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Responsabilidade parental: abandono afetivo

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24/04/2014 às 14:24

Resumo:


  • O direito de família passou por transformações significativas, influenciadas pela evolução social, que incluem o reconhecimento da importância da afetividade nas relações paterno-filiais.

  • A jurisprudência brasileira tem debatido a responsabilidade civil por danos morais decorrentes do abandono afetivo, com decisões divergentes, mas com um caso notável em 2012 no STJ, que reconheceu a possibilidade de indenização.

  • A indenização por abandono afetivo é vista como uma compensação pelo sofrimento e danos psicológicos causados, e não apenas como uma punição, devendo ser analisada com cautela para evitar a banalização da questão.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

7. JURISPRUDÊNCIAS CORRELATAS

O tema da possibilidade de indenização por danos morais ao abandono filial-afetivo traz muitas divergências doutrinárias e está em evolução na jurisprudência brasileira, que, mantinha uma tendência em negar o ressarcimento. Mas, em um caso simbólico e recente, de 2012, que chegou ao STJ, fez a Corte mudar seu posicionamento, acatando os danos morais por abandono afetivo pela primeira vez, caso que veremos mais a fundo.

Diante das frequentes divergências entre decisões judiciais, faremos uma análise do histórico jurisprudencial:

No ano de 2001 tivemos o primeiro caso famoso sobre o tema, o caso Pelé X Sandra Regina. O famoso jogador de futebol brasileiro e conhecido como “Rei do Futebol”, Edson Arantes do Nascimento teve intentada contra si ação de investigação de paternidade, que confirmada, gerou em um pedido de indenização por abandono material e intelectual. Na época, julgado pela 8º Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, os desembargadores entendendo que Sandra Regina só passou a ter vínculo de filiação com o pai, após o transito em julgado da ação de investigação de paternidade, excluiu Pelé de seus deveres parentais anteriores96.

O caso gerou polêmica nacional, e até mesmo certa revolta pelo desdém público que Pelé tratou sua filha, sendo assim, dois anos depois, contrariando o TJ Paulista, veio em 2003 uma sentença de 1º grau no Rio Grande do Sul, inovadora na questão,97 concedendo indenização a uma filha abandonada afetivamente, com cominação de compensação pecuniária de R$ 48.000,00 (quarenta e oito mil reais), que transitaram em julgado sem recurso, sendo executada.

Em 2004 tivemos ainda uma sentença de São Paulo98 e um acórdão de Minas Gerais99 confirmando novamente a possibilidade e concedendo a reparação civil pelo abandono filial-afetivo. Mas, no mesmo ano, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro100 negou a possibilidade de tal reparação afirmando, ainda, que: “ninguém está obrigado a conceder amor ou afeto a outrem, mesmo que seja filho”.

Já se visualiza neste percurso a falta de esclarecimento do tema e diferenciação entre AMOR e AFETO pelos magistrados, podendo ambos os sentimentos se confundir na vida prática, mas, não devendo confundir-se em face da reparação pelo abandono filial-afetivo, pois a fundamentação correta é de que a educação não abrange somente a escolaridade, mas também a convivência familiar e o afeto, mesmo que falte amor; esse é o entendimento e linha a ser seguida, devendo o descaso entre pais e filhos ser punido severamente por constituir um abandono moral grave.

Em 2005 a questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça pela primeira vez, com o Recurso Especial nº 757.411-MG que reformou a decisão da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada de Minas Gerais101 que havia concedido ordem de indenização por abandono filial-afetivo com reparação pecuniária de 200 salários mínimos ao filho abandonado. O relator foi o Ministro Fernando Gonçalves, que afastando a possibilidade de indenização para casos de abandono moral, fundamentou que “obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada.”102

RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do artigo 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. STJ, REsp n. 757411, 4ª T, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005. Votou vencido o Ministro Barros Monteiro, que dele não conhecia. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro relator.103

Tamanha a importância do tema, em 2008 veio um projeto de lei, que atualmente está em tramitação na Câmara104, de autoria do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), PL 4294/08, com proposta de alteração do Código Civil para constar no art. 1632 o seguinte: “Parágrafo único: O abandono afetivo sujeita os pais ao pagamento de indenização por dano moral.”, com fundamento que merece ser transcrito:

“Entre as obrigações existentes entre pais e filhos, não há apenas a prestação de auxílio material. Encontra-se também a necessidade de auxílio moral, consistente na prestação de apoio, afeto e atenção mínimas indispensáveis ao adequado desenvolvimento da personalidade dos filhos ou adequado respeito às pessoas de maior idade.

No caso dos filhos menores, o trauma decorrente do abandono afetivo parental implica marcas profundas no comportamento da criança. A espera por alguém que nunca telefona - sequer nas datas mais importantes - o sentimento de rejeição e a revolta causada pela indiferença alheia provocam prejuízos profundos em sua personalidade.105”

Apesar da relevante reflexão sobre a possibilidade da indenização civil pelo abandono parental, no ano de 2009 o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema pela primeira vez. A Excelsa Corte negou a viabilidade da indenização por danos morais no abandono afetivo, inclusive fundamentou o STF106 que já há a pena de destituição do poder familiar, prestando-se para tanto.

Contudo, a mais recente decisão sobre o caso veio no ano de 2012, onde o Superior Tribunal de Justiça mudou seu entendimento proferido em 2005, afirmando agora a possibilidade dos danos morais107 e a reparação pecuniária por abandono filial-afetivo. Num jugado de fundamentação interessantíssima de relatoria da Ministra Nancy Andrigui que, entre outras alegações ponderou que: “não há por que excluir os danos decorrentes das relações familiares dos ilícitos civis em geral. Muitos, calcados em axiomas que se focam na existência de singularidades na relação familiar – sentimentos e emoções –, negam a possibilidade de se indenizar ou compensar os danos decorrentes do descumprimento das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores”.

“Contudo, não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no direito de família”. Segundo ela, a interpretação técnica e sistemática do Código Civil e da Constituição Federal apontam que o tema dos danos morais é tratado de forma ampla e irrestrita, regulando inclusive “os intrincados meandros das relações familiares”108.

Sendo assim, e devido ao aumento na demanda sobre o tema, o STJ já modificou seu entendimento, admitindo a possibilidade da responsabilização civil no abandono filial-afetivo, resta-nos aguardar oportunidade de pronunciamento pelo STF para verificar se o mesmo igualmente modificará seu entendimento e, assim, teremos uma possível pacificação jurisprudencial na questão, ou se a divergência perdurará.

Apenas como didática, finalizar-se-á com um panorama sobre a possibilidade da responsabilidade civil no abandono afetivo e a jurisprudência brasileira:

ANO

ENTENDIMENTO

FUNDAMENTO

PROCEDÊNCIA

2001

NÃO

Caso Pelé X Sandra

Em 1ª instância julgou-se pela improcedência do pedido de indenização por danos morais no qual Sandra alegava não ter tido chance de desfrutar do mesmo apoio emocional, psicológico e financeiro que tiveram os outros filhos legítimos de Pelé.109

10ª Vara Cível do Fórum de Santos – São Paulo

NÃO

Caso Pelé X Sandra

Entendeu-se que Sandra só passou a ser filha de Pelé a partir do trânsito em julgado da ação de paternidade. Para os desembargadores, antes disso não existia filiação reconhecida e, assim, não tinha como o ex-jogador descumprir quaisquer deveres inerentes à condição de pai.

TJ/SP

8ª Câmara de Direito Privado

2003

SIM

Pai foi condenado a indenizar filho por abandono afetivo em R$ 48.00,00.

Capão da Canoa-RS

Processo nº 1.030.012.032-0

2004

SIM

Tribunal reformou decisão de 1º grau, e concedeu a reparação civil por abandono filial-afetivo, fixando indenização de R$ 44.000,00.

TJ/MG

Processo nº 2.0000.00.408550-5/000

2004

NÃO

Tribunal negou a possibilidade de indenização por abandono afetivo, fundamentando que “ninguém está obrigado a conceder amor ou afeto a outrem, mesmo que seja filho”

TJ/RJ

4ª Câmara Cível

Apelação nº 2004.001.13664

ANO

ENTENDIMENTO

FUNDAMENTO

PROCEDÊNCIA

2005

SIM

Fixou-se indenização de 200 salários mínimos por reparação a abandono afetivo110.

MG

7ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada de Minas Gerais

NÃO

STJ reformou a decisão citada acima da 7º Câmara Cível de MG, negando a reparação.

STJ

4ª Turma - Recurso Especial n.º 757.411-MG

2007

SIM

PL de autoria do Senador Marcelo Crivella que pretende modificação do Estatuto da Criança e do Adolescente para caracterizar o abandono moral como ilícito civil e penal.111

PROJETO DE LEI

PLS 700/07

2008

SIM

PL de autoria do deputado Carlos Bezerra que sujeita pais que abandonarem afetivamente seus filhos a pagamento de indenização por dano moral, propondo alteração no Código Civil

PROJETO DE LEI

PL 4294/08

2008

SIM

Tribunal concedeu indenização de R$ 415.00,00 por abandono afetivo à filha desamparada.

TJ/SP

2009

NÃO

Corte negou provimento ao Rext, por Relatoria da Min. Ellen Gracie, fundamentando na inviabilidade da indenização por danos morais, pois já há pena de destituição do poder familiar.

STF

RE 567164 MG

2012

SIM

STJ reformando o acórdão citado do TJ/SP de 2008 que concedeu R$ 415.00,00 à filha abandonada afetivamente, apenas diminuiu o valor da reparação para R$ 200.00,00, afirmando o dever de se responsabilizar tal ilícito grave.

STJ

3ª Turma

RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 – SP

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CONCLUSÃO

O Estado democrático de direito e a natural evolução da sociedade passou a conferir maior liberdade a seus cidadãos, protegendo e ampliando o campo da família.

O Direito Civil passou por grandes alterações com o advento do Código de 2002, trazendo uma despatrimonialização do direito de família, majorando o enfoque no tratamento à pessoa, ao afeto, à autonomia privada; passando a inserir a afetividade como elemento característico, considerando-o princípio implícito e vinculado à da dignidade da pessoa humana.

A afetividade como dever parental, decorrente da responsabilidade e planejamento familiar, independe da origem biológico-genética e constitui hoje o vínculo central e definidor da família contemporânea.

Como consequência de toda transformação, surgem os desacordos naturais ao ser racional, sendo assim a doutrina e jurisprudência brasileira ainda é controvertida sobre o tema.

Na última década surgiram ações judiciais pleiteando a falta deste afeto nas relações filiais, intentadas por filhos que se entendem rejeitados, abandonados e com consequentes sequelas e traumas.

Sendo assim, esse trabalho analisa o abandono afetivo dos pais em face dos filhos, sob o enfoque do novo conceito de família e a implicação da consequente responsabilidade civil; visa mostrar que o afeto é sim um dever parental e sua violação pode gerar danos morais e sua consequente responsabilização. Ponderando-se que a pecúnia não tem a capacidade de suprimir a agressão moral sofrida, servindo, porém, como uma atenuante dos danos decorrentes, com caráter satisfatório, e até mesmo, preventivo e educativo.

Entretanto, não é todo caso de ausência de afetividade entre pais e filhos que deve suscitar a reparação civil, entende-se que apenas em casos característicos, comprovada a quebra do dever parental, o abandono emocional proposital e evidente, o desamparo, desprezo e a desídia de forma reiterada na vida daquele filho.

Tal abandono afetivo deve ser concreto, não devendo se confundir o mesmo com a falta de amor ou sentimento, ou atitudes isoladas do genitor, deve ser tamanho à causar sequelas psíquicas, sentimentais, danos ao filho, para evitar o abuso nos pleitos judiciais, visando apenas um enriquecimento patrimonial sem causa.

A reparabilidade do dano afetivo é cabível e repousa nos pressupostos da responsabilidade civil quando configurada e demonstrado o dano sofrido. Aquele dano moral alegado pelo filho deve ser demonstrado, ou, na sua impossibilidade, as condutas do genitor durante os anos de repúdio. A simples omissão de amor não configura o ato ilícito merecedor da indenização civil.

Cumpre aos magistrados e advogados uma separação meticulosa dos atos que ensejam uma indenização e dos atos considerados normais no cotidiano e costumes da sociedade, para que se evitem os abusos nos pedidos de danos morais. Não é todo e qualquer caso que fará jus a tutela da reparação civil, mas, os casos dignos, devem ser penalizados de forma severa, por configurar ilícito grave, pois a família é a base de toda a sociedade e seu descuido gera consequências não somente as partes integrantes, mas à toda uma sociedade que arcará com essas crianças e adolescentes carentes de afeto, abalados psicologicamente, carentes de valores e amparo afetivo e legal.

Deve-se tratar o tema não apenas como vinculado ao direito familiar das partes, mas sim de uma sociedade em evolução, onde as crianças e os adolescentes constituem o futuro, as próximas gerações e sua educação e trato na menoridade fará toda a diferença no seu caráter, em seu desenvolvimento como ser humano.

Tenciona-se colaborar com o presente trabalho para um manejo fundamentado na aferição da responsabilidade civil no abandono filial-afetivo, trazendo instrumentos palpáveis a diferenciação de sua aferição ou não nas situações que se apresentarem.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VESENTINI, Cíntia. Responsabilidade parental: abandono afetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3949, 24 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27826. Acesso em: 25 dez. 2024.

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