Artigo Destaque dos editores

Um novo conceito de jurisdição no modelo constitucional de Estado

24/04/2014 às 11:45
Leia nesta página:

No constitucionalismo contemporâneo, cai por terra o difundido “império da lei”, para se ter um “império da Constituição”, que assume uma posição de supremacia frente à lei ordinária. Juntamente com essas modificações, surge a nova hermenêutica que influencia diretamente a atividade do juiz e o conceito de jurisdição.

 Com a derrocada do Estado Liberal e do Estado Social, e com o advento de um Estado Democrático de Direito, inaugurado no Brasil pela Constituição de 1988, tornou-se possível pensar em uma “revolução democrática da justiça” a partir de um “repensar radical das concepções dominantes do Direito”.1

Essa nova atitude teórica, prática e epistemológica, que é denominada por Boaventura Sousa Santos de “novo senso comum jurídico”, baseia-se em três premissas: (a) “uma crítica ao monopólio estatal e científico do Direito”, o que demanda alternativas ao dogmatismo jurídico e à teoria positivista do Direito; (b) o “questionamento do caráter despolitizado do Direito e a sua necessária repolitização”; e (c) a ampliação da “compreensão do Direito como princípio e instrumento universal da transformação social politicamente legitimada”.2

Nesse contexto, com o novo marco constitucional que propiciou uma ampliação do rol de direitos, dentre os quais, como já mencionado, o direito de participação, houve uma maior credibilidade no uso da via judicial para a obtenção desses direitos, até mesmo consagrando “princípios e normas constitucionais para além ou ao contrário do que está estabelecido na lei ordinária”.3 Consolidou-se a onda renovatória do amplo acesso à justiça, que demandava cada vez mais a efetivação do extenso número de direitos previstos constitucionalmente.

Diante disso, a nova visão do Direito, cuja função vai além de regular a sociedade, leva ao questionamento de qual seria sua contribuição para obtenção de uma sociedade mais justa e quais seriam as “condições para a construção de um novo senso comum jurídico e o seu papel para a emancipação social”.4

Como visto, a nova onda do constitucionalismo contemporâneo proporciona as bases para essa revolução, principalmente no tocante à repolitização do Direito, à nova hermenêutica e à ampliação da atuação do Poder Judiciário.

Nesse último ponto, importante ressaltar que, apesar das reformas já sofridas por este poder, inclusive com aumento dos poderes do juiz, é preciso, mais que tudo, atualizar a mentalidade dos magistrados e de toda sociedade.

Assim, com o abandono do puro positivismo, deve-se praticar o desapego “às formalidades legais, sem preocupação com a justiça”, que, como afirma Dalmo Dallari, “foi uma aplicação degenerada de um preceito muito antigo, enunciado por Platão e desenvolvido por Aristóteles, segundo o qual ‘um governo de leis é melhor do que um governo de homens’”.5 Dallari pontua que:

Essa concepção de direito é conveniente para quem prefere ter a consciência anestesiada e não se angustiar com a questão da justiça, ou então para o profissional do direito que não quer assumir responsabilidades e riscos e procura ocultar-se sob a capa de uma aparente neutralidade política. Os normativistas não precisam ser justos, embora muitos deles sejam juízes.6

Esse posicionamento legalista ao pretender fazer com que as leis sejam servidas pelos homens acaba invertendo a lógica do razoável, “segundo a qual as leis são instrumentos da humanidade”, pois são as leis que devem servir aos homens, com base e conforme sua realidade social.7

Dalmo Dallari afirma que, no Direito brasileiro, foi estabelecido e se tornou predominante um culto à legislação, que deve permanecer engessada, na medida em que se reduz o direito àquele positivado em lei. Nesse sentido, essa “atitude de acomodação, conservadora ou mesmo reacionária” é o que provoca o abismo existente entre o direito positivado em lei e a realidade social.8

O autor conclui que o “Poder Judiciário envelheceu e o que muitos, dentro dele, veneram como tradições não passa de sinais da velhice”. Assim:

Pelo que se verifica na prática, muitos juízes não aprenderam a advertência de Ruy Barbosa, um dos mais notáveis juristas brasileiros: “A tradição não deve significar o governo dos vivos pelos mortos”. No Judiciário o passado determina o presente, influindo tanto na forma das solenidades, dos rituais e dos atos de ofício quanto no conteúdo de grande número de decisões. Esse é um dos principais motivos pelos quais há evidente descompasso entre o Poder Judiciário e as necessidades e exigências da sociedade contemporânea.9

Não se ignora que essa postura do juiz como “escravo” e mero aplicador da lei, a fim de garantir sua suposta imparcialidade e neutralidade, decorre de antecedentes históricos que ocasionaram uma resistência, por meio do formalismo, aos excessos praticados por juízes, que “julgando por delegação do chefe do Executivo e pretextando a necessidade de interpretação das disposições legais, mudavam completamente o sentido e o alcance das leis aprovadas pelo Parlamento, praticamente fazendo uma lei nova”.10

Entretanto, essa ressalva não justifica o legalismo formal adotado pelos juízes brasileiros. Como aponta Dalmo Dallari, no Brasil a própria Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei n. 4657, de 1942), atualmente denominada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (alteração feita pela lei n. 12.376, de 2010), em seu art. 5º, aduz que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Portanto, “não é possível julgar com justiça aplicando a lei em seu estrito sentido literal, ignorando a mudança do sentido das palavras, das circunstâncias sociais, dos costumes e da própria escala de valores dos povos, influenciados por novas condições de vida e de convivência”. É necessário, pois, “levar em conta a atualização do sentido das palavras”.11

Demais disso, é necessário não só considerar as circunstâncias históricas, uma vez que pode “haver grande diferença entre o momento da elaboração da lei e o de sua aplicação”, como também “considerar os valores sociais e os efeitos da aplicação da lei sobre os indivíduos, os grupos sociais ou todo um povo, para que haja aplicação justa”.12

Nesse passo infere-se a grande importância da contribuição filosófica do giro linguístico na sedimentação de uma nova hermenêutica constitucional, como demonstrado no capítulo anterior.

Por isso, como resume Dalmo Dallari, “o juiz não só pode, mas na realidade deve procurar alternativas de aplicação que, preservando a essência das normas legais, estejam mais próximas da concepção de justiça vigente no local e no momento da aplicação”.13 Para que se tenha um Tribunal (Poder Judiciário) de “justiça” e não de mera “legalidade”:

Será mais fácil agora, não acarretando qualquer risco nem a renúncia a princípios éticos e jurídicos, inovar aplicando a Constituição, fazer a complementação das disposições legais já existentes, para adequá-las ao caso concreto, tomando por base os princípios e as normas gerais já integrados na legislação. É perfeitamente possível fazer isso com base no direito já existente, sobretudo na Constituição, sem a necessidade de substituir o legislador.14

Realmente, Nicola Picardi ressalta que para além da desvalorização da lei, em razão da inflação legislativa derivada da passagem de um Estado Liberal para Estado Social mais interventivo — o que comporta “um desenvolvimento exponencial das possibilidades de combinações: quanto mais regras, maior a possibilidade de antinomias e de contradições internas do ordenamento” —, tem-se também “várias formas de inatividade do legislador”, que “representam uma das principais causas que estão na origem do deslocamento dos poderes ao judiciário”.15

Demais disso, é inconteste que a lei possui uma textura aberta. Assim, a fim de ajustá-la às diversidades dos casos concertos ou mantê-la atualizada à realidade social com o passar do tempo, “o legislador é levado com maior frequência a adotar técnicas legislativas elásticas, flexíveis e matizadas”. Nesse movimento de se deixar espaços para escolhas integrativas, por meio de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, dentre outros, acaba-se “por delegar ao juiz escolhas que o legislador não pode ou não quer fazer”.16

Dessa forma, como afirmam Alexandre Coura e Silvagner Andrade, “juízes e tribunais, conscientes da indeterminação estrutural do Direito, podem assumir o compromisso de preservar e conciliar dois pilares no processo decisório, quais sejam: a observância do direito vigente e a busca pela justiça da decisão”.17 A partir disso, é possível desconstruir o falso dilema Direito versus Justiça, desde que se leve em conta a “nova hermenêutica” como estratégia para efetivação da Constituição no paradigma do Estado Democrático de Direito. Conforme os autores:

Com efeito, no que se refere à nova postura do Judiciário, em que se busca a realização de justiça, considerar o contexto e os fatos que integram a situação de aplicação normativa, nada mais correto. Contudo, a pretendida justiça igualmente depende de que tais decisões sejam tomadas de acordo com o sistema jurídico vigente, concebido de forma mais aberta, e não apenas como um sistema fechado de regras.18

Nesses termos, é preciso discutir e enfrentar democraticamente os riscos da postura proativa e criativa do Judiciário diante de um sistema aberto, que comporta regras e princípios, em que o direito possui uma estrutura reconhecidamente indeterminada.19

Somente com um processo de interpretação constitucional — a nova hermenêutica já tratada em outras paragens — é que será possível estabelecer o sentido de uma norma, independentemente do seu grau de detalhamento, de forma alinhada os princípios constitucionais, a fim de assegurar a efetividade dos direitos e garantias fundamentais no caso concreto.

Com base nessas ideias, Alexandre Coura afirma que, “se a particularidade do caso justificar, para o fim de efetivação do sistema constitucional”, o juiz, desde que bem fundamentando sua decisão, poderá alterar o sentido geral da regra “para preservação dos princípios que ela densifica, o que, em última análise, significa observar às máximas da norma, e não descumpri-la”.20

Assim, essa nova hermenêutica, que desenha um novo formato de interpretação constitucional “é uma via de mão dupla, na medida em que a Constituição filtra a interpretação das normas infraconstitucionais ao mesmo tempo em que a aplicação dessas normas configura instrumento para a efetivação da Constituição, com a afirmação do sistema de direitos e garantias fundamentais a cada decisão”.21

Torna-se imprescindível aqui legitimar a tutela jurisdicional pela racionalidade e adequabilidade constitucional da argumentação jurídica constante na parte da fundamentação da decisão judicial, bem como observar o modo do juiz decidir, “num constante processo de reflexão acerca das pré-compreensões que as informam e conformam”. Em suma, “ganham relevo as razões que fundamentam a decisão judicial e as garantias processuais atribuídas às partes, como o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, para a efetivação de um controle social também em face da jurisdição”.22 Nesse sentido:

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Vale destacar que importa, nesse viés, não apenas o conteúdo da decisão, que poderá agradar alguns e desagradar outros. Para afirmação da validade da decisão, o que dependerá de um controle social e democrático da fundamentação, deverão ser analisados criticamente os pressupostos do juiz acerca do seu papel, especialmente em relação ao seu sentido de direito e de Constituição, refletidos na decisão. Tais pressupostos respaldarão ou não a decisão, permitindo considerá-la um provimento racionalmente sustentável ou uma decisão inválida, conforme os fundamentos apresentados na motivação, exigência do art. 93, inciso IX, da nossa Constituição.23

Tem-se, pois, que nos dias de hoje verifica-se uma revalorização do momento jurisprudencial do Direito. Nas palavras de Nicola Picardi, “constitui convicção difundida que a tarefa de adequar o direito à realidade histórico-social pertença também ao juiz”, além de que muitos consideram, sob diversos matizes, que a obra judicial pode ser vista como “fonte concorrente e instrumental de produção jurídica”,24 o que demonstra o inegável aumento dos poderes dos juízes e o crescimento da importância do Poder Judiciário no âmbito do constitucionalismo contemporâneo.

Entretanto, como afirma Picardi:

Não é tão importante o poder, e as suas formas de legitimação, quanto o controle do exercício do poder. Ainda que se tenha sido legitimamente investido do poder, não é dito que as ações de quem o exerce sejam, por si só, justificadas. O controle impõe uma adequada organização das instituições, e assim termina necessariamente por compreender — também e sobretudo — o juiz e a jurisdição, a instituição de garantia por excelência.25

É nesse contexto da atual fase do constitucionalismo do Estado Democrático de Direito — denominado Estado Constitucional, o qual demanda o controle do exercício de poder do juiz e do Poder Judiciário — que se passa a analisar o conceito de jurisdição, que requer a preservação de condições de participação discursiva dos cidadãos na formação da decisão.

De tudo que foi até aqui exposto, resta claro que não se pode mais acatar a versão do conceito de jurisdição insculpido no Código de Processo Civil de 1973. Esse diploma processual teve fortes influências do italiano Giuseppe Chiovenda, que era fiel ao positivismo clássico, apesar de ter conferido uma natureza publicista ao processo. A jurisdição, pois, “é vista como função voltada à atuação da vontade concreta da lei”, sendo que “o verdadeiro poder estatal estava na lei” e “a jurisdição somente se manifestava a partir da revelação da vontade do legislador”.26 Assim, havia nítida separação das funções do Legislativo, como criador do Direito, e do Judiciário, como aplicador do Direito.

Outro enfoque existente na época da codificação era a teoria de Francesco Carnelutti, que “atribui à jurisdição a função de justa composição da lide, entendida como o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um e pela resistência de outro interessado”, ou seja, o conceito de lide é essencial para definir a existência de jurisdição.27 Para esse processualista, a lei era, por si só, “insuficiente para compor a lide, sendo necessária para tanto a atividade do juiz” — cuja sentença cria uma norma individual e integra o ordenamento jurídico —, apesar de não se desligar “da ideia de que a função do juiz está estritamente subordinada à do legislador, devendo declarar a lei”.28

Entretanto, nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni, a distinção entre a formulação de Chiovenda e a de Carnelutti “está em que, para a primeira, a jurisdição declara a lei, mas não produz uma nova regra, que integra o ordenamento jurídico”, enquanto que, para a segunda, “a jurisdição, apesar de não deixar de declarar a lei, cria uma regra individual que passa a integrar o ordenamento jurídico”.29

Não se tem a menor dúvida de que nos idos de 1940 a 1980, período em que vieram à tona os Códigos de Processo de 1939 e 1973, estava em pleno vapor o império do Estado Legislativo, ocasião em que se destacava a importância da atuação do legislador, relegando o juiz a mero aplicador e executor da lei, sem a menor capacidade criadora, nos moldes do juiz “bouche de la loi”.

Nicola Picardi refere-se a este posicionamento de jurisdição como se a função do juiz fosse “descobrir” as regras, ditadas pelo legislador. O juiz, “escavando no magma do direito, estendendo e restringindo, integrando ou corrigindo o dado normativo”, desenvolve operações hermenêuticas para encontrar a regra e “declará-la”. O autor aduz que a função judicial assim delineada parte da tese da existência de uma única resposta correta previamente determinada.30

Porém, como incansavelmente defendido neste trabalho, vive-se um novo momento, não somente no processo, mas no Direito como um todo, diante da inauguração de um novo paradigma, o do Estado Constitucional. A partir deste, decorrente da onda de um constitucionalismo contemporâneo, cai por terra o difundido “império da lei”, para se ter um “império da Constituição”, que assume uma posição de supremacia frente à lei ordinária. Juntamente com essas modificações, surge a nova hermenêutica que influencia diretamente a atividade do juiz e o conceito de jurisdição.

Realmente, com a revalorização do momento jurisprudencial do Direito destaca-se a tese do poder do juiz como função de “criação” do Direito, como afirma Nicola Picardi:

Já há tempos colocou-se em evidência que a atividade do intérprete não pode se reduzir a uma simples “explicitação”, mas é sempre uma contínua “reformulação” da norma, e também se esclareceu que a individualização da regra a ser aplicada no caso concreto, longe de se impor do exterior, é fruto de uma escolha que o juiz desenvolve na interpretação ou aplicação da norma. Hoje é precisado que, no iter de formação da sentença, o juiz dispõe de amplos poderes discricionários e, exatamente por meio do exercício desses poderes, é que ele “cria” a decisão.31

Desta forma, no Estado Constitucional, não há mais qualquer legitimidade na velha ideia de jurisdição voltada exclusivamente à atuação da lei ordinária. Neste novo paradigma o Direito deixa de ser reduzido à lei infraconstitucional, como foi na era da codificação, pois esta não vale por si só e deve estar adequada aos direitos fundamentais e princípios constitucionais de justiça presentes na Constituição Federal.

Como aponta Marinoni, considerando que “a lei é resultado da coalizão das forças dos vários grupos sociais, e que por isso frequentemente adquire contornos não só nebulosos, mas também egoísticos, torna-se evidente a necessidade de submeter a produção normativa a um controle que tome em consideração os princípios de justiça”,32 os quais têm qualidade de normas jurídicas constitucionais “vinculantes da interpretação das leis”.

Desta forma, com a superação do formalismo do princípio da legalidade do positivismo jurídico, cabe ao jurista compreender a lei à luz dos princípios constitucionais de justiça e dos direitos fundamentais, sendo que tão somente “essa compreensão crítica já é uma tarefa de concretização”. Como explica o autor, “a lei não é mais objeto, porém componente que vai levar à construção de uma nova norma, vista não como texto legal, mas sim como o significado da sua interpretação e, nesse sentido, como um novo ou outro objeto”.33 Em suma:

O neoconstitucionalismo exige a compreensão crítica da lei em face da Constituição, para ao final fazer surgir uma projeção ou cristalização da norma adequada, que também pode ser entendida como “conformação da lei”.

Essa transformação da ciência jurídica, ao dar ao jurista uma tarefa de construção — e não mais de simples revelação —, confere-lhe maior dignidade e responsabilidade, já que dele se espera uma atividade essencial para dar efetividade aos planos da Constituição, ou seja, aos projetos do Estado e às aspirações da sociedade.34

Nicola Picardi aduz que “nesse contexto o legislador deve resignar-se a considerar as próprias leis como ‘partes’ do direito”, ou seja, “o ‘universo jurídico’ acaba por concretizar-se na atividade argumentativa da classe dos juristas, em uma contínua integração dos sujeitos que compartilham preparação e mentalidade similares”.35

Nesses termos, com base na influência do giro linguístico na nova hermenêutica é que se compreende que “quando se insiste na necessidade de o juiz atribuir sentido ao caso levado à sua análise, deseja-se, antes de tudo, dizer que ele não pode se afastar da realidade em que vive”.36

Isso quer dizer que, no âmbito da jurisdição, a partir do paradigma do Estado Constitucional, o juiz deixa de ser um mero aplicador automático da lei, para ser um intérprete da lei, exercendo essa atividade sempre à luz da Constituição, para fazer valer no caso concreto os princípios constitucionais e os direitos fundamentais.37

Em outras palavras, no Estado Constitucional o juiz “constrói a norma jurídica a partir da interpretação de acordo com a Constituição, do controle de constitucionalidade e adoção da regra do balanceamento” dos direitos fundamentais no caso concreto.38 Esta “pode ser dita uma norma jurídica criada diante das peculiaridades do caso concreto, mas está longe de ser uma simples norma individual voltada a concretizar a norma geral, ou mesmo de representar a criação de um direito”.39

Tem-se, ainda, que cabe à jurisdição “descobrir o que é verdadeiro, correto ou justo a partir do texto da Constituição, da história e dos ideais sociais”. Ou seja, o juiz deve compreender a lei na medida da Constituição, mas “isso não quer dizer que lhe basta ‘declarar’ os valores constitucionais”, pois, “para realizar a função jurisdicional, o juiz, consciente do significado da Constituição, deve atribuir sentido ao caso concreto e, a partir daí, dar tutela concreta ao direito material”.40

A tarefa do juiz, pois, passa a ser relacionar o caso concreto com o texto da lei e as normas constitucionais correspondentes para construir a norma jurídica da resolução da lide.41 Nessa toada, vislumbra-se um novo conceito de jurisdição, a qual:

[...] apenas está zelando para que os direitos sejam tutelados de acordo com as normas constitucionais, para que os direitos fundamentais sejam protegidos e efetivados ainda que ignorados pelo legislador, e para que os direitos fundamentais sejam tutelados no caso concreto mediante a aplicação da regra do balanceamento.

O juiz, ao atuar dessa forma, não apenas cumpre a tarefa que lhe foi atribuída pelo constitucionalismo contemporâneo, como também, diante da transformação do próprio conceito de direito, apenas o aplica. Ou seja, no Estado constitucional não há qualquer motivo para a doutrina enxergar aí uma exceção à função de aplicação do direito, como se a aplicação do direito ou a atuação jurisdicional não estivesse subordinada aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais.42

Em suma, o Estado Constitucional inverteu os papéis da lei ordinária e da Constituição e com isso modificou o conceito de jurisdição, que deixa de ser a atividade de declarar o Direito ou de criar a norma individual, como anteriormente entendido pelo positivismo clássico, para ser a atividade de interpretar a legislação a partir dos princípios constitucionais de justiça e dos direitos fundamentais.

Demais disso, o juiz não deve se limitar a “editar a norma jurídica”, mas, na qualidade de diretor do processo, “tutelar concretamente o direito material”, isto é, tem o dever de, a partir das regras processuais, extrair “a potencialidade necessária para dar efetividade a qualquer direito material (e não apenas aos direitos fundamentais materiais) e, ainda, a obrigação de suprir as lacunas que impedem que a tutela jurisdicional seja prestada de modo efetivo a qualquer espécie de direito”.43

Diante disso, tem-se que considerando que a essência do Estado contemporâneo é proteger direitos, disso decorre naturalmente a mudança da configuração da função jurisdicional44. Marinoni resume que “quando se afirma que a jurisdição tem o dever de tutelar os direitos se quer dizer que a jurisdição tem o dever de aplicar a lei”, diante das situações concretas, “na dimensão dos direitos fundamentais, fazendo sempre o resgate dos valores substanciais neles contidos”.45

No entanto, no exercício da jurisdição, essa norma jurídica “construída” pelo juiz, na qualidade de “agente do poder não legitimado pelo voto”, deve ser devidamente justificada, isto é, fundamentada. Isso porque, diferentemente da lei, que é resultado de um embate parlamentar de representantes eleitos pelo povo, a decisão judicial é tomada tão somente pelo juiz.

É nesse ponto que se traz à balha a questão da legitimidade de tal “criação” do juiz, ou melhor, “decisão judicial”. Segundo Marinoni:

A legitimidade da decisão jurisdicional depende não apenas de estar o juiz convencido, mas também de o juiz justificar a racionalidade de sua decisão com base no caso concreto, nas provas produzidas e na convicção que formou sobre as situações de fato e de direito. Ou seja, não basta o juiz estar convencido — deve ele demonstrar as razões de seu convencimento. Isso permite o controle da atividade do juiz pelas partes ou por qualquer cidadão, já que a sentença deve ser o resultado de um raciocínio lógico capaz de ser demonstrado mediante a relação entre o relatório, a fundamentação e a parte dispositiva.46

É fato que se aumenta o risco de subjetividade judicial nas decisões quando se propõe a compreensão da lei à luz da Constituição, mas isso pode ser amenizada com a imposição de uma justificação racional da decisão como condição de legitimidade da atividade jurisdicional. Nesse sentido, Marinoni ressalta que “o problema da legitimidade da tutela jurisdicional, no Estado contemporâneo, está em verificar se é possível justificar a decisão do juiz, ou melhor, encontra-se na definição daquilo que assegura a aceitabilidade racional dessa decisão”.47

Segundo Nicola Picardi, o fato de o juiz, ao construir o Direito do caso concreto, exercer uma escolha entre diversas posições, não exime o fato de que ele está condicionado por limites processuais e substanciais. Aduz que a imparcialidade e a razoabilidade colocam “o problema dos limites no plano da lógica do juiz, da argumentação e da justificação”, de modo que a objetividade de sua valoração “é assegurada pelo fato de que o juiz procede, sempre, mediante raciocínios argumentativos”. Em outras palavras:

O discurso em torno dos valores pressupõe que o juiz recorra à lógica argumentativa, isto é, às regras e aos critérios de correção do raciocínio jurídico, que não se exaurem nas técnicas interpretativas da lei. Uma vez esgotada toda possibilidade aplicativa dos cânones de interpretação, resta, realmente, vínculos posteriores de argumentação jurídica que servem ainda para assegurar a razoabilidade na valoração dos valores, e — por meio da motivação e da publicidade da decisão — um resultado correto e suscetível de ser controlado.48

Em suma, independentemente de se entrar na tese de Dworkin acerca da “resposta correta” para cada caso concreto, “o certo é que não se pode isentar o juiz do dever de demonstrar que a sua decisão é racionalmente aceitável e, nessa linha, a melhor que poderia ser proferida diante da lei, da Constituição e das peculiaridades do caso concreto”.49

Diante disso, para remediar a subjetividade judicial na decisão do caso concreto, é imprescindível explicitar a correção da tutela jurisdicional mediante a “argumentação jurídica”, a cargo da jurisdição. Realmente, como afirma Marinoni:

[...] uma decisão não é racional em si, pois a racionalidade da decisão não é um atributo dela mesma. Uma decisão “se mostra” racional ou não. Para tanto, necessita de “algo”, isto é, da racionalidade da argumentação que a fundamenta. Essa argumentação, a cargo da jurisdição, é que pode demonstrar a racionalidade da decisão e, nesse sentido, a “decisão correta” ou a “decisão aceitável”.50

Portanto, na “jurisdição” do Estado Constitucional o poder do juiz pode se dizer limitado e controlável, pois “o dever de publicidade tanto quanto o da motivação, enquanto discurso justificativo”, constituem trâmites necessários para a verificação do exercício correto desse poder.51


Notas

1 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011, p. 14-15.

2 Ibidem, p. 14-15.

3 Ibidem, p. 28-29.

4 Ibidem, p. 33.

5 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 85.

6 Ibidem, p. 87.

7 Ibidem, p. 87.

8 Ibidem, p. 100.

9 Ibidem, p. 8.

10 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder... Op. cit., p. 99.

11 Ibidem, p. 100.

12 Ibidem, p. 100.

13 Ibidem, p. 101.

14 Ibidem, p. 102.

15 PICARDI, Nicola. Op. cit., p. 6.

16 Ibidem, p. 7.

17 COURA, Alexandre de Castro; AZEVEDO, Silvagner Andrade de. Op. cit., p. 5.871.

18 Ibidem, p. 5.871.

19 Ibidem, p. 5.872.

20 COURA, Alexandre de Castro; AZEVEDO, Silvagner Andrade de. Op. cit., p. 5.875.

21 Ibidem, p. 5.875.

22 Ibidem, p. 5.872.

23 Ibidem, p. 5.874.

24 PICARDI, Nicola. Op. cit., p. 2.

25 Ibidem, p. 2.

26 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 33.

27 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 35.

28 Ibidem, p. 36.

29 Ibidem, p. 39.

30 PICARDI, Nicola. Op. cit., p. 13.

31 PICARDI, Nicola. Op. cit., p. 15.

32 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 43.

33 Ibidem, p. 45.

34 Ibidem, p. 46.

35 PICARDI, Nicola. Op. cit., p. 23.

36 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 95.

37 Ibidem, p. 96.

38 Ibidem, p. 102.

39 Ibidem, p. 104-105.

40 Ibidem, p. 109-110.

41 Ibidem, p. 105.

42 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 105.

43 Ibidem, p. 137.

44 Ibidem, p. 138.

45 Ibidem, p. 142.

46 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 107.

47 Ibidem, p. 125.

48 PICARDI, Nicola. Op. cit., p. 20.

49 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 126.

50 Ibidem, p. 126.

51 PICARDI, Nicola. Op. cit., p. 20.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Renata Espindola Virgilio

Procuradora Federal, especialista em processo civil, mestre em Direito pela UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIRGILIO, Renata Espindola. Um novo conceito de jurisdição no modelo constitucional de Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3949, 24 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27888. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos