7. JURISPRUDÊNCIAS CORRELATAS
O tema da possibilidade de indenização por danos morais ao abandono filial-afetivo traz muitas divergências doutrinárias e está em evolução na jurisprudência brasileira, que, mantinha uma tendência em negar o ressarcimento. Mas, em um caso simbólico e recente, de 2012, que chegou ao STJ, fez a Corte mudar seu posicionamento, acatando os danos morais por abandono afetivo pela primeira vez, caso que veremos mais a fundo.
Diante das frequentes divergências entre decisões judiciais, faremos uma análise do histórico jurisprudencial:
No ano de 2001 tivemos o primeiro caso famoso sobre o tema, o caso Pelé X Sandra Regina. O famoso jogador de futebol brasileiro e conhecido como “Rei do Futebol”, Edson Arantes do Nascimento teve intentada contra si ação de investigação de paternidade, que confirmada, gerou em um pedido de indenização por abandono material e intelectual. Na época, julgado pela 8º Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, os desembargadores entendendo que Sandra Regina só passou a ter vínculo de filiação com o pai, após o transito em julgado da ação de investigação de paternidade, excluiu Pelé de seus deveres parentais anteriores96.
O caso gerou polêmica nacional, e até mesmo certa revolta pelo desdém público que Pelé tratou sua filha, sendo assim, dois anos depois, contrariando o TJ Paulista, veio em 2003 uma sentença de 1º grau no Rio Grande do Sul, inovadora na questão,97 concedendo indenização a uma filha abandonada afetivamente, com cominação de compensação pecuniária de R$ 48.000,00 (quarenta e oito mil reais), que transitaram em julgado sem recurso, sendo executada.
Em 2004 tivemos ainda uma sentença de São Paulo98 e um acórdão de Minas Gerais99 confirmando novamente a possibilidade e concedendo a reparação civil pelo abandono filial-afetivo. Mas, no mesmo ano, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro100 negou a possibilidade de tal reparação afirmando, ainda, que: “ninguém está obrigado a conceder amor ou afeto a outrem, mesmo que seja filho”.
Já se visualiza neste percurso a falta de esclarecimento do tema e diferenciação entre AMOR e AFETO pelos magistrados, podendo ambos os sentimentos se confundir na vida prática, mas, não devendo confundir-se em face da reparação pelo abandono filial-afetivo, pois a fundamentação correta é de que a educação não abrange somente a escolaridade, mas também a convivência familiar e o afeto, mesmo que falte amor; esse é o entendimento e linha a ser seguida, devendo o descaso entre pais e filhos ser punido severamente por constituir um abandono moral grave.
Em 2005 a questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça pela primeira vez, com o Recurso Especial nº 757.411-MG que reformou a decisão da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada de Minas Gerais101 que havia concedido ordem de indenização por abandono filial-afetivo com reparação pecuniária de 200 salários mínimos ao filho abandonado. O relator foi o Ministro Fernando Gonçalves, que afastando a possibilidade de indenização para casos de abandono moral, fundamentou que “obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada.”102
RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do artigo 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. STJ, REsp n. 757411, 4ª T, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005. Votou vencido o Ministro Barros Monteiro, que dele não conhecia. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro relator.103
Tamanha a importância do tema, em 2008 veio um projeto de lei, que atualmente está em tramitação na Câmara104, de autoria do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), PL 4294/08, com proposta de alteração do Código Civil para constar no art. 1632 o seguinte: “Parágrafo único: O abandono afetivo sujeita os pais ao pagamento de indenização por dano moral.”, com fundamento que merece ser transcrito:
“Entre as obrigações existentes entre pais e filhos, não há apenas a prestação de auxílio material. Encontra-se também a necessidade de auxílio moral, consistente na prestação de apoio, afeto e atenção mínimas indispensáveis ao adequado desenvolvimento da personalidade dos filhos ou adequado respeito às pessoas de maior idade.
No caso dos filhos menores, o trauma decorrente do abandono afetivo parental implica marcas profundas no comportamento da criança. A espera por alguém que nunca telefona - sequer nas datas mais importantes - o sentimento de rejeição e a revolta causada pela indiferença alheia provocam prejuízos profundos em sua personalidade.105”
Apesar da relevante reflexão sobre a possibilidade da indenização civil pelo abandono parental, no ano de 2009 o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema pela primeira vez. A Excelsa Corte negou a viabilidade da indenização por danos morais no abandono afetivo, inclusive fundamentou o STF106 que já há a pena de destituição do poder familiar, prestando-se para tanto.
Contudo, a mais recente decisão sobre o caso veio no ano de 2012, onde o Superior Tribunal de Justiça mudou seu entendimento proferido em 2005, afirmando agora a possibilidade dos danos morais107 e a reparação pecuniária por abandono filial-afetivo. Num jugado de fundamentação interessantíssima de relatoria da Ministra Nancy Andrigui que, entre outras alegações ponderou que: “não há por que excluir os danos decorrentes das relações familiares dos ilícitos civis em geral. Muitos, calcados em axiomas que se focam na existência de singularidades na relação familiar – sentimentos e emoções –, negam a possibilidade de se indenizar ou compensar os danos decorrentes do descumprimento das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores”.
“Contudo, não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no direito de família”. Segundo ela, a interpretação técnica e sistemática do Código Civil e da Constituição Federal apontam que o tema dos danos morais é tratado de forma ampla e irrestrita, regulando inclusive “os intrincados meandros das relações familiares”108.
Sendo assim, e devido ao aumento na demanda sobre o tema, o STJ já modificou seu entendimento, admitindo a possibilidade da responsabilização civil no abandono filial-afetivo, resta-nos aguardar oportunidade de pronunciamento pelo STF para verificar se o mesmo igualmente modificará seu entendimento e, assim, teremos uma possível pacificação jurisprudencial na questão, ou se a divergência perdurará.
Apenas como didática, finalizar-se-á com um panorama sobre a possibilidade da responsabilidade civil no abandono afetivo e a jurisprudência brasileira:
ANO |
ENTENDIMENTO |
FUNDAMENTO |
PROCEDÊNCIA |
2001 |
NÃO |
Caso Pelé X Sandra Em 1ª instância julgou-se pela improcedência do pedido de indenização por danos morais no qual Sandra alegava não ter tido chance de desfrutar do mesmo apoio emocional, psicológico e financeiro que tiveram os outros filhos legítimos de Pelé.109 |
10ª Vara Cível do Fórum de Santos – São Paulo |
NÃO |
Caso Pelé X Sandra Entendeu-se que Sandra só passou a ser filha de Pelé a partir do trânsito em julgado da ação de paternidade. Para os desembargadores, antes disso não existia filiação reconhecida e, assim, não tinha como o ex-jogador descumprir quaisquer deveres inerentes à condição de pai. |
TJ/SP 8ª Câmara de Direito Privado |
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2003 |
SIM |
Pai foi condenado a indenizar filho por abandono afetivo em R$ 48.00,00. |
Capão da Canoa-RS Processo nº 1.030.012.032-0 |
2004 |
SIM |
Tribunal reformou decisão de 1º grau, e concedeu a reparação civil por abandono filial-afetivo, fixando indenização de R$ 44.000,00. |
TJ/MG Processo nº 2.0000.00.408550-5/000 |
2004 |
NÃO |
Tribunal negou a possibilidade de indenização por abandono afetivo, fundamentando que “ninguém está obrigado a conceder amor ou afeto a outrem, mesmo que seja filho” |
TJ/RJ 4ª Câmara Cível Apelação nº 2004.001.13664 |
ANO |
ENTENDIMENTO |
FUNDAMENTO |
PROCEDÊNCIA |
2005 |
SIM |
Fixou-se indenização de 200 salários mínimos por reparação a abandono afetivo110. |
MG 7ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada de Minas Gerais |
NÃO |
STJ reformou a decisão citada acima da 7º Câmara Cível de MG, negando a reparação. |
STJ 4ª Turma - Recurso Especial n.º 757.411-MG |
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2007 |
SIM |
PL de autoria do Senador Marcelo Crivella que pretende modificação do Estatuto da Criança e do Adolescente para caracterizar o abandono moral como ilícito civil e penal.111 |
PROJETO DE LEI PLS 700/07 |
2008 |
SIM |
PL de autoria do deputado Carlos Bezerra que sujeita pais que abandonarem afetivamente seus filhos a pagamento de indenização por dano moral, propondo alteração no Código Civil |
PROJETO DE LEI PL 4294/08 |
2008 |
SIM |
Tribunal concedeu indenização de R$ 415.00,00 por abandono afetivo à filha desamparada. |
TJ/SP |
2009 |
NÃO |
Corte negou provimento ao Rext, por Relatoria da Min. Ellen Gracie, fundamentando na inviabilidade da indenização por danos morais, pois já há pena de destituição do poder familiar. |
STF RE 567164 MG |
2012 |
SIM |
STJ reformando o acórdão citado do TJ/SP de 2008 que concedeu R$ 415.00,00 à filha abandonada afetivamente, apenas diminuiu o valor da reparação para R$ 200.00,00, afirmando o dever de se responsabilizar tal ilícito grave. |
STJ 3ª Turma RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 – SP |
CONCLUSÃO
O Estado democrático de direito e a natural evolução da sociedade passou a conferir maior liberdade a seus cidadãos, protegendo e ampliando o campo da família.
O Direito Civil passou por grandes alterações com o advento do Código de 2002, trazendo uma despatrimonialização do direito de família, majorando o enfoque no tratamento à pessoa, ao afeto, à autonomia privada; passando a inserir a afetividade como elemento característico, considerando-o princípio implícito e vinculado à da dignidade da pessoa humana.
A afetividade como dever parental, decorrente da responsabilidade e planejamento familiar, independe da origem biológico-genética e constitui hoje o vínculo central e definidor da família contemporânea.
Como consequência de toda transformação, surgem os desacordos naturais ao ser racional, sendo assim a doutrina e jurisprudência brasileira ainda é controvertida sobre o tema.
Na última década surgiram ações judiciais pleiteando a falta deste afeto nas relações filiais, intentadas por filhos que se entendem rejeitados, abandonados e com consequentes sequelas e traumas.
Sendo assim, esse trabalho analisa o abandono afetivo dos pais em face dos filhos, sob o enfoque do novo conceito de família e a implicação da consequente responsabilidade civil; visa mostrar que o afeto é sim um dever parental e sua violação pode gerar danos morais e sua consequente responsabilização. Ponderando-se que a pecúnia não tem a capacidade de suprimir a agressão moral sofrida, servindo, porém, como uma atenuante dos danos decorrentes, com caráter satisfatório, e até mesmo, preventivo e educativo.
Entretanto, não é todo caso de ausência de afetividade entre pais e filhos que deve suscitar a reparação civil, entende-se que apenas em casos característicos, comprovada a quebra do dever parental, o abandono emocional proposital e evidente, o desamparo, desprezo e a desídia de forma reiterada na vida daquele filho.
Tal abandono afetivo deve ser concreto, não devendo se confundir o mesmo com a falta de amor ou sentimento, ou atitudes isoladas do genitor, deve ser tamanho à causar sequelas psíquicas, sentimentais, danos ao filho, para evitar o abuso nos pleitos judiciais, visando apenas um enriquecimento patrimonial sem causa.
A reparabilidade do dano afetivo é cabível e repousa nos pressupostos da responsabilidade civil quando configurada e demonstrado o dano sofrido. Aquele dano moral alegado pelo filho deve ser demonstrado, ou, na sua impossibilidade, as condutas do genitor durante os anos de repúdio. A simples omissão de amor não configura o ato ilícito merecedor da indenização civil.
Cumpre aos magistrados e advogados uma separação meticulosa dos atos que ensejam uma indenização e dos atos considerados normais no cotidiano e costumes da sociedade, para que se evitem os abusos nos pedidos de danos morais. Não é todo e qualquer caso que fará jus a tutela da reparação civil, mas, os casos dignos, devem ser penalizados de forma severa, por configurar ilícito grave, pois a família é a base de toda a sociedade e seu descuido gera consequências não somente as partes integrantes, mas à toda uma sociedade que arcará com essas crianças e adolescentes carentes de afeto, abalados psicologicamente, carentes de valores e amparo afetivo e legal.
Deve-se tratar o tema não apenas como vinculado ao direito familiar das partes, mas sim de uma sociedade em evolução, onde as crianças e os adolescentes constituem o futuro, as próximas gerações e sua educação e trato na menoridade fará toda a diferença no seu caráter, em seu desenvolvimento como ser humano.
Tenciona-se colaborar com o presente trabalho para um manejo fundamentado na aferição da responsabilidade civil no abandono filial-afetivo, trazendo instrumentos palpáveis a diferenciação de sua aferição ou não nas situações que se apresentarem.