art. 25, IV da Lei nº 10.233/2001) e na elaboração dos parâmetros editalícios por que os serviços serão concedidos, já que é a entidade da Administração Federal que detém a expertise na matéria.
Com efeito, rezam os arts. 3º e 14 da Lei nº 10.233/2001:
“Art. 3o O Sistema Federal de Viação – SFV, sob jurisdição da União, abrange a malha arterial básica do Sistema Nacional de Viação, formada por eixos e terminais relevantes do ponto de vista da demanda de transporte, da integração nacional e das conexões internacionais.
Parágrafo único. O SFV compreende os elementos físicos da infra-estrutura viária existente e planejada, definidos pela legislação vigente.
(...)
Art. 14. Ressalvado o disposto em legislação específica, o disposto no art. 13 aplica-se conforme as seguintes diretrizes:
I – depende de concessão:
(...)
b) o transporte ferroviário de passageiros e cargas associado à exploração da infra-estrutura ferroviária;
(...)
III - depende de autorização:
(...)
f) o transporte ferroviário não regular de passageiros, não associado à exploração da infra-estrutura.
A lei incumbiu ao ICMBIO a gestão das unidades de conservação federais (art. 1º, I da Lei nº 11.516/2007), sob um regime especial de administração (art. 2º da Lei do SNUC), que exorbita a competência da ANTT para conceder um serviço naquele espaço especialmente protegido, cuja operação não pode prescindir de um viés de proteção ambiental mais acentuado que não se faz presente em outros pontos do território nacional (art. 225, §1º, III da CF).
De fato, reza o art. 1º, I da Lei nº 11.516/2007, in verbis:
“Art. 1º Fica criado o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de:
I - executar ações da política nacional de unidades de conservação da natureza, referentes às atribuições federais relativas à proposição, implantação, gestão, proteção, fiscalização e monitoramento das unidades de conservação instituídas pela União;”
Se a lei que criou o ICMBIO lhe atribuiu a gestão, obviamente lhe conferiu a competência legal para delegar a prestação dos serviços públicos em sua área de atuação, afinal quem pode o mais também pode o menos. Nessa toada, não é demais relembrar a teoria dos poderes implícitos, segundo a qual cada finalidade conferida ao órgão público tem como reflexo a atribuição das competências necessárias a sua plena execução. Sobre a questão, decidiu o Ministro Celso de Mello na ADI nº. 2.797/DF:
STF: “Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos.
Cabe assinalar, ante a sua extrema pertinência, o autorizado magistério de MARCELO CAETANO (" Direito Constitucional ", vol. II/12-13, item n.º 9, 1978, Forense), cuja observação, no tema, referindo-se aos processos de hermenêutica constitucional e não aos processos de elaboração legislativa - assinala que, ´Em relação aos poderes dos órgãos ou das pessoas físicas ou jurídicas, admite-se, por exemplo, a interpretação extensiva, sobretudo pela determinação dos poderes que estejam implícitos noutros expressamente atribuídos" (grifei). Esta Suprema Corte, ao exercer o seu poder de indagação constitucional - consoante adverte CASTRO NUNES (Teoria e Prática do Poder Judiciário, p. 641/650, 1943, Forense) - deve ter presente, sempre, essa técnica lógico-racional, fundada na teoria jurídica dos poderes implícitos, para, através dela, mediante interpretação judicial (e não legislativa), conferir eficácia real ao conteúdo e ao exercício de dada competência constitucional, consideradas as atribuições do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça, tais como expressamente relacionadas no texto da própria Constituição da República.
Não constitui demasia relembrar, neste ponto, Senhora Presidente, a lição definitiva de RUI BARBOSA (Comentários à Constituição Federal Brasileira, vol. I/203-225, coligidos e ordenados por Homero Pires, 1932, Saraiva), cuja precisa abordagem da teoria dos poderes implícitos - após referir as opiniões de JOHN MARSHALL, de WILLOUGHBY, de JAMES MADISON e de JOÃO BARBALHO - assinala: ´Nos Estados Unidos, é, desde MARSHALL, que essa verdade se afirma, não só para o nosso regime, mas para todos os regimes. Essa verdade fundada pelo bom senso é a de que - em se querendo os fins, se hão de querer, necessariamente, os meios; a de que se conferimos a uma autoridade uma função, implicitamente lhe conferimos os meios eficazes para exercer essas funções. (...).
Quer dizer (princípio indiscutível) que, uma vez conferida uma atribuição, nela se consideram envolvidos todos os meios necessários para a sua execução regular. Este, o princípio; esta, a regra. Trata-se, portanto, de uma verdade que se estriba ao mesmo tempo em dois fundamentos inabaláveis, fundamento da razão geral, do senso universal, da verdade evidente em toda a parte - o princípio de que a concessão dos fins importa a concessão dos meios (...). (Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.797-2 - Distrito Federal).
Marçal Justen Filho2, a propósito do tema, defende que a exploração econômica dos bens públicos se afina com a “necessidade de o Estado dar aproveitamento mais adequado para um conjunto de bens públicos que permanecem ociosos. Não se trata de promover pura e simples alienação dos bens públicos não utilizados formalmente para a satisfação de necessidades coletivas. O que se reconhece é o dever de o Estado buscar soluções racionais para o seu patrimônio, extraindo dele as receitas possíveis”.
Visando incentivar o turismo ecológico e de recreação em contato com a natureza e a utilização dos princípios e práticas da conservação da natureza no processo de desenvolvimento, (art. 4º, II, V, XII e art. 11 da Lei nº 9.985/2000), o ICMBIO – ou o órgão gestor estadual ou municipal – tem plenos poderes para conceder o serviço público de passageiros e a exploração de um bem público, no caso a infraestrutura de transporte, a um particular que vença a respectiva licitação, com base no art. 33 da Lei nº 9.985/2000:
“Art. 33. A exploração comercial de produtos, subprodutos ou serviços obtidos ou desenvolvidos a partir dos recursos naturais, biológicos, cênicos ou culturais ou da exploração da imagem de unidade de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, dependerá de prévia autorização e sujeitará o explorador a pagamento, conforme disposto em regulamento”
Quando a lei se referiu à autorização, ela o fez de forma genérica, como instrumento de delegação de serviços públicos, uma vez que não se poderia cogitar da autorização de polícia administrativa (art. 170, parágrafo único, da CF), já que o Parque Nacional é uma unidade de proteção integral, na qual atividades que impliquem seu uso direto estão proibidas e, portanto, excluídas da livre-iniciativa.
Portanto, sempre que houver a prestação de um serviço público no interior de uma unidade de conservação de proteção integral, incumbirá ao órgão gestor da unidade a prestação direta ou sua concessão a particulares, exorbitando das regras gerais de competência para concessão de serviços públicos.
Notas
1 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 487
2 JUSTEN FILHO, Marçal. “Exploração econômica dos bens públicos: cessão do direito à denominação”, Revista de Direito da Procuradoria-Geral, Rio de Janeiro, (edição especial), 2012, p. 229.