O problema ambiental gerado pela elevação contínua do nível dos mares passa a ameaçar a integridade territorial de muitos países, como: Cuba, República Dominicana, Fiji, Haiti, Ilhas Salomão, Santa Lúcia, Vanuatu, ilhas de Naurú, Seychelles. Além de Sri Lanka e Indonésia (arquipélago com mais de 13.500 ilhas), além da Holanda e de Nápoles, na Itália. Em alguns casos, o país inteiro ficará ou já totalmente submerso, tendo desaparecido um dos elementos essencias na definição de Estado: o território. Seus habitantes são náufragos ambientais, despossuídos de nacionalidade e sem direitos assegurados.
Caso concreto
Tuvalu, por exemplo, corre o sério risco de desaparecer sob as águas[1] - é um Estado da Polinésia formado por um grupo de atóis, antigamente chamado de Ilhas Ellice. Assim como Tuvalu[2], a República das Maldivas (Oceano Índico, no sul da Ásia), também corre o mesmo risco de desaparecer, submersa, com a elevação do nível dos mares (devido ao derretimento das geleiras). Na verdade, trata-se de um arquipélago com cerca de mil pequenas ilhas, mas que submergiriam se a maré subisse mais dois metros. Portanto, um país, um Estado a menos, ainda que permaneçam o sentimento de unidade, pertencimento, nacionalidade, cidadania.
Na República das Maldivas, em outro exemplo concreto, o presidente recém-empossado, diante de tamanho dilema, no próprio ato de posse, antecipou suas intenções: comprar parcelas de territórios próximos, como na Índia. Este é o caso de um país com capacidade financeira para tanto, mas e os mais pobres, descapitalizados, que se encontrem sob a mesma condição?
Há sugestões para que o povo pague com trabalho, sob o olhar atento da ONU e das garantias provindas dos mecanismos internacionais de Direitos Humanos. O que é louvável, como anteprojeto de uma alternativa realista. Contudo, imaginemos que os pobres comprassem territórios em países tão ou mais pobres do que eles próprios, uma vez que, sem capital, não teriam como adquirir propriedades em países mais desenvolvidos.
Do mesmo modo, é bem provável que os ricos não queiram vender partes de sua soberania territorial (foram os mais beneficiados com a poluição e a degradação humano-ambiental e agora, igualmente, são os mais preparados para enfrentar mais esta crise: com muito capital acumulado).
Todavia, se chegassem a comprar lotes de soberania em países pobres, que tipo de trabalho iriam/poderiam desenvolver para pagar a dívida contraída? A proximidade com o trabalho escravo não seria demasiada? Na mesma linha argumentativa, em caso de não-pagamento, caberia falar em moratória, dada a pobreza ou miséria originais não resolvidas? No caso da moratória econômico-ambiental, poderiam ser sitiados no país recém comprado, pelo país-vendedor, até que pagassem pelo patrimônio territorial, mas sem que isto fosse considerado ato de agressão, declaração de guerra? Havendo guerra, o direito de resistência seria legítimo?
Náufrago ambiental
O náufrago ambiental, de hoje, pode, é e será o náufrago jurídico, social, econômico, climático de hoje e de amanhã. No caso concreto analisado, a poluição gerada pelos países desenvolvidos elevou o nível dos mares e isto deixou, literalmente, a soberania de alguns embaixo d’água. Algumas soluções foram aventadas, como a aquisição de território em outros Estados independentes, a ser pago com trabalho. Não colou muito a ideia porque a pretensa alternativa produziria trabalho em condições análogas à escravidão, uma vez que os valores pagos seriam exorbitantes, visto que se compraria a soberania de um território e não apenas uma parcela de terra.
Outra alternativa – possivelmente seja esta a opção mais recorrente – seria a ONU oferecer o direito de nacionalização aos cidadãos dessas Ilhas-países para que não ficassem apátridas. Esta saída seria jurídica, de acordo com o direito internacional público, no entanto, seria imoral e equivaleria a aplicar o antidireito para solucionar um problema global. Trata-se de uma solução fundeada no antidireito porque a soberania de um Estado foi aniquilada pela ação global de todos os países associados à ONU, cada um com sua parcela de ação e de culpa, e, portanto, equivaleria a uma declaração de guerra mundial, em que um país muito frágil fosse totalmente arrasado e sem que nenhum dos Estados agressores fosse responsabilizado.
Por seu turno, a solução real – a mais complexa e de difícil orquestração – exigiria a aplicação da metodologia da pegada ambiental, de forma que cada país-membro da ONU participasse de acordo com sua responsabilidade na degradação ambiental-global e, assim, todos os membros da ONU pagariam pela cota-parte a fim de que um outro território – soberano – fosse adquirido pelo Estado-náufrago. Como vemos, as concepções tradicionais de soberania advindas dos juristas brasileiros são insuficientes para captar esta ação de responsabilidade global e comum (Carvalho, 2009, p. 127).
As concepções não estão erradas, porém, ocorre que independência tem sido tomada por irresponsabilidade. O caminho seria retomar e dar aplicabilidade internacional à ideia de soberania profunda, como expressa pelo jurista suíço: “É soberano aquele que edita leis conforme regras prescritas, das quais o povo aprova o caráter vinculante” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 242 – grifos nossos). Nesta concepção está a autoridade – como responsabilidade global pelos atos e efeitos públicos – e não apenas a força do Estado. Mais precisamente, nesta concepção está delimitada a responsabilidade do Estado pelo dano ambiental, uma vez que seu povo é conhecedor de sua parcela de industrialização e de degradação ambiental. Pela lógica inclusiva do direito internacional – da prevenção e da precaução não adotadas –, esta seria a única forma de se ter a reparação do dano ambiental, provocado pelo efeito global da industrialização e sem que a ONU adotasse uma solução jurídica baseada no antidireito.
A soberania é a atribuição de poderes exclusivos e legítimos ao Estado, está correto, mas antes disso é a constituição/verificação de direitos, funções e responsabilidades compartilhadas por seu povo. A ideia de soberania absolutista, em que o Estado mandava e desmandava em seu território, é passada. A perspectiva da soberania profunda se adapta às exigências do século XXI, como na enunciação da ecologia profunda e a partir de suas implicações mentais, sociais e ambientais (Guattari, 1991). A soberania profunda impõe responsabilidades ao Estado, interna e externamente, com o dever da precaução, da prevenção, da indenização e da reparação, respectivamente, e de modo semelhante à responsabilidade objetiva prevista no direito brasileiro.
Por sua vez, este novo rumo sugere a imbricação de outros novos/velhos ramos e/ou áreas recobertas pelas várias gerações de direitos humanos, bem como novos/velhos dilemas: direitos políticos (soberania X excipio); direitos fundamentais (direito de propriedade X direito à vida saudável); ecologia e meio ambiente; direitos humanitários (asilo político, ajuda humanitária). Em suma, exige-se uma soberania político-ambiental, se podemos falar assim. Por sua vez, isto exige uma interpretação que recupere parte dos temas clássicos do Estado e do direito.
Bibliografia
CARVALHO, Kildare Gonçalvez. Direito Constitucional. 15 ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2009.
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. São Paulo : Martins Fontes, 2006.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas, São Paulo : Papirus, 1991.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.
[1] Com elevação máxima de cinco metros, Tuvalu já sofre com a intrusão de água salina nos rios.
[2] A Nova Zelândia aceitaria os 11.000 cidadãos de Tuvalu, com migração prevista para 2002.