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Do uso de algemas por parte dos integrantes dos órgãos de segurança pública sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana

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29/04/2014 às 11:30
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O emprego de algemas com objetivo de punir, causar lesão ou sofrimento físico ou moral de qualquer espécie – aqui se enquadra o direito à imagem - deve ser rechaçado e punido pelas autoridades competentes.

Resumo: Este trabalho, elaborado a partir de pesquisas de cunho eminentemente documental e bibliográfico, tem por objetivo mostrar o tema aos leitores de maneira objetiva e simples, primando pela apresentação de informações doutrinárias e jurisprudenciais atualizadas e consentâneas com as normas internacionais de defesa dos direitos humanos e com os procedimentos técnicos de emprego operacional das algemas por parte dos agentes públicos responsáveis pela aplicação da lei.

Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana – Direitos Humanos – Técnica Policial - Emprego de Algemas – Amparo Jurídico

Sumário: 1 INTRODUÇÃO 2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: ORIGENS E FUNDAMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS 4 USO DE ALGEMAS 4.1 Origem 4.2 Normas internacionais a respeito do tema 4.3 Normas federais infraconstitucionais acerca do emprego de algemas 4.3.1 Lei de Execução Penal 4.3.2 Código de Processo Penal 4.3.3 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 4.3.4 Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário 4.3.5 Legislação Penal Militar 4.4 A súmula vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal 4.4.1 Momento jurídico de criação da súmula vinculante 11 do STF 4.4.2 Comentários a respeito da súmula vinculante 11 do STF 4.5 Legislações estaduais a respeito do uso de algemas 4.6 O uso abusivo e suas conseqüências 4.6.1 Ofensa ao direito de imagem versus direito à informação 4.6.2 Uso de algemas e o crime de tortura 4.6.3 Uso de algemas e abuso de autoridade 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 6 REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

A promulgação da Constituição de 1988 foi um marco histórico na defesa dos direitos humanos no Brasil. As mais diversas formas de intervenção arbitrária nos direitos e liberdades individuais outrora praticadas entre 1964 e 1985 pelos então agentes do “Estado Militarizado” passaram a ser rechaçadas pelo texto da Constituição cidadã.

A dignidade humana, no âmbito da Constituição de 1988, é o fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa e que com base nesta é que aqueles devem ser interpretados.

Entre os núcleos axiológicos do Estado brasileiro esculpidos no art. 1° da Constituição da República, destaca-se a manifesta intenção do legislador em garantir a dignidade da pessoa humana.

Baseado neste corolário, a constitucionalização dos direitos individuais e coletivos e elevação destes ao status de cláusulas pétreas tem por objetivo conceder aos cidadãos amplas garantias do seu exercício, evitando assim que atos praticados por outrem e, em especial, pelo próprio Estado através dos seus agentes, representem um retrocesso no processo de resgate do exercício da cidadania.

Nesse sentido, para garantir a preservação da vida, da ordem pública e do patrimônio em geral, os órgãos de segurança pública elencados no art. 144 do texto constitucional pátrio, durante o exercício de suas atribuições, utilizam algemas e diversos outros equipamentos com o objetivo precípuo de garantir a integridade física e a vida das pessoas envolvidas e minimizar os riscos de sua atividade profissional.

Ainda, imperioso salientar que inexiste legislação federal que limite a utilização de tal instrumento aos integrantes dos órgãos de segurança pública. Tal situação, além de ampliar de maneira desmedida e temerária suas possibilidades de emprego, tem como conseqüência direta, por vezes, a dificuldade de identificar a pessoa que as empregou de maneira afrontosa.

A preservação da dignidade da pessoa humana e, em especial, o emprego de algemas por parte dos integrantes dos órgãos de segurança pública atualmente tem sido objeto de debates envolvendo representantes de todas as esferas estatais e da sociedade organizada. Busca-se definir se o uso de tal apresto por parte dos integrantes dos órgãos de segurança pública representa uma afronta aos princípios constitucionais e, especialmente, à dignidade da pessoa humana. Este será o foco deste trabalho.


2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: ORIGENS E FUNDAMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Historicamente, os idealizadores da Constituição da República promulgada em 1988 (CR/88) optaram por elencar a dignidade da pessoa humana como um dos cinco pilares da República Federativa do Brasil, conforme se infere da leitura do seu art. 1°. Dessa forma, desejou o legislador originário garantir que as pessoas fossem o fundamento e fim do Estado, devendo este existir em função daquelas e tendo por finalidade proporcionar as condições para que elas se tornem dignas.

Sob o ponto de vista filosófico, TAVARES (2008, p. 540) baseia-se nos ensinamentos de IMMANUEL KANT ao afirmar que o homem é um fim em si mesmo. Nesse sentido, KANT afirma que “no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade”.

De acordo com COMPARATO apud TAVARES (2008, p. 540)

a dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também no fato de que, por sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz e guiar-se pelas leis que ele próprio edita.

Na lição de NOVELINO (2008, p. 248) a dignidade em si “não é um direito fundamental, mas sim um atributo inerente a todo ser humano". Tratando-se, portanto, de uma característica intrínseca, não poderá ser concedida pelo ordenamento jurídico, cabendo a este a missão de fornecer meios para seu reconhecimento, respeito, proteção e promoção.

Nesse sentido, podemos concluir que dignidade significa a capacidade do ser humano de se autodeterminar frente aos seus iguais e frente ao Estado, ou seja, de agir conforme sua vontade - seja esta orientada pelo seu sentir, seja pelas normas criadas pela sociedade em que vive – e de arcar com as conseqüências de seus atos. A dignidade é, assim, um direito universal, inalienável e irrenunciável. Trata-se, em síntese, do pleno exercício do seu direito de personalidade. Segundo GAGLIANO e FILHO (2008, p. 136),

a idéia a nortear a disciplina dos direitos da personalidade é a de uma esfera extrapatrimonial do indivíduo, em que o sujeito tem reconhecidamente tutelada pela ordem jurídica uma série indeterminada de valores não redutíveis pecuniariamente, como a vida, a integridade física, a intimidade, a honra, entre outros.

Por ser uma prerrogativa imanente a todo o ser humano (posto que o acompanha desde sua concepção até depois de sua morte), sua origem remonta à origem deste.


3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS

Sob a ótica dos direitos humanos, a dignidade da pessoa humana constitui-se num valor supraconstitucional1 em torno do qual orbitam todos os direitos fundamentais. Prova disso é o teor do parágrafo 3° do art. 5° da CR/88, o qual confere status de emenda constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos devidamente aprovados pelo Poder Legislativo. Esse mesmo entendimento foi defendido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), por ocasião do julgamento do HC 115892?RS que fixou entendimento de que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, aos quais o Brasil aderiu, têm status de norma supralegal.

De acordo com a lição de QUEIROZ (2009, p. 365), os direitos fundamentais possuem dupla natureza (Doppel Gestalt), pois não garantem apenas direitos subjetivos (que podem assistir aos indivíduos singulares e também a uma coletividade determinada - associações, coligações, sindicatos etc2), mas também representam princípios objetivos básicos para a ordem constitucional democrática do Estado de Direito eis que direcionam e delimitam a atuação do legislador, traduzindo-se, quanto ao Estado, numa obrigação de “não desrespeitar”. Nesse sentido, a QUEIROZ defende o primado dos direitos fundamentais sobre a lei traduzindo uma afirmação do autor alemão Herbert Kruger3: “antes os direitos fundamentais só valiam no âmbito da lei; hoje as leis só valem no âmbito dos direitos fundamentais”.

Nos ensinamentos de CARVALHO (2009, p. 673) a dignidade da pessoa humana permeia não só os direitos fundamentais,

mas também os de natureza econômica, social e cultural, pois, no Estado Democrático de Direito, a liberdade não é apenas negativa, entendida como ausência de constrangimento, mas liberdade positiva, que consiste na remoção de impedimentos (econômicos, sociais e políticos) que possam embaraçar a plena realização da personalidade humana4.

A materialização do princípio da dignidade da pessoa humana pode ser facilmente encontrada nos Títulos II (quando protege, por exemplo, a vida, a liberdade, a imagem, a honra e a intimidade das pessoas) e VII (quando garante a todos os cidadãos a existência digna, conforme os ditames da justiça social), ambos da Constituição da República de 1988, bem como em várias convenções e tratados internacionais sobre Direitos Humanos, sendo relevante mencionar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão5, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos6, a Convenção Americana de Direitos Humanos7, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos8, e a Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Crueis, Desumanos ou Degradantes9.

Analisando o texto do Título II da CR/88 à luz das Convenções e tratados acima citados, verifica-se que o legislador originário foi buscar nelas todo o elenco dos direitos e deveres individuais e coletivos lá existente, especialmente o dever de preservação da vida humana e a vedação de submissão de qualquer pessoa a torturas, penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradante.


4 USO DE ALGEMAS

4.1 Origem

O nome “algema” advém do termo árabe Aljamaa que significa a ‘pulseira’. É dado ao instrumento articulável feito em metal e empregado contra os pulsos dos cidadãos infratores com o escopo de limitar os movimentos dos membros superiores. Aqui a diferenciamos do grilhão, eis que este é colocado nos tornozelos visando limitar os movimentos dos membros inferiores. O emprego de algemas tem o objetivo de facilitar a adoção dos procedimentos legais pertinentes às atividades de captura, prisão e escolta realizados pelos órgãos de segurança pública elencados no art. 144 da CR/88.

Historicamente falando, não existe um marco inicial do seu uso, haja vista que o instrumento, tal qual temos hoje, é oriundo do aperfeiçoamento de diversos outros mecanismos utilizados desde a idade antiga para limitação dos movimentos e coerção dos cidadãos considerados incapazes de conviver em sociedade em virtude da prática de atos atentatórios aos valores sociais e morais da época. Segundo PITOMBO, (1984), a utilização de algemas, tal qual é conhecida hoje e com o objetivo de aprisionar, remonta ao início do século XVI.

4.2 Normas internacionais a respeito do uso de algemas

Internacionalmente, as atividades desenvolvidas pelos órgãos de segurança pública estatais há muito são regidas pelo respeito á dignidade da pessoa humana, conforme corrobora o Código de Conduta para os Encarregados da Aplicação da Lei (CCEAL), adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em sua Resolução 34/169 de 17 de dezembro de 1979. Da leitura dos artigos 1° e 2° do CCEAL, infere-se que a natureza das funções e a maneira como os encarregados da aplicação da lei as exercem para preservação, restauração e manutenção da ordem pública impactam diretamente na sociedade eis que esta é, em primeira análise, sujeito passivo e ativo dos atos praticados por aqueles.

Composto por oito artigos, o CCEAL é um instrumento de orientação aos governos sobre questões relacionadas com direitos humanos e justiça criminal. Seu conteúdo estipula que os encarregados de aplicação da lei devem sempre cumprir o dever que a lei lhes impõe. Em que pese não possuir força cogente, os padrões de conduta por ele sugeridos são aplicados na educação, treinamento e acompanhamento dos integrantes dos órgãos estatais encarregados da segurança pública.

Dentre outros temas, seus artigos proíbem a prática da tortura ou outro tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante (art. 5°) além de orientar os encarregados da aplicação da lei a respeitar e proteger a dignidade e os direitos humanos (art. 2°) e empregar a força somente em casos estritamente necessários (art. 3°) e na medida exigida para manter e defender os direitos humanos de todas as pessoas. Aqui surge o primeiro marco para o emprego de algemas eis que tal situação, sem sombra de dúvida, representa uma hipótese de emprego de força contra um cidadão infrator.

No Brasil, a Polícia Militar de Minas Gerais pode ser citada como exemplo de instituição que adota as diretrizes previstas no CCEAL como parâmetros no processo de formação e reciclagem de seus integrantes.

Em que pese o diploma legal supracitado não dispor expressamente sobre as limitações ao emprego de algemas pelas autoridades estatais responsáveis pela segurança pública, da sua leitura é possível inferir uma série de parâmetros que direcionam tal assunto. Por consolidar maior respeito às liberdades dos indivíduos, e, consequentemente, impor limitações aos poderes públicos (possuem caráter negativo, pois importam na não realização de certas condutas por parte do Estado), sob a ótica constitucional esses parâmetros se confundem com os direitos fundamentais de primeira dimensão (respeito às liberdades, aos direitos civis e políticos).

As Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros10, adotadas pelo 1° Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado no ano de 1955 em Genebra e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU são a orientação que melhor disciplinam a questão. O texto, na parte que versa sobre instrumentos de coação, mais precisamente em seu n. 33, estabelece que o emprego de algemas jamais poderá se dar como medida de punição. Trata-se de uma recomendação de caráter não cogente, mas que serve como base de interpretação.

Com base nesse documento foi editado pelo Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) a Resolução n° 14, de 11 de novembro de 1994, que contém as Regas Mínimas para o tratamento do Preso no Brasil.

4.3 Normas federais infraconstitucionais acerca do emprego de algemas

Dispõe o item 1 dos Princípios básicos sobre o uso da força e armas de fogo pelos funcionários responsáveis pela aplicação da lei11 que

os governos e entidades responsáveis pela aplicação da lei deverão adotar e implementar normas e regulamentos sobre o uso da força e de armas de fogo pelos responsáveis pela aplicação da lei. Na elaboração de tais normas e regulamentos, os governos e entidades responsáveis pela aplicação da lei devem examinar constante e minuciosamente as questões de natureza ética associadas ao uso da força e de armas de fogo.

Partindo do princípio de que o emprego de algemas constitui uma das espécies de uso da força por parte dos responsáveis pela aplicação da lei, analisando o ordenamento jurídico vigente, verifica-se que não existe legislação federal que discipline o uso de algemas por parte dos órgãos de segurança pública elencados no art. 144 da CR/88. Sob o mesmo prisma, é forçoso concluir que inexiste regramento que limite a utilização de tal apresto somente aos funcionários estatais encarregados da aplicação da lei.

4.3.1 Lei de Execução Penal

Antes mesmo da promulgação da Constituição da República de 1988 alguns diplomas jurídicos mencionavam o emprego de algemas de maneira específica. É o caso, por exemplo, do art. 199 da Lei 7210/84 – Lei de Execução Penal – que exigia a edição de Decreto Federal para disciplinar o emprego de algemas em todo o território nacional. Contudo, em que pese o transcurso de 26 anos desde sua publicação, tal dispositivo não foi efetivado. Ainda, considerando que o Constituinte de 1988 impediu a edição de Decretos12 atualmente tal assunto deverá ser objeto de lei ordinária.

4.3.2 Código de Processo Penal

O Código de Processo Penal brasileiro (CPP) recentemente foi alterado pela Lei 11.689, de 11 de junho de 2008, que, entre outras modificações, inseriu o parágrafo 3° no art. 474 para vedar o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes. A alteração realizada no texto legal é baseada na aplicação da teoria garantista do Direito Penal e tem o objetivo de evitar a exposição desnecessária do réu algemado perante os jurados, o que poderia induzi-los à formação prévia de uma convicção de culpa, causando manifesto prejuízo à defesa em virtude da afronta ao direito à presunção de inocência e ao exercício da ampla defesa estabelecidos no art. 5°, LVII e LV, da CR/88. Nesse sentido o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Habeas Corpus 91.952/SP, decidiu pela anulação do julgamento de um réu que foi mantido injustificadamente algemando durante toda a sessão de julgamento do Tribunal do Júri.

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Ainda analisando o CPP, verifica-se que a inovação recentemente implementada pelo legislador possui incidência limitada eis que não abrange as demais situações em que o uso de algemas se faz necessário, como, por exemplo, no momento da captura do cidadão infrator. Para suprir tal lacuna, os aplicadores da lei buscam amparo na interpretação dos arts. 284 e 292 do mesmo diploma legal. O primeiro veda o emprego de força, salvo se indispensável no caso de resistência ou tentativa de fuga do preso. Já o art. 292, ao falar da resistência em caso de prisão em flagrante ou em virtude de mandado judicial, permite o emprego dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, devendo, ao final, ser lavrado o documento próprio assinado por duas testemunhas. Complementando o assunto, também o art. 3° do CCEAL limita o emprego da força pelos encarregados da aplicação da lei às situações em que seja estritamente necessária e na medida exigida para o cumprimento de seu dever.

4.3.3 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

Debruçando nossa atenção sobre o texto atualizado da Lei 8069, de 13 de julho de 1990, especialmente sobre a Seção V, Capítulo III, Título VI, verifica-se que esta não faz menção expressa ao emprego de algemas. Contudo, seu artigo 178 proíbe a condução ou transporte do adolescente autor de ato infracional em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco a sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade.

Analisando o texto do ECA à luz da interpretação extensiva prevista no art. 3° do CPP, é possível concluir que se o ECA previu a proibição da prática da conduta no seu artigo 178, por analogia e afeto aos princípios protetivos imanentes à legislação em comento, proibiu também, tacitamente, o emprego de algemas em crianças e adolescentes. Seria a aplicação negativa do princípio do “quem pode o mais, pode o menos”.

Data venia, ousamos discordar desse entendimento, por razões de ordem e prática. A uma porque, como já dito alhures, o texto do ECA não veda o emprego de algemas em crianças e adolescentes, mas sim sua condução e transporte em compartimento fechado de viatura policial.

A duas, porque não raras às vezes os integrantes dos órgãos de segurança pública responsáveis pela aplicação da lei deparam-se com situações em que menor infrator apreendido possui extrema destreza, grande malícia e até compleição física em muito superior à média da sua idade, sendo estas características, individualizadas ou somadas, motivos suficientes para amparar o emprego de algemas nesses casos.

Lado outro, prevalecendo a interpretação protecionista pretendida acima, não resta dúvida que a atividade policial restará prejudicada, pois ou serão necessários mais policiais para “cuidar” do menor apreendido ou, o que é pior, os policiais fatalmente se verão obrigados a empregar força física ou outros instrumentos de coerção para evitar uma eventual tentativa de fuga ou insurreição por parte do menor infrator, sendo que do emprego da força poderão sobrevir conseqüências físicas muito mais graves para o menor e para os policiais do que se tivessem empregado o instrumento técnico devidamente desenvolvido para limitar temporariamente sua liberdade motora.

Ademais, prevalecendo esse entendimento, seria então obrigatório conduzir ou transportar qualquer menor infrator, independente do seu grau de periculosidade, dentro da viatura policial e, portanto, junto a estes, e o que é pior, com as mãos livres. Tal situação significa um risco extremo para os policiais que ali estão, para o próprio menor infrator e para toda a sociedade, pois em caso de tentativa de fuga ou de agressão perpetrada pelo infrator dentro da viatura, a possibilidade de reação dos policiais restará diminuída em virtude do espaço do veículo. Além disso, o infrator conduzido nesta situação, seja maior ou menor, ficará bem próximo ao armamento utilizado pelos policiais, gerando um risco iminente de disparo acidental nestes casos.

Assim, concordamos com a doutrina policial norte americana, que preconiza que

jovens de quatorze anos ou maiores deve ser algemados quando o ato cometido for de natureza dolosa ou quando o ato seja equivalente a crimes onde o policial tenha fundada suspeita de que o suspeito deseje fugir, se lesionar, lesionar o policial ou destruir bens. Menores de quatorze anos, geralmente não devem ser algemados a não ser que seus atos sejam eivados de periculosidade ou que estejam num estado de consciência que sugira uma razoável probabilidade de que deseje fugir, se lesionar, lesionar o policial ou destruir bens13.

Aliás, este é o entendimento manifestado no recentíssimo acórdão proferido pela Quinta Turma do STJ quando do julgamento do HC 104982?RJ, cuja ementa é a seguinte:

EMENTA: Habeas corpus. Estatuto da criança e do adolescente. Ato infracional equiparado a homicídio qualificado praticado para implementação do tráfico de drogas no local do fato. Inviabilidade da pretensão de declaração da nulidade da audiência de apresentação em razão do uso de algemas pelo menor. Inexistência de ofensa à súmula vinculante 11 do stf. Fundamentação suficiente. Alta periculosidade do representado. Parecer ministerial pela denegação da ordem. Ordem denegada.

1. A excepcionalidade do uso de algemas, consignada principalmente na Súmula Vinculante 11 do STF - que dispõe que só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito - não obsta o seu emprego se demonstrada, por decisão fundamentada, a necessidade de serem precavidos os riscos antevistos no próprio enunciado sumular.

2. Na hipótese, a premência no uso do referido instrumento de jugo foi irrepreensivelmente declinada pelo Juiz condutor da audiência de apresentação ao esclarecer que o menor em questão possui alto grau de periculosidade, entrevisto pelo seu profundo envolvimento com o tráfico de drogas e pela forma de execução do ato sob investigação, caracterizado por desmedida violência, uma vez que teria promovido a morte de morador que se opôs à instalação da sede do tráfico em sua residência, alvejando-a com vários tiros e jogando seu corpo em uma lixeira e acertando sua cabeça com uma pedra.

3. Parecer ministerial pela denegação da ordem.

4. Ordem denegada.

(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 104982?RJ, relato Ministro Napoleão Maia Nunes Filho. Data do Julgamento: 19?11?1009. Data da Publicação: 22?02?2010).

Com relação ao restante do texto do art. 178 do ECA, entendemos que as demais proibições lá contidas servem apenas para salientar o respeito à dignidade e à saúde física e mental que os agentes do Estado devem ter não só com os menores infratores sob sua custódia, mas sim com todos os cidadãos infratores, independente de faixa etária ou qualquer outra situação.

4.3.4 Lei da Segurança do Tráfego Aquaviário

Já a Lei 9.537/97, que cuida da segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional, dispõe em seu art. 10:

O Comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das pessoas, da embarcação e da carga transportada, pode:

I - impor sanções disciplinares previstas na legislação pertinente;

II - ordenar o desembarque de qualquer pessoa;

III - ordenar a detenção de pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga.

A análise do exposto acima nos leva a concluir que o uso de tal instrumento pode se dar nas seguintes hipóteses: (a) prevenir ou impedir fuga, desde que haja fundada suspeita ou receio (b) evitar que o preso atente contra a vida ou integridade física dos policiais, de terceiros ou contra si mesmo, (c) evitar dano ao patrimônio público ou particular, isto sem ferir o respeito à integridade física e moral, conforme art. 5º, XLIX, CR/88. Assim, decidiu o STJ não constituir constrangimento ilegal o uso de algemas, mesmo inexistindo resistência à prisão, quando existir tumulto que o justifique14. Presente um desses motivos é possível utilizar algema em qualquer pessoa que esteja sendo detida. A jurisprudência já autorizou o emprego de algema até mesmo contra réu, juiz de direito, quando demonstrada a necessidade, conforme decidiu o STJ no julgamento do HC 35.54015, publicado no Diário da Justiça em 06 de setembro de 2005. (STJ, 5ª T, HC n. 35.540, Rel. Min. José Arnaldo, j. 5.8.2005).

4.3.5 Legislação Penal Militar

Antes de adentrar a análise do tema, cumpre-nos apresentar um conceito de crime militar e suas diferenciações.

Sobre os delitos militares, BANDEIRA (1915) apud COSTA (199-, p. 20) os define como “todo aquele que a lei assim o reconhece”. Nesse sentido, verifica-se que a legislação em vigor os definiu, mas sim apresentou um rol taxativo das diversas situações que o caracterizam, conforme se infere da leitura dos artigos 9° e 10 do Decreto-Lei 1001/69, que institui o Código Penal Militar (CPM).

Os crimes militares se classificam em duas categorias: próprios ou impróprios. Os crimes militares próprios são aqueles cujo sujeito passivo será, necessariamente, um militar. Assim para sua caracterização, exige-se uma especial condição do agente. Nesse sentido, um cidadão não conscrito nos quadros militares estaduais ou federais não pode praticá-los. Como exemplo, temos os crimes tipificados nos artigos 186 (deserção) e 196 (descumprimento de missão) do CPM.

Já os crimes militares impróprios, segundo ensina ROMEIRO (1994, p. 68), “são aqueles encontrados tanto na lei penal comum quanto na lei penal militar, ou seja, encontra tipicidade em ambas as legislações criminais”. Assim, podem ser praticados tanto por militares quanto por civis, desde que estes últimos o pratiquem em tempo de paz contra as instituições militares16 ou em tempo de guerra17. É o caso, por exemplo, dos delitos de homicídio lesão corporal e violação ou divulgação indevida de correspondência ou comunicação previstos respectivamente nos artigos 205, 209e 325 do CPM.

Por fim, considerando o teor do art. 125, §4° da CR?88, corroboramos a tese defendida por COSTA (199-, p. 22) no sentido de que “o civil poderá cometer crime militar somente contra as Forças Armadas, isto em uma análise sistêmica das competências das Justiças Militares federal e estadual”.

Analisando a legislação castrense, verifica-se que o Decreto-Lei 1002/69, que institui o Código de Processo Penal Militar (CPPM) prevê, no § 1º do art. 234, que "o emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou agressão da parte do preso". O mesmo parágrafo proíbe veementemente o emprego de algemas contra as autoridades elencadas no art. 242 do CPPM, tais como ministros de Estado, governadores, parlamentares, magistrados, oficiais das Forças Armadas (inclusive os da reserva) e da Marinha Mercante, portadores de diplomas de nível superior, entre outros. O art. 242 determina ainda que as autoridades nele elencadas devam ser alocadas em acomodação especial no caso de prisão antes de condenação irrecorrível.

Interpretando literalmente o teor dos artigos supra citados e sem adentrar o tema das imunidades e prerrogativas - previstas em diversas normas específicas - de que gozam a maioria das pessoas elencadas no art. 242 do CPMM, nos é forçoso concluir que nos casos de cometimento de crime comum por parte de alguma dessas autoridades o uso de algemas seria permitido. Tal conclusão se apresenta, no mínimo, incoerente posto que, por exemplo, um portador de diploma de nível superior não poderá ser algemado se cometer crime militar, mas sim se cometer crime comum, mesmo que aquele seja de maior reprovação social.

A outra conclusão chegaremos se analisarmos o assunto à luz da interpretação analógica prevista no art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil. Aplicando a analogia na interpretação da norma, o rol previsto no art. 242 do CPPM deve ser estendido para os crimes militares e comuns, já que a mens legislatoris contida no citado artigo pretende conceder aos cidadãos lá elencados não um privilégio, mas sim uma homenagem em razão da função pública que ocupam ou do seu grau de escolaridade.

Contudo, a melhor resposta, sem dúvida, é a que interpreta os citados artigos do CPPM à luz do critério da proporcionalidade. Sobre esse critério, TAVARES (2008, p. 714), ensina que ele possui três elementos: “1) a conformidade ou adequação dos meios empregados; 2) a necessidade ou exigibilidade da medida adotada e 3) a proporcionalidade em sentido estrito”.

Adotando o princípio da proporcionalidade, defendemos que mesmo contra as pessoas elencadas no art. 242 do CPPM poderão ser utilizadas as algemas como última ratio para evitar que elas cometam um delito mais grave do que aquele supostamente cometido pelo agente da lei ao empregar a algema em desacordo com o texto legal, devendo toda a situação ser minuciosamente documentada para fins de apuração das responsabilidades. Ainda, nesses casos, poderiam ser argüidas as excludentes de ilicitude previstas nos incisos I e II do art. 23 do CP18.

4.4 A súmula vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal

Prevista no art. 103-A19 da Constituição da República, a súmula vinculante é um instrumento utilizado pelo Supremo Tribunal Federal para manifestar seu entendimento pacífico acerca de determinado tema de caráter constitucional reiteradamente discutido pelos tribunais. Por ter efeito vinculante, seu teor direciona o entendimento dos demais órgãos do Poder Judiciário e da administração pública direta e indireta nas esferas federal, estadual e municipal.

4.4.1 Momento jurídico de criação da súmula vinculante 11 do STF

Analisando a criação da súmula vinculante 11 sob um ponto de vista holístico, verifica-se que ela foi criada com base no julgamento do HC 91952?SP, no qual o Impetrante pretendia, dentre outros pleitos, obter a declaração da nulidade da sentença condenatória do Paciente pelo fato de ele ter permanecido algemado durante toda a sessão de julgamento realizada pelo Tribunal do Júri.

Quando do julgamento do Habeas Corpus acima mencionado, o Presidente da República já havia sancionado a Lei 11689, de 09 de junho de 2008 e com vacatio legis de 60 dias, após sua publicação.

Essa lei promoveu profundas alterações no Código de Processo Penal. Dentre elas, alterou o texto do seu art. 474 para inserir nele a proibição do uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário á ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes.

Em 13 de agosto de 2008, ou seja, quatro dias após a entrada em vigor da Lei 11689?2008, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, baseado no julgamento do 91952/SP e valendo-se da ausência no ordenamento jurídico pátrio de uma norma de abrangência federal que disciplinasse o emprego de algemas, aprovou o texto da súmula vinculante 11 cujo teor é o seguinte:

Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

Assim, o emprego de algemas, que até então era objeto de análise discricionária dos agentes responsáveis pela aplicação da lei, deixou de ser regra e passou a ser medida excepcional, justificável apenas nos casos nela elencados.

No caso em tela, a edição da súmula vinculante 11 pretendeu uniformizar a controvérsia existe no Poder Judiciário e na administração pública direta e indireta envolvendo o emprego de algemas e eventual afronta à dignidade da pessoa humana e ao princípio da não culpabilidade, esculpidos respectivamente nos arts. 1° e 5°, LVII, ambos da CR?88.

4.4.2 Comentários a respeito da súmula vinculante 11 do STF

Em que pese o caráter positivo da edição do entendimento consolidado em comento, no sentido de esclarecer de uma vez por todas as hipóteses de permissibilidade do emprego de algemas por parte dos integrantes dos órgãos de segurança pública elencados no art. 144 da CR/88, entendemos que, data venia, a via eleita para tal feito não é a mais adequada.

É cediço que, por força constitucional, é competência privativa da União legislar sobre Direito Penal e processual20. Ainda, se admitirmos que a matéria nada tenha a ver com esses ramos do Direito, mas sim com direitos e garantias fundamentais, outra não será a conclusão, eis que para abordar tal matéria deveria ter sido editada uma lei ordinária inovadora ou retificadora de uma já existente.

Analisando o texto da Súmula sob á ótica constitucional, verifica-se que os Ministros do STF buscaram em última ratio, a preservação da dignidade da pessoa humana, pilar inabalável do nosso Estado Democrático de Direito e origem dos direitos e garantias fundamentais preservados pelo texto constitucional vigente.

Sob outra ótica, em que pese o texto da súmula elencar as hipóteses em que será permitido o uso de algemas, mais adiante concedeu aos agentes públicos responsáveis pela aplicação da lei uma válvula de escape, ao exigir sua justificativa por escrito, sob pena de responsabilidade.

Ora, possuindo a justificativa uma motivação eminentemente subjetiva (eis que o agente público que vivenciar a situação na qual seja necessário o emprego de algemas é que poderá dizer se houve resistência por parte do infrator ou se está com receio de que ele fuja, danifique algum patrimônio ou intente contra a vida de terceiros, dos agentes ou própria) e estando estas hipóteses já está previstas no texto sumular, nenhum questionamento poderá ser originado de tal fato, desde que justificado por escrito no corpo do documento público elaborado em virtude do fato (boletim de ocorrência, via de regra).

Por outro lado, a utilização de algemas por parte das forças policiais ao arrepio das causas justificantes constitui constrangimento ilegal, conforme já decidiram nossos tribunais superiores. Nesse sentido: STF, 1ª Turma, HC 89429/RO21 e STJ, 5ª T, HC 111112/DF22.

Outra grave conseqüência da ausência de justificativa escrita da necessidade do emprego de algemas por parte dos encarregados da aplicação da lei prevista no texto da Súmula diz respeito à decretação da “nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere”.

À luz do texto analisado, todo infrator preso ou transportado com auxílio de algemas sem a devida justificação por escrito deverá ser imediatamente posto em liberdade, independentemente do delito praticado, eis que nula foi sua prisão e, por conseqüência, todos os atos processuais dela decorrentes.

Com todo o respeito, este autor entende que os preclaros Ministros guardiões do texto constitucional e idealizadores do texto sumular laboraram em grande equívoco quando manifestaram esse entendimento. Agindo assim, concederam uma compensação exacerbada, com possibilidades de geração de consequências extremamente danosas para a sociedade, diante de um equívoco procedimental ocorrido na maioria das vezes durante a persecução criminal e que em nada interfere nos atos alusivos ao processo penal.

Haja vista que as leis penais foram criadas pelo Estado para disciplinar o comportamento dos cidadãos, estipulando sanções que variam desde a multa até a reclusão, nos casos de prática de condutas contrárias a elas, é possível defender a tese de que a ausência de justificativa do emprego de algemas não pode ter o condão macular a prisão de um cidadão que pratica uma conduta criminosa. Vale destacar que “emprego injusto” não é o mesmo que “emprego não justificado”

Como bem previsto no texto sumular em comento, nos casos de descumprimento da obrigatoriedade de justificação escrita do emprego de algemas, o autor concorda que agentes encarregados da aplicação da lei deverão ser responsabilizados administrativamente, de acordo com seus regulamentos e estatutos específicos, e até civilmente, nos casos de manifesta afronta aos direitos e garantias cuja preservação é objeto da súmula.

O texto da súmula vinculante 11, tal qual está em vigor atualmente, representa verdadeira insegurança jurídica para a sociedade, que poderá ver infratores perigosos presos retornando logo após para o convívio social em virtude do descumprimento, por parte dos policiais, de um entendimento jurisprudencial que, em que pese possuir força cogente no seio do Poder Judiciário, não possui status de lei.

Outra maneira de comprovar o equívoco praticado quando da edição da Súmula Vinculante 11 é analisá-la à luz do art. 103–A da CR?88, regulamentado pela Lei 11417, de 19 de dezembro de 2006.

Conforme o parágrafo primeiro do art. 103-A da CR?88,

A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grava insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos, sobre questão idêntica.

Nesse sentido, considerando não existir até o momento legislação federal que discipline o emprego de algemas por parte dos agentes responsáveis pela aplicação da lei, este autor novamente defende que a súmula em comento não foi o meio mais adequado para regular o assunto.

Da leitura do parágrafo primeiro do art. 103-A da CR?88 transcrito acima, se infere que a súmula deve ser criada para dirimir controvérsia acerca de norma determinada. Nesse sentido,

Ademais, não há de se falar em controvérsia envolvendo a dignidade da pessoa humana e o princípio da não culpabilidade, esculpidos respectivamente nos arts. 1° e 5°, LVII, ambos da CR?88, por se tratarem de cláusulas pétreas possuindo a primeira valor, supraconstitucional e imperatividade absoluta.

4.5 Legislações estaduais a respeito do uso de algemas

Analisando as legislações estaduais, verifica-se que os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, valendo-se das lacunas da lei, disciplinaram o tema.

No Rio de Janeiro, SOUZA (2009) cita que:

[...] interpreta-se em âmbito de sistema penitenciário, a Portaria nº 288/JSF/GDG, de 10.11.1976 (DORJ, parte I, ano II, nº 421), que considera a utilização de algemas importante meio de segurança ‘ao serviço policial de escolta, para impedir fugas de internos de reconhecida periculosidade’, respeitando é claro, o que se diz, que os servidores evitem ‘o emprego de algemas, desde que não haja perigo ou agressão por parte do preso’, e proíbe sua utilização nas pessoas contempladas como ‘especiais’ pelo CPP Militar, ainda que estejam presas à disposição da justiça comum. Mais adiante, a norma relata que se houver ‘servidores que de alguma forma tiverem necessidade de empregar algemas’, deverão se apresentar, ‘após a diligência, ao chefe de Serviço de Segurança, que emitirá relatório explicativo sobre o fato’, sujeita sua não-observância a penalidades administrativas.

No Estado de São Paulo ainda vigora o Decreto 19.903, de 30/10/1950, que assim dispões sobre o uso de algemas:

Art. 1º O emprego de algemas far-se-á na Polícia do Estado, de regra, nas seguintes diligências:

1º Condução à presença da autoridade dos delinqüentes detidos em flagrante, em virtude de pronúncia ou nos demais casos previstos em lei, desde que ofereçam resistência ou tentem a fuga.2º Condução à presença da autoridade dos ébrios, viciosos e turbulentos, recolhidos na prática de infração e que devam ser postos em custódia, nos termos do Regulamento Policial do Estado, desde que o seu estado externo de exaltação torne indispensável o emprego de força.

3º Transporte, de uma para outra dependência, ou remoção, de um para outro presídio, dos presos que, pela sua conhecida periculosidade, possam tentar a fuga, durante diligência, ou a tenham tentado, ou oferecido resistência quando de sua detenção.

Art. 2º Os abusos e irregularidades, no emprego do meio de contenção de que trata o presente decreto, serão levados ao conhecimento do senhor secretário de Estado dos Negócios da Segurança Pública, ou dos delegados auxiliares, que procederão, rigorosamente, contra as autoridades ou agentes faltosos, instaurando os procedimentos cabíveis à completa apuração de sua responsabilidade e aplicando as penas correspondentes nos termos da legislação em vigor.

Art. 3º As dependências policiais manterão livro especial para o registro das diligências em que tenham sido empregadas algemas, lavrando-se o termo respectivo, o qual será assinado pela autoridade, escrivão e pelo condutor do preso, infrator ou insano recolhido em custódia.

4.6 O uso abusivo e suas consequências

4.6.1 Ofensa ao Direito à Imagem versus Direito à Informação

A dúvida sobre se o emprego de algemas importa em ofensa à imagem do cidadão infrator é discussão longe de estar pacificada.

O texto constitucional, em seu art. 5°, X, prevê a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral sofrido em caso de descumprimento desse preceito.

Já o art. 40 da Lei de Execução Penal obriga todas as autoridades a respeitarem a integridade física e moral dos condenados e presos provisórios. Nesse sentido, o art. 41 do mesmo diploma legal prevê, dentre os direitos do preso, o de ser protegido contra qualquer forma de sensacionalismo.

Por outro lado, também está previsto no texto constitucional pátrio a garantia do direito á informação. Nesse sentindo, seu art. 220 dispõe que a manifestação do pensamento, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. Corroborando o assunto, seu parágrafo 1° prevê a plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5°, IV, V, X, XIII e XIV.

Na esteira desse raciocínio, temos que não raras às vezes a mídia divulga imagens de cidadãos infratores presos e algemados durante diversas atividades de combate ao crime. Daí surge a questão: A divulgação da imagem de um cidadão infrator algemado, mesmo que justificadamente, fere sua dignidade?

Antes de elaborar uma resposta jurídica, cumpre defender que, ao sentir do autor, tal discussão representa verdadeira inversão de valores sociais.

Atualmente, entende-se por extremo constrangimento a divulgação, pela imprensa, da imagem de um cidadão algemado. Por inúmeras vezes visualizamos noticiários em que o cidadão preso e algemado busca a todo o custo esconder esse instrumento, como se as algemas, e não o fato por ele cometido ou a ele imputado fosse o real motivo do constrangimento a que estaria sendo submetido. Nesse sentido, verifica-se de maneira cristalina que em muitos casos não existe constrangimento em cometer o crime, mas sim em aparecer na imprensa algemado.

Sob a ótica jurídica, temos que a Constituição garante a liberdade de informação jornalística. Contudo essa liberdade de informação não suplanta o direito à imagem do indivíduo, à honra e à vida privada garantidas pelo art. 5°, X, do texto Constitucional.

Nesse sentido, este autor entende que a exposição da imagem do indivíduo algemado pelos órgãos de imprensa deve ser precedida de uma análise com o objetivo de aferir se essa divulgação representa o exercício do direito à liberdade de informação ou, lado outro, configura verdadeiro espetáculo midiático sem finalidade pública, elaborado por órgãos de imprensa sensacionalista como forma de garantir sua audiência às custas da violação dos direitos e garantias constitucionais dos cidadãos.

Resposta a esse dilema vem sendo encontrada pelos próprios órgãos de imprensa que, visando evitar futuros questionamentos judiciais envolvendo o tema, elaboram seus noticiários empregando nas imagens por ele utilizadas uma série de recursos - tais como esfumaçamento e não divulgação dos nomes dos envolvidos - que visam evitar a identificação das pessoas que lá aparecem.

4.7.2 Uso de algemas e o crime de Tortura

È cediço que a prática de tortura é veementemente rechaçada pelo texto constitucional, sendo assegurados aos presos o respeito à sua integridade física e moral.23

Também o Brasil é signatário de diversos tratados e convenções internacionais sobre o tema, podendo ser citado a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, a Convenção contra tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes de 1975, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, as Regras Mínimas para Tratamento dos Presos de 1984, dentre outras.

Segundo o artigo 1° da Convenção contra tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes,

o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissão; de puní-la por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada em discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público ou por outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência, inerentes ou decorrentes de sanções legítimas.

Analisando o texto da Lei 9455, de 07 de abril de 1997, que define os crimes de tortura, podemos entender que está prática compreende qualquer ato realizado com emprego de violência ou grave ameaça que se destina a causar constrangimento físico ou mental no indivíduo com o objetivo de castigar, provocar ação ou omissão de natureza criminosa, obter manifestação sobre algum fato praticado pela vítima ou terceiro ou, por fim, submetê-lo a sofrimento em virtude de discriminação racial ou religiosa.

Ainda, de acordo com a lei em comento, as condutas nela descritas se tratam de crime comum, eis que qualquer pessoa poderá praticá-las. Contudo, no caso da sua prática pelo agente público, a reprimenda é mais severa, com previsão de aumento de pena e perda do cargo, emprego ou função em caso de condenação transitada em julgado, além da interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

Considerando a amplitude das condutas descritas na chamada Lei de Tortura, verifica-se que as algemas, se empregadas de maneira inadequada, podem ser utilizadas como instrumento para causar coerção física ou mental, posto que a torção das algemas sobre as articulações dos pulsos do infrator algemado provoca intenso desconforto, podendo chegar a extremos desagradáveis e, sobretudo, indesejáveis. Esse emprego inadequado há muito é rechaçado pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, vale colacionar excerto24 do Decreto emanado pelo Príncipe Regente em 23 de maio de 1821:

[...] que em caso nenhum possa alguém ser lançado em segredo, em masmorra estreita, escura ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca para as adoecer e flagelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros quaisquer ferros inventados para martirizar os homens, ainda não julgados, a sofrer qualquer pena aflitiva, por sentença final, entendendo-se, todavia, que os Juízes e Magistrados Criminais poderão conservar por algum tempo, em casos gravíssimos, incomunicáveis os delinquentes, contanto que seja em casas arejadas e cômodas e junca manietados ou sofrendo qualquer espécie de tormento.

(Em “Coleção das Leis do Brasil de 1821”, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1889. Parte II, p. 88 e 89).

4.7.3 Uso de algemas e abuso de autoridade

A previsão legal do crime de abuso de autoridade está contida na Lei 4898, de 9 de dezembro de 1965. Da leitura desse diploma verifica-se primeiramente que somente os servidores públicos (em regra, policiais que atuam na área operacional, pois o uso de algemas é inerente ao exercício de sua função pública) podem ser agentes das condutas nela contidas. Um particular que se utilize de algemas poderá cometer outros crimes, exceto o abuso de autoridade. assim, esse crime é, portanto, próprio.

Analisando a lei em comento à luz do tema deste trabalho, verifica-se que o emprego irregular de algemas pode constituir abuso de autoridade, desde que esse instrumento seja empregado: a) com o objetivo específico de atentar contra a liberdade de locomoção; b) atentar contra a incolumidade física do indivíduo ou; c) para submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei.25

Na primeira hipótese, o abuso de autoridade pode ocorrer não pelo uso de algemas, mas sim pelo seu emprego injustificado como instrumento utilizado para cercear a liberdade de locomoção da vítima.26

No caso de atentado contra a incolumidade física do indivíduo, verifica-se que o emprego correto das algemas não é capaz de provocar lesões suficientemente dignas de amparar a invocação dessa hipótese contra um agente público encarregado da aplicação da lei. Nesse sentido, vale destacar que os modernos modelos de algemas existentes no mercado possuem uma trava que, uma vez acionada, impede que o elo da algema se feche além do estágio determinado pelo policial no momento do seu emprego. Isso impede que os elos estrangulem os pulsos do algemado. Impede também que o cidadão infrator, de má fé, cause sua auto lesão.

A última hipótese diz respeito à submissão de pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou constrangimento não autorizado em lei. Sobre esse tema, vale reforçar a tese de que o simples fato de algemar um cidadão infrator, respeitada a legalidade da prisão e a proporcionalidade e necessidade do emprego de algemas, não importa em situação vexatória ou constrangedora posto que as algemas não são empregadas como meio de impor um castigo ou pena, mas sim com o objetivo de preservar os interesses sociais e próprios do cidadão infrator. Vexatório é cometer um crime, e não responder por ele perante a lei.

Contudo, caso as algemas sejam empregadas com a finalidade prevista no caso ora analisado, fatalmente restará configurada a prática do abuso. HERBELLA (2008, P. 123), assim explica:

Exemplificativamente, quando se algema alguém em postar ou ainda em bancos de praças, expondo-o a ato vexatório, ou mesmo quando se desfila com algemados, de modo desnecessário, tão-só para humilhá-lo, é que configura o constrangimento ao que se encontra custodiado.

Nesse sentido, o agente público responderá pelo crime de abuso de autoridade além dos eventuais outros delitos praticados (lesão corporal, violência arbitrária, etc).27

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Sobre o autor
Rodrigo Albuquerque Biffi

Bel. em Direito Bel em Ciências Militares com ênfase em Defesa Social Pós Graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela UNIPAC Pós Graduado em Ciências Penais pelas Faculdades Milton Campos Docente da Academia de Polícia Militar de Minas Gerais Oficial da ativa da PMMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIFFI, Rodrigo Albuquerque. Do uso de algemas por parte dos integrantes dos órgãos de segurança pública sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3954, 29 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27789. Acesso em: 19 abr. 2024.

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