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As perspectivas de redução da jornada de trabalho frente ao desemprego estrutural

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30/04/2014 às 16:41
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4 A construção de uma alternativa

A saída para a questão social da atualidade não pode partir dos antigos paradigmas do desenvolvimento nacional, visto que o capital se encontra transnacionalizado. De modo análogo, conforme João Bernardo, perfilhar a tese que atribui às grandes empresas o estigma de malévolas à sociedade, enquanto idealiza as pequenas empresas, é limitar-se a questionar a desigualdade entre os capitalistas, além de, por via reflexa, vincular os trabalhadores a certos grupos econômicos, estimulando a sua integração ao sistema e a sua maior exploração. O que é transformador, segundo o referido autor, é o combate a todas as formas de exploração, único quadro em que podem ser defendidos os interesses dos trabalhadores.[13]   

Mas, para isso, é necessário elaborar uma alternativa aos ditames do mecanismo de acumulação do capital que encare, de frente, os seus fundamentos. Não se pode, por essa razão, sugerir como saída o sistema comunista ao estilo soviético, uma vez que este não questiona as bases do problema.

Segundo Robert Kurz, todas as características supostamente não-capitalistas do socialismo real já tinham sido formuladas pelo próprio capitalismo no limiar da industrialização, sendo encontradas nos sistemas econômicos mercantilistas dos séculos XVII e XVIII. Assim, o monopólio do comércio exterior, a fixação estatal dos preços e a propriedade estatal dos meios de produção mais avançados (vide as manufaturas), longe de serem elementos de uma sociedade que pretende superar o capitalismo, constituem, antes, mecanismos de um Estado que está desenvolvendo uma industrialização retardatária.[14]

Por outro lado, e principalmente, as categorias fundamentais do mercado (salário, preço e lucro) não foram eliminadas, preservando o caráter abstrato do trabalho, que manteve sua dominação sobre toda a sociedade. Desta feita, o modelo de tipo soviético, por preservar os fundamentos do sistema que planejava negar, merece mais ser denominado de capitalismo de estado do que de socialismo real, tendo em vista a manutenção da abstração do valor como base de reprodução da sociedade.

Da mesma forma, é insuficiente remeter a discussão para a falsa dicotomia entre a defesa de uma maior ou menor intervenção estatal, como se mercado e estado fossem inimigos. Nesse ponto, tanto a doutrina de viés keynesiano quanto a de inspiração neoliberal se contradizem, tendo em vista que a intervenção estatal sempre teve por marco o sistema de referência da forma mercadoria, assim como a defesa em prol do livre mercado nunca dispensou o pólo estatal político[15], como demonstraram as generosas contribuições dos Governos para as instituições financeiras em crise.

Igualmente inócua é a mudança da forma jurídica da propriedade desacompanhada da abolição dos fundamentos que regulam a produção das mercadorias (mercado, lucro, valor etc.). O fato de a propriedade ser privada, estatal ou mesmo coletiva de viés democrático não vai significar qualquer metamorfose nos imperativos de rentabilidade e de acumulação, o que preservará os problemas atuais de desemprego e de vulnerabilidade social. Ainda nos seus escritos de juventude, Karl Marx já tinha concluído que:

A propriedade privada constitui, assim, o produto, o resultado, a conseqüência necessária do trabalho alienado, da relação externa do trabalhador com a natureza e com si mesmo.

A propriedade privada decorre-se, portanto, da análise do conceito de trabalho alienado, ou melhor, do homem alienado, do trabalho alienado, da vida alienada, do homem estranho a si próprio.[16]  

Como se vê, não foi a propriedade privada que concebeu o denominado  trabalho alienado — aqui entendido, sucintamente, como a separação entre o trabalhador e os objetos por ele produzidos, bem como a dissociação entre a atividade por ele realizada durante o trabalho e suas reais necessidades e faculdades —, mas foi o modo alienado em que a realização do trabalho passou a ser requerida que aperfeiçoou a forma jurídica da propriedade atual. Com isso, a forma moderna do trabalho representa o âmago da reprodução capitalista, funcionando como a fonte que gera o valor das mercadorias e constituindo-se em momento de alienação humana. A sociedade obedece a leis econômicas como se naturais fossem.      

Muitas das medidas estatais para reduzir o desemprego, aliás, apenas confirmam a lógica obtusa do metabolismo do capital. Apesar de a produção já permitir uma sobrevivência digna a todos os seres humanos, esta só é possível se a pessoa estiver sob o regime salarial. Por essa razão, inventam-se empregos que, a rigor, são desnecessários, mas que podem assegurar a algumas pessoas condições para sobreviver. Nesse sentido, assevera Domenico de Mais:

Com muita freqüência no Brasil, mas às vezes também na Itália, sobretudo em hotéis ou nas diretorias empresariais, vejo rapazes que, para ganhar o pão de cada dia, passam o dia inteiro dentro de um elevador, apertando botões correspondentes aos andares onde os clientes desejam sair. Eu me pergunto: como é possível depreciar a este ponto a vida e a inteligência de um rapaz, mantendo-o fechado, mofando oito horas por dia num elevador, para fazer um trabalho completamente idiota e inútil? Não seria melhor para ele e para a sociedade que lhe dessem a mesma importância de dinheiro, pedindo-lhe, em troca, que continuasse a estudar.   

Desse modo, é preciso conceber uma forma de sociabilidade que esteja desatrelada da dependência e da sujeição das relações salariais e dos imperativos da acumulação abstrata de valor, o que requer uma análise sob categorias novas, que ultrapassem o paradigma atual do trabalho abstrato, permitindo participação de todos na produção da riqueza social e na apropriação de seu produto. 

Para tanto, é imprescindível a redução drástica do tempo de trabalho, de modo a permitir a colaboração de todos na produção da riqueza social.


5 Redução da jornada de trabalho e o ócio

 Diante da crescente produtividade promovida pelo incremento tecnológico, a tendência é a taxa de desemprego acompanhar essa elevação, a não ser que a sociedade faça uso da automação em seu próprio benefício. O sociólogo Domenico de Masi, valendo-se de estatísticas da produtividade italiana, apresenta claramente os dois pólos da questão:

Para a maioria dos empregos seria necessária uma redução do expediente em proporção direta ao aumento da produtividade. Serei repetitivo com um exemplo: se nos últimos dez anos as grandes empresas italianas produziram 18% a mais, com 22% a menos de trabalho humano, as soluções poderia ser duas: ou se demitem 22% dos trabalhadores, inflacionando o desemprego com todos os problemas socioeconômicos dele decorrentes, ou se reduz 22% da carga anual de horas de trabalho, incrementando desta forma o tempo livre e o consumo. Bem sei que é uma simplificação, mas vale a idéia.[17]

Segundo o mesmo autor, o próprio John Maynard Keynes, em 1930, já teria percebido que o ritmo da liberação da mão-de-obra ocasionado pelo incremento dos instrumentos produtivos estava superando a capacidade de geração de novos empregos, motivo pelo qual a jornada de trabalho, para assegurar a inclusão de todos, deveria ser de três horas diárias, com uma carga semanal de quinze horas.[18]

Essa limitação do tempo de labor a três horas diárias, entretanto, não foi uma concepção original de Keynes, tendo em vista que Paul Lafargue, ainda no século XIX, já a havia invocado em seu livro “O direito à preguiça”, nos seguintes termos:

Mas convencer o proletariado de que a palavra que lhe inocularam é perversa, que o trabalho desenfreado a que se dedica desde o início do século é o mais terrível flagelo que já alguma vez atacou a humanidade, que o trabalho só se tornará um condimento de prazer da preguiça, um exercício benéfico para o organismo humano, uma paixão útil ao organismo social, quando for prudentemente regulamentado e limitado a um máximo de três horas por dia.[19]

Todavia, a lógica que preside o lucro, como exaustivamente afirmado, submete a satisfação humana aos ditames do valor de troca, o que torna indiferente a elevação ou não da produtividade. Um administrador de empresas, ao verificar o adicional de produtividade alcançado com as inovações tecnológicas instaladas, continuará exigindo de seus subordinados o mesmo tempo de trabalho e permanecerá ele próprio laborando em igual período, considerando que ainda mais mercadorias poderão ser produzidas, significando uma vantagem sobre a concorrência, o que permitirá um rendimento superior ao que vinha sendo arrecadado até então.[20]

Resta claro que só transformação radical da sociedade, com a abolição da coerência desarrazoada de auto-acumulação de valor enquanto fundamento básico de produção material e de reprodução social, poderá emancipar os seres humanos do excesso de trabalho desnecessário a que estão sujeitos. Contudo, a reivindicação pela redução da jornada, embora tenha suas limitações, pode trazer resultados benéficos para o acúmulo de forças sociais, bem como para conseguir certa melhoria na qualidade de vida. Segundo o pensamento de Ricardo Antunes, a diminuição do tempo de trabalho nos dias atuais:

Ganha ainda mais concretude, pois mostra-se, contingencialmente, como um mecanismo importante (ainda que, quando considerado isoladamente, bastante limitado) para tentar minimizar o desemprego estrutural que atinge um conjunto enorme  de trabalhadores e trabalhadoras. Mas transcende em muito essa esfera de imediaticidade, uma vez que a discussão da redução da jornada de trabalho configura-se como um ponto de partida decisivo, ancorado no universo da vida cotidiana, para, por um lado, permitir uma reflexão fundamental sobre o tempo, o tempo de trabalho, o autocontrole sobre o tempo de trabalho e o tempo de vida. E por outro, possibilitar o afloramento de uma vida dotada de sentido fora do trabalho.[21]

Assim, as mobilizações em prol da redução da jornada dentro dos marcos do sistema podem ensejar a reflexão sobre a qualidade do tempo na esfera da produção e fora dela, permitindo que avance essa perspectiva para além dos limites da sociabilidade do capital. Contudo, para construir uma verdadeira sociedade do tempo livre, é crucial subverter a noção de que o trabalho é elemento que dignifica o homem e que é um martírio a ser vivido.

Segundo Herbert Marcuse, os impulsos e as faculdades dos indivíduos não são satisfeitas por meio do trabalho, considerando que a função deste é preestabelecida para um fim útil que lhe é alheio. Todavia, reconhece que pode sim haver prazer no trabalho alienado, entretanto a satisfação associada à labuta não abrange as necessidades instintivas, de maneira que:

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A datilógrafa que entrega um texto bem copiado, o alfaiate que apresenta um terno bem cortado, o cabeleireiro que monta um penteado impecável, o trabalhador que preenche sua quota – todos poderão sentir prazer num “trabalho bem feito”. Contudo, ou esse prazer é extrínseco (previsão de uma recompensa, ou é a satisfação (em si mesma um indício de repressão) de estar bem ocupado, no lugar certo, de contribuir com sua parcela para o funcionamento da engrenagem. Num caso ou outro, tal prazer nada tem a ver com a gratificação instintiva primordial. Associar o desempenho em linhas de montagem, em escritórios e lojas, com as necessidades instintivas, é glorificar a desumanização como prazer.[22]  

Isso não quer dizer que a pessoa não tenha que contribuir para a produção da riqueza social. De fato, o metabolismo entre a natureza e os seres humanos requer destes últimos o exercício de uma atividade, a fim de produzir os meios necessários à sobrevivência. Contudo, os instrumentos disponíveis reclamam um tempo bastante reduzido de dedicação à labuta.

O que há de ser feito com o tempo livre é uma questão não menos importante, uma vez que é quase lugar comum o pensamento de que o ócio é prejudicial ao indivíduo. Não se pode negar que algumas pessoas, ao não saberem o que fazer com o tempo disponível, acabam canalizando suas energias para atos violentos, em vez de se dedicarem a alguma atividade lúdica, à leitura, ao aprimoramento da reflexão ou ao esporte.

Domenico De Masi alerta para o fato de que a alienação não é provocada apenas pelo trabalho, mas, também, pelo tempo vago daquele que não sabe desfrutá-lo. É salutar que a sociedade eduque para o ócio, estimulando a escolha de um filme, de uma peça de teatro, de um livro, bem como induzindo as pessoas a se habituarem à atividade doméstica e a formas autônomas de produção. Tudo isso é amparado com a crescente relevância que deve ser conferida ao repouso, ao lazer, ao divertimento e ao estudo.[23]

Essa cultura do ócio, no entanto, deve ser construída desde já, com suporte no tempo disponível atual. Não se pode mais conceber que alguém que esteja de férias fique lamuriando-se pelo fato de não conseguir encontrar algo agradável para fazer, aguardando ansiosamente o retorno ao emprego simplesmente para ocupar o tempo.

Consoante expressa Nietzsche, “expulsar o tédio de qualquer modo é vulgar, assim como trabalhar sem prazer”.[24] É preciso procurar uma forma de aproveitamento do tempo que não se limite ao momento de consumo, mas que vislumbre no ócio, no exercício lúdico e na introspecção o adubo de outra sociabilidade humana, capaz de romper de vez com as restrições impostas pela organização social atual, que condena os seres humanos a se resignar ao domínio do capital e a viver sob o jugo do trabalho abstrato.

É relevante ressaltar que a perspectiva revolucionária que visualiza essa ruptura é imprescindível para o êxito desse intento, tendo em vista que a mera defesa do ócio desatrelada da crítica às estruturas básicas da produção não levará à libertação das amarras do tempo, tampouco promoverá a integração daqueles que foram considerados supérfluos ao processo produtivo. Afinal, conforme Robert Kurz:

Desemprego no capitalismo, porém, não é tempo livre, mas tempo de escassez. Os excluídos da aceleração vazia não ganham ócio, antes são definidos como não-humanos em potencial. Assim, depois da utopia do trabalho, fracassou também a utopia do tempo livre. Não é por meio de uma expansão do tempo livre voltado para o consumo de mercadorias que o terror da economia sem freios pode ser contido, mas somente por meio da absorção do trabalho e do tempo livre cindidos numa cultura abrangente, sem a sanha da concorrência. O caminho para o ócio passa pela libertação da forma temporal capitalista.[25]

É preciso reconhecer que a solução adotada para a problemática do desemprego estrutural exige uma ação reflexiva de toda a humanidade, que demandará um grau de mobilização e de discussão nunca dantes visto. Isso pode até soar utópico e insustentável.

No entanto, utópico é acreditar que o sistema produtor de mercadorias vai absorver a massa excedente que foi engendrada. E insustentável é a manutenção da lógica destrutiva que rege o capitalismo, a qual aprofunda as desigualdades e degrada o meio ambiente, gerando não só o valor das mercadorias, mas também vulnerabilidade social e o tolhimento das faculdades humanas. 

A dificuldade de tal empreendimento reside não na inviabilidade técnica do que é proposto, mas na quebra dos grilhões paradigmáticos da mercadoria e do trabalho assalariado, os quais encarceram a mente e a coragem das pessoas.

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Sobre o autor
Francisco Breno Barreto Cruz

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará<br>Auditor-Fiscal do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Francisco Breno Barreto. As perspectivas de redução da jornada de trabalho frente ao desemprego estrutural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3955, 30 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27882. Acesso em: 24 abr. 2024.

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