Fraude de execução e a proteção ao terceiro de boa-fé.

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10/06/2014 às 10:10

Resumo:


  • Alterações legislativas e jurisprudenciais moldaram o entendimento da fraude de execução ao longo do tempo, protegendo os terceiros adquirentes de boa-fé e impondo ao credor o ônus de provar a má-fé do adquirente na ausência do registro da penhora.

  • A Súmula 375-STJ consolida a ideia de que o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora ou da prova da má-fé do terceiro adquirente, o que gera controvérsias quanto à preservação do princípio da responsabilidade patrimonial do devedor.

  • O art. 615-A do CPC, introduzido pela Lei nº 11.382/2006, oferece ao exequente a possibilidade de averbar a distribuição da execução como medida preventiva contra a fraude, criando uma presunção absoluta de conhecimento por terceiros e reforçando a segurança jurídica nas transações imobiliárias.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

9 – Boa-fé.

A boa-fé constitui um dos principais princípios reguladores das relações comerciais. O Regulamento 738, de 1850, determinava que não poderiam ser reconhecidos usos comerciais contrários à boa-fé  e às “máximas commerciaes”, nos seguintes termos: “Art. 25. Só podem ser admitidas como usos mandados guardar pelo Código Commercial as praticas commerciaes a favor das quaes concorrerem copulativamente os dous seguintes requisitos essenciaes:1.º serem conformes aos sãos princípios de bôa fé e máximas commerciaes, e geralmente praticadas entre os commerciantes do logar onde se acharem estabelecidas; 2.º não serem contrarias a alguma disposição do Código  Commercial, ou leis depois dele publicada”.

Desde os primórdios, a garantia e a segurança das transações comerciais estavam fundamentadas na confiança, representada pela mútua, correspectiva boa-fé. Os termos boa-fé e equidade eram empregados para referir três condutas esperadas das partes contratantes, ainda que não expressamente acordadas: (i) cada um deveria manter sua palavra; (ii) nenhuma deveria tirar vantagem da outra mediante sua indução em erro; e (iii) ambas deveriam pautar seu comportamento de acordo com as obrigações de uma pessoa honesta.

  A boa-fé é o âmago do que J. X. Carvalho de Mendonça, inspirado em GOLDSCHMIDT e em THOL, chamou de doutrina da prudência comercial, “o modo de proceder no tráfico mercantil”, “o conjunto de princípios que ensinam a dar efeito a escopos lícitos somente mediante meios lícitos”. A boa-fé é indispensável no commercio”; A boa fé d’um negociante deve ser ilibada”; “Nenhuma sociedade pode existir sem ella”; A ma fé é a peste mortal do commercio”, proclama FERREIRA BORGES, com base em alvarás do séc. XVIII.[60]  

Para o direito comercial, agir de acordo com a boa-fé significa adotar o comportamento jurídica e normalmente esperado dos “comerciantes cordatos”, dos agentes econômicos ativos e probos em determinado mercado (ou “em certo ambiente institucional”), sempre de acordo com o direito. [61]

Como assinala Paula A. Forgioni, a boa-fé no direito comercial não acompanha padrões que a apontariam como reflexo de altruísmo exacerbado ou de algo semelhante. Ao contrário, indica a retidão de comportamento no mercado, conforme os modelos ali esperados (inclusive o respeito ás normas, próprio do homem ativo e probo). Ao se atrelar a um standard de comportamento empiricamente observável, a boa-fé comercial abandona rasgos  de subjetivismo para aflorar como linha determinável e determinada de conduta.[62]

Não apenas no direito comercial, nas relações humanas, tanto na constituição das obrigações como na sua execução; na confecção dos atos jurídicos, e em geral em quaisquer atos que possam atingir interesses de terceiros, a boa-fé constitui fundamento essencial.

No entanto, nem sempre, a boa-fé é observada. A quebra da confiança infringe um direito, sendo natural e desejável que as normas jurídicas atuem de forma coercitiva, a fim de que as partes atuem de forma responsável, dentro dos limites impostos não só pelo contrato, mas pela sua função social.

E, em sendo a boa-fé uma garantia dos contratos, o respeito a esse princípio não pode levar, em hipótese alguma, a uma excessiva proteção de uma das partes, sob pena de desestabilização do sistema econômico. A doutrina moderna reconhece a influência da boa-fé em todas as áreas do direito e, principalmente, nos casos de alegação de fraude à execução, pois é aí que a má-fé encontra campo fértil para se desenvolver, e a existência desta é a demonstração de ausência de boa-fé.

O nosso sistema jurídico é fundamentado em princípios, dotados de valores relevantes, influindo vigorosamente sobre a orientação de setores da ordem jurídica. Em razão disso, muitas vezes são “superiores” às regras jurídicas, pois, estando no topo do ordenamento jurídico e servindo como norteadores da interpretação das leis, eles servem como forma de solucionar litígios quando não forem encontradas normas específicas para aplicação a determinado caso concreto ou mesmo em conjunto com essas normas, imprimindo-lhes determinado significado. 

Como salienta José Eli Salamacha (2007), em matéria de fraude à execução, dois princípios têm fundamental importância: o da boa fé e o da segurança jurídica. É neste cenário que está inserto o instrumento processual da fraude à execução – intrinsecamente ligado à segurança jurídica – haja vista este instrumento ter por escopo proteger os direitos dos credores e devedores, garantindo a utilidade da execução e auxiliando o Estado na resolução da crise do inadimplemento que existe em sede de processo executivo.

O princípio da boa-fé é um dos mais importantes do nosso ordenamento jurídico, por constituir a regra fundamental das relações humanas, tanto na constituição das obrigações como na sua execução, alcançando, especialmente, os atos jurídicos que possam atingir interesse de terceiros. 

O Código Civil de 2002 incorporou em seu texto o princípio da boa-fé, dispondo no artigo 113 que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. No artigo 187, prevê que: “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, e ainda, no art. 422, que “os contratantes são obrigados a guardar, assim, na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

O instituto da fraude de execução, é pautado na boa-fé, na intenção pura, isenta de dolo ou engano, com que a pessoa realiza o negócio ou executa o ato, certa de que está agindo na conformidade do direito, protegida pelos preceitos legais, um dos quais é a responsabilidade patrimonial. 

Além do fim pessoal inerente ao direito subjetivo, o direito de propriedade cumpre uma função social, e o exercício desse direito passa a ser ilegítimo, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito. Porquanto haverá abuso do direito, quando o exercício do direito subjetivo (conduta ativa ou omissa) não se guie segundo a boa-fé e os bons costumes.

Nesse sentido é o escólio de Francisco Amaral que fundamentado nas lições de Miguel Reale, esclarece que o princípio da socialidade tem como objetivo superar a interpretação individualista do Código de 1916, para orientar o aplicador da norma a uma supremacia dos interesses coletivos em relação aos individuais, sem que com isso seja afastada a segurança jurídica e os valores da pessoa humana tal como se verifica na função social do contrato (art. 421, CC/2002) e da propriedade (art. 1.228, caput e seus §§ 2.º, 4.º e 5.º, CC/2002). A socialidade tem por objetivo garantir a justa aplicação da norma (o justo meio de Aristóteles) para assegurar o bem comum e a justiça social (contratual e da propriedade) sem que haja prejuízo a terceiros.[63]

O princípio da eticidade fundamenta, ainda, a crença de que o equilíbrio econômico dos contratos é a base ética de todo o direito obrigacional, e que o aproxima do princípio da boa-fé, no seu sentido ético, objetivo.

É de todo oportuno gizar as palavras dos renomados doutrinadores Lamy e Borges que conceituam o supramencionado instituto nos seguintes termos: “Constitui fraude à execução a declaração judicial da ineficácia de atos de alienação ou oneração de bens quando, sobre estes pender ação fundada em direito real (art. 593, I, do CPC), ou já houver constrições judiciais tais como o arresto ou a penhora, especialmente se forem praticados de má-fé, ainda que não levem nem possam levar o devedor à insolvência.Também consiste em fraude à execução a declaração judicial da ineficácia de atos de alienação ou oneração de bens que conduzam ou possam conduzir o devedor à insolvência (art. 593, II, do CPC), desfalcando o seu patrimônio, desde que já exista processo de conhecimento ou de execução visando a satisfação do crédito, especialmente se forem praticados de má-fé, mediante conluio entre o devedor e terceiro”.[64]

Observa-se, portanto, que a existência de ação capaz de tornar insolvente o devedor é requisito bastante para o reconhecimento da fraude à execução. A partir do momento que o juiz passa a exigir a prova da má-fé do adquirente, desprezando a norma vigente, com a devida vênia o faz em prejuízo do credor, descaracterizando o instituto da fraude à execução, pois, o elemento subjetivo– a prova da má-fé do terceiro adquirente – era elemento da fraude contra credores, aliás, um dos elementos que diferenciavam a fraude contra credores da fraude à execução.

Na fraude de execução, acaso respeitada a norma processual vigente, não há que se perquirir sobre a ciência efetiva ou presumida do terceiro adquirente a respeito da existência da demanda contra o alienante. E nem se diga que a evolução das relações jurídicas, a necessidade de segurança jurídica são os fundamentos relevantes ou motivadores dessa preocupação com a boa-fé do adquirente, pois, estamos caminhando no sentido da publicidade, inclusive, da vida pessoal em tempo real, com a informatização dos meios de comunicação.     

Para Yussef Said Cahali, essa preocupação da doutrina e jurisprudência fez que ocorresse uma “fragilização” do conceito de fraude, em privilégio da segurança e estabilidade dos negócios jurídicos, no sentido de resguardar o direito do adquirente de boa-fé. 

É preciso precaver-se contra o risco de se utilizar a boa-fé como remédio para todos os males, empregando-a em nome de amorfa busca da “justiça social”. Sempre na dicção de Larenz: “O juiz não deve impor seus próprios módulos às partes, que determinam por si o conteúdo do contrato no ãmbito de sua autonomia privada, mas apenas levar a termo a ponderação dos valores  em que elas se basearam”. Especificamente no que toca ao direito comercial, mesmo nos contratos colaborativos, a boa-fé não pode ser aplicada de maneira a despir o agente econômico da sagacidade que lhe é peculiar. Tampouco deve ser aplicada como justificativa para o inadimplemento da parte ou desculpa para comportamentos imprudentes ou desconformes ao parâmetro de mercado.[65]


10 – Conclusão.

Realizada essa breve análise do instituo denominado “Fraude de Execução”, concluímos que a típica fraude de execução prevista no art. 593, II, do CPC, não foi revogada e se apresenta nos dias de hoje como remédio processual moderno, célere e efetivo, colocado à disposição do credor para restaurar o equilíbrio contratual e a boa-fé que deve pautar os contratantes nas relações negociais. 

Se o devedor responde com todos os seus bens, presentes e futuros, para garantia de suas dívidas (responsabilidade patrimonial), a boa-fé exigida deve ser necessariamente do devedor, pois, ciente da obrigação assumida, tem o dever de não desfalcar seu patrimônio, muito menos de desfazê-lo em detrimento de seus credores.

Não obstante, para a maior parte da doutrina, a jurisprudência ter evoluído nas decisões relativas à fraude de execução, respeitadas as opiniões em contrário, considero que em alguns aspectos houve na verdade um retrocesso, como por exemplo, naquela fundamentada na proteção ao terceiro adquirente de boa-fé, que na ausência do registro da penhora, para que seja caracterizada fraude à execução, impõe ao credor o ônus de provar que o adquirente tinha ciência da constrição que pesava sobre o imóvel (REsp. Nº 865.974 – RS – Rel. Min.TEORI ALBINO ZAVASCKI).

Desnecessário discorrer aqui sobre os efeitos decorrentes da citação, os quais, por óbvio não podem ser desconsiderados, sendo certo, porém, que após a citação, ciente da demanda proposta, não seria razoável nem legítimo afirmar que a alienação de bens pelo réu, apta a frustrar uma futura execução não configura fraude de execução. Por outro lado, nada impede a caracterização da fraude entre o ajuizamento da demanda e a citação, pois, o artigo 593, II, do CPC não foi revogado, e em não tendo sido revogado, a típica fraude de execução persiste, não podendo ser desconsiderada a construção doutrinária e jurisprudencial a respeito do tema.

Ora, se a fraude à execução constitui atentado contra o desenvolvimento da função jurisdicional já em curso, porque lhe subtrai o objeto sobre o qual a execução deverá recair, exigindo apenas que a instauração do processo deve ser anterior ao ato de disposição, sem ser necessariamente executivo ou fase de cumprimento de sentença, excluir a fraude fundamentado apenas na ausência de citação, seria o mesmo que tornar letra morta o artigo 593, II, do CPC, quando este pode e deve ser interpretado em consonância com os demais artigos do CPC, pois, a boa ou má-fé do terceiro é irrelevante para a configuração da fraude, e os atos de disposição posteriores à citação, com maior razão também deverão ser considerados fraudulentos. 

Não é necessário regredirmos ao Regulamento 737 de 1850 e aos Códigos dos Estados para verificarmos que o elemento subjetivo sempre foi irrelevante para a configuração da fraude de execução, e ainda, que o Código de 1973 exerceu inegável influência sobre o que o legislador considerava “proposta a ação” ou “demanda pendente”.

Enquanto o sistema de 1939 considerava proposta a ação e iniciado o Processo somente quando feita a citação do réu[66], o código de 1973 evoluiu em relação à matéria, prevendo em seus artigos 262[67] e 263[68] que se considerava proposta a ação desde o despacho liminar do juiz na petição inicial ou de sua simples distribuição onde houver mais de uma vara. E, o Código de Processo Civil atual fala, em capítulo próprio, da “Formação do Processo” (arts. 262 e 263). Cotejando-se o antigo art. 196 (CPC/39) com o vigente art. 263 (CPC/73), temos que, hoje, ajuizada a ação, nasce a relação processual. O processo já existe antes da citação – tanto é que pode ser extinto (art. 295 c/c art. 267, I) – a qual apenas propicia a sujeição ao demandado dos efeitos da instauração daquele.

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 Mister é concluir-se que, a partir da propositura da ação, pela distribuição da petição inicial ou pela determinação do ato citatório, nos precisos termos do art. 263 do CPC, se estabelece a relação processual.

Neste momento, verifica-se o pressuposto para o reconhecimento da fraude à execução, conforme estabelece o art. 593 do Estatuto Processual, já que passa a “pender” ou “correr” demanda contra o devedor.

Se depois desse instante ocorrer a alienação ou disposição do acervo patrimonial, ou do bem sujeito a constrição judicial, o ato translativo não dispõe de qualquer eficácia ante o credor, sendo absolutamente desnecessária tanto a inscrição da citação como da penhora, pressupostos não estabelecidos na lei processual para o seu reconhecimento. 

De outro lado, despicienda a perquirição do elemento subjetivo do adquirente do bem, para que seja ignorado o negócio jurídico, no âmbito da demanda, uma vez que o instituto da fraude à execução tutela interesse público prevalente, de resguardo à própria Justiça e respeito ao Poder Judiciário.  

A Súmula 375-STJ, com a devida vênia anda na contramão da segurança jurídica que deve existir nos negócios em geral, pois, está sendo aplicada sem quaisquer ressalvas tornando letra morta a fraude de execução prevista no art. 593, II, do CPC, ao considerar como requisitos da ocorrência da fraude, isoladamente, apenas o registro da penhora ou a prova da má-fé do adquirente.

Ora, a alienação do bem após o registro ou averbação da penhora à margem da matrícula nada tem a ver com a fraude de execução prevista no caput do art. 593, do CPC.  Para caracterização da fraude de execução do art. 593, II, basta a “alienação ou oneração de bens na pendência de demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência.”

Impõe salientar que o instituto denominado “fraude de execução”  previsto pelo legislador desde o Regulamento 737 de 1850, teve como escopo “tornar ineficaz” os atos fraudulentos de disposição ou oneração de bens pelo devedor, como forma de permitir ao devedor a continuidade da administração de seus bens, concomitante à atividade comercial ou negocial, época em que a boa-fé era presumida em decorrência do comportamento exigido pela sociedade que não admitia nos contratos em geral o uso da malandragem, da esperteza, da vilania, e em especial da insolvência proposital e leviana, a qual era punida também com a pena de prisão.

Naquele tempo as leis eram escassas assim como eram escassos os meios de comunicação, mas a vilania e a esperteza, o intuito de prejudicar já era explorado pelo Homem. E o legislador, sabiamente, criou o instituto denominado “fraude de execução” colocando como requisito de sua ocorrência, “a alienação de bens na pendência de demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência”, sem a necessidade de ajuizamento de nova demanda, podendo ser alegada nos próprios autos, mediante simples petição, autorizando o juiz a declarar a fraude liminarmente, independente de contraditório, sem perquirir sobre a boa ou má-fé do terceiro, porque não faz parte da relação que antecedeu a demanda, muito menos desta, a qual se presume, pois, a responsabilidade patrimonial (art. 591 do CPC) está fundamentada na obrigação que compete ao devedor, para o cumprimento de suas obrigações, de responder com todos os seus bens (presentes e futuros), salvo as restrições estabelecidas em lei.

A responsabilidade patrimonial impede que o devedor aliene os seus bens tornando-se insolvente com a finalidade de lesar seus credores, tanto é assim, que na ausência de “demanda pendente” pode se utilizar da ação pauliana (fraude contra credores).

Porém, na pendência de demanda não há necessidade de nova ação. É que após a instauração de um processo que visa à condenação de um réu, em regra busca-se a satisfação do crédito do autor, por meio da arrecadação dos bens do devedor, com a consequente adjudicação, alienação ou usufruto daqueles. É a frustação dos meios executórios na pendência de demanda que torna a fraude ainda mais grave, por constituir verdadeiro atentado contra a dignidade e à administração da justiça, porque lhe subtrai o objeto sobre o qual a execução deverá recair. Ou seja, a fraude frustra a própria atuação da justiça, pois, o credor não obstante o direito tutelado nada receberá. 

Conforme Jefferson Douglas Santana de MELLO, em artigo publicado na Revista de

Direito Imobiliário – IRIB[69],  à função do Estado – de solucionar conflitos – dá-se o nome de Jurisdição. E, as finalidades da Jurisdição, são a aplicação do Direito e a pacificação social, visando o fim almejado pelo Estado que é o bem comum. Assim, instalado o conflito, havendo a provocação do Estado, deve este atuar de forma efetiva, proporcionando a distribuição da Justiça, sob as duras penas de, assim não o fazendo, gerar um descontentamento dos jurisdicionados, o que todos sabem é o maior risco para a existência do próprio Estado.

Ainda de acordo com MELLO, é a confiança nesse sistema que garante a Segurança Jurídica, permitindo que não se instaure a barbárie, quando o cidadão, não confiando mais na Justiça começa a promover toda a sorte de exercício arbitrário das próprias razões. É a segurança jurídica que garante que um país receba investimentos estrangeiros, de modo a desenvolver a sua economia. Que particularmente no Brasil, país social-democrata promove um maior desenvolvimento de todas as classes sociais, retirando milhares de pessoas da miséria. É neste cenário que está inserto o instrumento processual da fraude de execução – intrinsecamente ligado à segurança jurídica – haja vista este instrumento ter por escopo proteger os direitos dos credores e devedores, garantindo a utilidade da execução e auxiliando o Estado na resolução da crise do inadimplemento que existe em sede de processo executivo.

Em nenhum momento cogitou o legislador sobre a necessidade de citação, muito menos da boa-fé do terceiro adquirente, do conluio entre este e o devedor (consilium fraudis), características da fraude contra credores.

Inteligentemente o legislador permitiu ao credor atuar contra a fraude nos próprios autos da execução, onde o conflito é de inadimplemento, o direito do autor já está reconhecido, sendo necessária a intervenção do Judiciário para torna-lo efetivo, por isso o Juiz está autorizado a ‘liminarmente’, antecipar os efeitos da tutela pretendida, resguardando o direito do terceiro adquirente, com a manutenção do negócio realizado entre ele e o devedor (que pagando, retorna ao status quo ante), tornando-o apenas ineficaz em relação à execução, autorizando a penhora e a expropriação do bem.

Assim, a fraude de execução é instituto processual que tem como objeto, tornar ineficaz os atos fraudulentos de disposição ou oneração de bens, de ordem patrimonial, praticados pelo devedor que já figura no polo passivo de uma demanda.

Da análise da legislação relativa à fraude de execução fica clara a intenção do legislador em coibir os atos de disposição de bens pelo devedor de forma rígida e célere, quando permitiu que o Juiz, liminarmente, na presença de prova inequívoca, que convença da verossimilhança da alegação, declarasse a fraude, tornando o ato de disposição ineficaz antes mesmo da citação, cujo efeito é integrar o réu à lide, tornando-o parte, pois, antes da citação as partes do processo são apenas autor e Estado-juiz.   

Isso fica constatado ainda, quando o legislador a fim de colocar uma pá de cal na discussão sobre essa matéria (demanda pendente e citação), no Código de 1973, inseriu no artigo 263 disposição no sentido de que: “Considera-se proposta a ação, tanto que a petição inicial seja despachada pelo juiz, ou simplesmente distribuída, onde houver mais de uma vara. A propositura da ação, todavia, só produz, quanto ao réu, os efeitos mencionados no art.219 depois que for validamente citado.” (grifamos).

Assim, a conclusão a que chegamos é a de que a citação válida é necessária para o desenvolvimento válido e regular do processo, sendo certo que em sede de execução o executado é citado “para pagar”, e em não sendo encontrado (art. 653 do CPC), o oficial de justiça está autorizado a realizar o arresto de “tantos bens quantos bastem para garantir a execução”.

Portanto a citação não é requisito para a ocorrência da fraude de execução. Seu reconhecimento depende apenas da existência de uma ação contemporânea ao ato de diminuição patrimonial. Havendo ação judicial em andamento, o interesse em manutenção do patrimônio do executado não é apenas do credor, mas também da jurisdição, cuja atividade atua sobre o conjunto de bens. Em razão disto, a fraude à execução não se limita a gerar efeitos no campo processual, sendo também tipificada como delito (art. 179 CP).[70]  

São vários os julgados do E. STJ, considerando que não ocorreu fraude de execução, mesmo após a citação, pela ausência de registro da penhora, por ser o registro que gera publicidade e faz presumir, iuris et de iure, a ciência de terceiros. Inexistindo registro do gravame judicial, ao credor cabe o ônus de provar a ciência, pelo terceiro, adquirente ou beneficiário, da existência da demanda ou do gravame.  

O principal argumento para alteração do entendimento pela jurisprudência e doutrina quanto à ocorrência da fraude de execução, em nome da proteção ao terceiro adquirente de boa-fé, é a necessidade de publicidade dos atos processuais. 

A meu ver esse é um dos maiores equívocos cometidos pelos Tribunais e doutrinadores, pois, a norma processual é lei especial e autônoma tanto quanto a lei registrária. Não é por constar da Lei de Registros Públicos que a inscrição da penhora faz prova quanto à fraude de qualquer transação posterior (art. 245 da Lei 6.015/73), que em não sendo registrada a penhora, esta não terá validade ou não surtirá efeitos. Conforme entendimento pacificado na doutrina o registro não é ato integrativo da penhora. E ainda, só há registro da penhora após a citação e intimação do executado, do cônjuge se casado for, do coproprietário se houver; atos esses que demandam tempo, por vezes anos. Destarte, impor ao credor o ônus de registrar a penhora ou se ainda não registrada, comprovar a má-fé do terceiro adquirente para considerar a alienação em fraude de execução, é tornar letra morta o art. 593, II, do CPC.

Se voltarmos no tempo, mais precisamente nas Ordenações Filipinas, para verificarmos a questão da publicidade dos atos processuais, quando o instituto da fraude de execução foi criado; será que naquela época a “publicidade” era maior que a dos dias de hoje? Será que existia correio? Para não falarmos em e-mail, internet, celular com internet, previsão de citação por e-mail, documentos digitais, processo eletrônico, sites dos Tribunais de Justiça, tanto Estaduais quanto Federais, do STJ, do STF , Diário da Justiça Eletrônico!

Não bastante isso, por força da Lei nº 7433, de 18/12/1985, regulamentada pelo Decreto Federal 93.240, de 09/09/1986, o qual dispõe acerca dos requisitos para lavratura de escrituras públicas, há orientação prevendo a extração de certidões de feitos ajuizados para a aquisição de bens imóveis, além de existir consagrada praxe neste sentido. 

O grande especialista em direito imobiliário, Narciso Orlandi Neto, em sua obra Retificação do Registro de Imóveis, após didática e convincente linha de argumentação, assim conclui:

“Data vênia, a boa-fé ou má-fé do adquirente não depende do registro da penhora. Como afirmar-se de boa-fé o adquirente, ainda que, ao tempo da aquisição, a penhora não estivesse registrada, diante dos claros termos do inciso II do art. 593 do Código de Processo Civil? E qual a utilidade da Lei nº 7433, que exige, nos atos notariais relativos a imóveis, a apresentação de certidão de feitos ajuizados? Pode o adquirente posterior à penhora estar em melhor situação que o adquirente anterior ao aparelhamento da execução, mas igualmente desidioso?”

A necessidade de registro de penhora não modificou o instituto da fraude de execução que, repete-se, visa à proteção do credor e não do adquirente desidioso. O registro da penhora não é constitutivo. É mais um meio de publicidade do processo que se acrescenta a seu próprio registro, para dar mais uma chance ao adquirente de evitar o negócio que fatalmente será considerado fraudulento” (2ª ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 218).

Ora, se o Direito não socorre quem dorme, e já diziam os romanos que dormientibus non sucurrit jus, a toda evidência que o direito deve amparar o credor, pois, a boa-fé é o elemento subjetivo que informa, estrutura e vivifica todas as relações, impondo ser lembrado aqui o instituo da pacta sunt servanda, e o fato de que o indivíduo, ao celebrar negócios jurídicos onerosos com outrem, tem por finalidade receber a obrigação assumida pelo devedor. 

Caso haja o inadimplemento da obrigação, em virtude do princípio da patrimonialidade da execução (que preceitua que o que se executa são os bens do devedor e não a pessoa do devedor), a execução recairá sobre o patrimônio do executado e não na sua pessoa, como ocorreu em determinados momentos da história do direito processual civil.

Trazer o elemento subjetivo para o instituto da fraude de execução, aplicando-o sem uma análise sistemática da fraude de execução com as alterações processuais colocadas à disposição das partes para aprimorar o instituto, tende a nos colocar diante de situações nas quais o devedor, em flagrante deslealdade processual, onera ou aliena seus bens de modo a causar prejuízos ao exequente/credor, numa aparente licitude, prejudicando não só o credor, mas a sociedade como um todo.

Da leitura do voto do Ministro Fernando Gonçalves, relator da súmula-375-STJ, se verifica que sua fundamentação está apoiada no voto do ministro Luiz Fux no REsp. 739.388MG., que, sobrepujando a questão de fundo sobre a questão da forma, como técnica de realização da justiça, conferindo interpretação finalística à Lei de Registros Públicos, na edição da Súmula-84-STJ, passou admitir a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que  desprovido de registro.

Ora, não é pelo fato de impressionar a “questão social” do nosso país, que discriminaremos aqueles que detém conhecimentos e uma situação econômica e financeira superior ou privilegiada. É perfeitamente possível tutelar o direito daquele que adquiriu seu pequeno terreno, apartamento, casa, mediante um simples compromisso de compra e venda não registrado à margem da matrícula do imóvel, mediante a análise do caso concreto, verificando o reconhecimento das assinaturas apostas concomitante à alienação, a oitiva de testemunhas, contas de água, luz, enfim, documentos que sejam aptos à comprovação da alienação e posse exercida com ânimo de dono e de boa-fé, anteriormente ao ajuizamento da demanda.

O que não se pode é em nome da “questão social”, proferir decisões aptas a prejudicar o “credor” que coloca seu patrimônio a serviço do outro como forma de construir um capital, gerar e produzir renda e emprego, pois, sem a garantia do recebimento de seu crédito o prejuízo é da sociedade como um todo. Por outro lado, isso estimula a inadimplência simulada com a alienação de bens pelo devedor com o fito exclusivo de prejudicar o credor.

A boa-fé do terceiro adquirente não pode ser priorizada em nome da “questão social” em prejuízo do credor, pois, a responsabilidade patrimonial ainda é a única segurança jurídica em prol do credor.

A conduta do devedor é que deve ser priorizada (no sentido de ônus), pois, ele é sabedor de suas obrigações e responsabilidades assumidas. E a realidade jurídica e social do nosso País precisa e merece ser valorizada. Não obstante o alto índice de pobreza e analfabetismo, os usos e costumes sempre imperaram com força na sociedade. E deve-se exigir que a conduta do terceiro adquirente seja compatível com a realidade e a prática costumeira vigente nas aquisições imobiliárias, como a de exigir certidões dos distribuidores cíveis, trabalhistas e fiscais (estaduais e federais). A matrícula do imóvel não é a única fonte de informação de um adquirente, verdadeiramente de boa-fé.

Aliás, a publicidade de ações pendentes há muito não é problema, pois, antes mesmo da reforma do Código de Processo Civil, da inserção do artigo 615-A, já existe um convênio entre o TJSP e o Serasa, permitindo a publicidade e a inscrição de todas as execuções pendentes no Tribunal (1ª e 2ª instâncias) naquele banco de dados, permitindo que os eventuais adquirentes imobiliários (bem como os demais credores, lojistas, etc.) tenham a ciência de execuções pendentes também por esse órgão.

Antes da reforma do CPC, o exequente, por conta da jurisprudência, tinha só o ônus de averbar a penhora no registro de imóveis (CPC. Art. 659, § 4º), sob pena de, havendo aquisição do imóvel penhorado por terceiro, ter que comprovar que esse terceiro tinha condições de saber da demanda e da penhora. Agora, tendo ciência da existência de bens passíveis de penhora, tem também o ônus de averbar a distribuição da execução (CPC, art. 615-A), o que tem sido considerado por alguns mais uma proteção em favor do adquirente de boa-fé, em virtude dessa omissão poder vir a ser interpretada em desfavor do credor, tendo o ônus de comprovar que o terceiro tinha condições de saber da demanda pendente.

Porém, para que o adquirente seja considerado de boa-fé é necessário que fique evidenciado o mínimo de cautela. E é através das certidões forenses que o interessado na compra do bem imóvel poderá ter certeza de que o vendedor é ou não parte passiva de demanda judicial, garantindo, assim, que o bem objeto do negócio não venha a ser subtraído do patrimônio do comprador para saldar dívida em execução movida contra o vendedor. É essa a garantia que as certidões forenses proporcionam.

Da mesma forma, não há como igualar o credor diligente, que averbou a execução no registro de imóveis, do credor desidioso, que ficou alheio à plena eficácia de seus direitos e ao direito de terceiros. Se o credor-exequente quer excluir o risco de se ver ameaçado por um adquirente de boa-fé, e sofrer uma presunção relativa em seu desfavor, tem o ônus de inscrever a execução na matrícula constante do Registro de Imóveis, ainda que esta seja facultativa, pois, dependendo da análise do caso concreto, das circunstâncias apontadas essa omissão poderá vir a ser interpretada de forma favorável ao terceiro de boa-fé.

Assim, não se ignora que a hipótese do art. 615-A, § 3º, do CPC representa mais uma técnica processual adequada, colocada em benefício do credor, como condição objetiva de proteção contra os atos fraudulentos do devedor, sendo certo que, na presença da averbação da ação no Registro Imobiliário, havendo a alienação, teremos mais um caso de fraude de execução, na media em que haverá presunção absoluta em favor do exequente. 

Por todo o exposto, se verifica que o instituto da fraude de execução, tem como escopo a manutenção da confiança, da ética, da boa-fé nas relações negociais, pautada na responsabilidade patrimonial como vetor da segurança jurídica, com implicações diretas na área social e econômica.

As principais instituições, que constituem a própria base da economia de mercado, são a propriedade e o contrato, e o desenvolvimento econômico está vinculado diretamente à forma como os direitos de propriedade são definidos e aplicados.  Tanto é assim que, não obstante a livre disposição de uso, gozo e fruição, há limites ao direito de propriedade. Não é possível a existência de uma economia de mercado sem que haja um direito de propriedade privada estabelecido e assegurado, da mesma forma que se faz necessário o exercício de autonomia privada para que as partes possam intercambiar os direitos de propriedade.  De nada servem regras claras se não forem cumpridas; se permitirem o seu desrespeito sem punição adequada. 

A “questão social” como afirmou o saudoso J. J. Calmons de Passos[71] na palestra “A Função Social do Processo”, “obrigou a repensar os valores do iluminismo, iniciando-se a recuperação do social. Decorrência disso, principalmente em nosso século, sob o impacto do chamado Estado de Direito Democrático e Social, veio a reação no espaço político e econômico. (...) Passou-se a falar em função social da propriedade, função social do capital, função social da empresa - vale dizer, começou-se a levar para o campo da atividade econômica aquela regra que se tinha posto para o campo da atividade política. Se somos todos iguais e você só pode ter poder legítimo como outorga, função, obrigado a traduzir o exercício do seu poder em prestação de serviço, também se você é proprietário de bens, tendo sobre eles poder (domínio), este poder não lhe é atribuído em virtude de algo originário, inato, ou transcendente. Por conseguinte, você é proprietário de bens por concessão dos outros, não podendo utilizar-se desses bens como se fossem exclusivamente seus e destinados exclusivamente à satisfação de seus interesses, porque você não tem nenhum título legitimador originário que lhe permita, por exemplo, dizer que esses quarenta mil hectares de terras improdutivas são seus, por direito natural, que esse Mercedes Benz é seu, que essas trinta e duas casas são suas e seus esses oitenta milhões de reais pelas mesmas razões. É a sociedade, o conjunto dos que com você convivem, que lhe outorga esse direito de você dizer: "eu sou proprietário de quarenta mil hectares, eu sou proprietário de um automóvel, eu sou proprietário de quarenta milhões de reais". E ela o legitima para dizer isso, para que, como proprietário desses bens, você os utilize também como serviço à coletividade. Construiu-se, desse modo, a ideia de função social no campo do Direito Privado. Completou-se a noção de poder político como serviço, com a ideia de que também o poder econômico, numa democracia, ou se traduz em serviço ou carece de legitimidade.”.

Trazendo essa perspectiva para o instituto da fraude de execução, qual será a função social do processo? Que serviço o processo presta?  Penso que à solução do conflito, mas de molde a prevalecer o pactuado pelas partes (pacta Sun servanda), preservando o direito do credor receber o seu crédito com a expropriação dos bens nos precisos termos que tutela a responsabilidade patrimonial, sob pena de se estimular a inadimplência e a insolvência simulada. 

O processo, de acordo com J. J. Calmon, não tem função que lhe seja específica, porque a que lhe for atribuível será mera segmentação da função desempenhada pelo Direito. Não há justiça absoluta. A justiça é alguma coisa que se constrói a cada instante e se desfaz, e se desconstitui, a cada instante, como ele próprio concluiu:

“(...) E que função desempenha o Direito na vida social? (...) o conflito. No dia em que na sociedade não mais houver conflitos, os operadores do Direito serão desnecessários. Como, por igual, no dia em que não houver mais doenças, inexistirão os médicos. (...) Há uma doença física que reclama a existência de médicos, cuja função é a de recuperar a saúde dos atingidos por males físicos. Há, também, uma doença social que é o conflito que reclama profissionais que libertem a sociedade desse mal, e este profissional é o jurista, o operador do Direito. Inexistissem conflitos e o Direito careceria de justificativa.

Em que pese essa evidência, somos trabalhados para pensarmos que função do Direito é a realização da Justiça. E o que seria essa Justiça com que estamos comprometidos? (...) a justiça absoluta, abstrata, excelsa não existe. A justiça é alguma coisa que se constrói a cada instante e se desfaz, e se desconstitui, a cada instante. (...) A justiça material é algo relativo, historicamente construível e o que se impõe é a definição de uma regra para conceituação da justiça formal, enunciável como aquela que vincula a justiça a um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma. Desigualdades existirão sempre, discriminações serão inevitáveis, mas a regra da justiça formal, se inapta para eliminar desigualdades, ameniza-as, impondo sejam tratados igualmente quantos situados na mesma categoria essencial, vale dizer, naquela em razão da qual se fez a discriminação. (...) Não há como a gente ser justo em termos absolutos. Somos compelidos a desigualar, pelo que sempre haverá um fator discriminante. Fixá-lo é tarefa política. Destarte, o critério discriminador será sempre definido em benefício de algum setor hegemônico da sociedade. (...) Perelman disse isso de modo inteligente, filosófico, erudito, (...) Justiça é isso. Estabelece-se um discriminante e em função desse discriminante, civilizadamente, não posso discriminar. Porque discriminar, infelizmente, sempre discriminaremos. O que se veda é a discriminação de segundo grau. Não há como eliminar-se a discriminação de primeiro grau. Ainda não conseguimos construir a sociedade dos substancialmente iguais e estamos condenados a conviver com a desigualdade. (...) Ora, se é assim, se a justiça é sempre fruto de uma decisão política discriminatória, que não deve comportar, num Estado de Direito Democrático, uma discriminação de segundo grau, não há justiça absoluta. Quando alguém diz que algo "lhe repugna a consciência porque constitui uma injustiça", se com esse juízo se impõe uma perda ou um sacrifício, formula um juízo legítimo de justiça. Mas quando, em nome dessa moral subjetiva, que pretendemos vender como objetiva e absoluta, impomos sacrifícios e perdas aos outros, praticamos uma iniquidade. (...) Parece um caso patológico, mas não o é. Todo tratamento de exceção, em nome de uma justiça absoluta, segundo a consciência do julgador, ou segundo valores superiores, valores socialmente relevantes e outros dizeres similares, que equivalem a nada dizer, com que mascaramos nosso arbítrio e nossa subjetividade, quando não generalizáveis, configura prevaricação e se generalizados acarretarão disfuncionalidades de extrema gravidade, deslegitimadoras do que foi constitucionalmente formalizado como expressão da vontade geral e posto como expectativa compartilhável. Conseqüentemente, verificamos inexistir outra alternativa para a justiça realizável pelo Direito além de assegurar a efetividade da justiça formal, cujo conteúdo material se traduz no dar a cada um aquilo que a lei manda que seja dado, tratando igualmente situações idênticas, sem discriminação. E se o fator desigualizador, alicerce da justiça formal, nos causa repulsa, será mediante o processo político que as mudanças podem e devem ocorrer. Temos que aceitar a dura verdade de que, socialmente, pela via da tutela jurisdicional, não há outra justiça possível além da que o Direito positivado assegura, e ela se fundamenta, sempre, em uma discriminação original, ato de poder. Ser justo, portanto, como operador do Direito, é assegurar o respeito ao fator discriminante, tratando igualmente todos os que se situem na mesma categoria essencial, reservado para o embate político a tarefa da mudança de parâmetros. (...) Em nosso país, com que justiça está o Direito comprometido? Com aquela que, em termos de dever, é colocada por nosso ordenamento jurídico positivo, conjunto de normas produzidas segundo um processo constitucionalmente institucionalizado, formalizadoras do compromisso social de solução dos conflitos que ocorrerem na sociedade segundo o nelas prescrito. Se é isso o Direito e essa é a justiça que lhe é possível assegurar, inaceitável atribuir-selhe outra função além dessa. No Estado Democrático de Direito, o Direito é aquilo que é produzido segundo um processo constitucionalmente institucionalizado. Fora disso não há Direito. (...)Se pudermos reconhecer e aplicar como Direito o que não foi produzido segundo o procedimento constitucionalmente institucionalizado, que segurança teremos acerca do que seja ou não Direito, se vivemos em sociedades complexas, nas quais o pluralismo estende-se até à definição dos valores e em que as relações sociais cada vez mais se esgarçam e se despersonalizam? 

No meu realismo, é possível preservar a típica fraude de execução como prevista no art. 593, II, do CPC, admitindo a caracterização da fraude de execução na pendência de demanda nos precisos termos do art. 263 do CPC, pois, só assim haverá segurança jurídica e respeito à norma processual vigente.

Ainda, a típica fraude não perde sua característica ante as alterações ocorridas na norma processual, pois, após a citação, após a averbação da penhora, com maior razão e segurança a fraude de execução será decretada. 

Não obstante a evolução do direito processual, os princípios que regulam as relações jurídicas permaneceram intactos, razão pela qual, a razão primeira do instituto denominado fraude de execução, que é a segurança jurídica calcada no patrimônio do devedor que responde com todos os seus bens, presentes e futuros, não podendo aliena-los na presença de “demanda” (ação distribuída), capaz de reduzi-lo à insolvência - precisa ser privilegiada.   

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Sobre a autora
Marly Vieira de Camargo

Advogada inscrita na OAB/SP sob o nº.86.687, é bacharel em direito pela Universidade de Ribeirão Preto-SP., pós graduada em Direito Empresarial pela EPD - Escola Paulista de Direito, e em Processo Civil, pela Escola Paulista da Magistratura.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Orientador: Dr. João Batista Amorim de Vilhena Nunes

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