A desconsideração da pessoa jurídica de uma empresa em recuperação judicial

20/05/2014 às 10:04

Resumo:


  • A teoria da desconsideração da pessoa jurídica visa coibir fraudes sem comprometer a autonomia da empresa, responsabilizando seus sócios em casos de abuso da personalidade jurídica.

  • Após a vigência do Novo Código Civil, a desconsideração da personalidade jurídica tem sido aplicada em processos de execução, principalmente quando há dificuldade em localizar bens da empresa.

  • A aplicação da teoria é válida nos processos falimentares e de recuperação judicial, desde que preenchidos os requisitos legais do artigo 50 do Código Civil, garantindo o direito ao contraditório e à ampla defesa aos sócios afetados.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

É possível ser decretada a desconsideração da pessoa jurídica de uma empresa em recuperação judicial? É a questão debatida neste trabalho

A finalidade da teoria da desconsideração da pessoa jurídica é possibilitar a coibição de fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica, isto é, sem questionar a regra da separação de sua personalidade e seu patrimônio em relação a seus membros, conceito padrão adotado pela maioria dos doutrinadores.

Em outras palavras, a teoria tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, sem, todavia, deixar sem respaldo terceiros vítimas de fraude.

É nesta perspectiva, que com muita propriedade nos ensina o doutrinador Sílvio de Salvo Venosa, in verbis:

Assim, quando a pessoa jurídica, ou melhor, a personalidade jurídica for utilizada para fugir a suas finalidades, para lesar terceiros, deve ser desconsiderada, isto é, não deve ser levada em conta a personalidade técnica, não deve ser tomada em consideração sua existência, decidindo o julgador como se o ato ou negócio houvesse sido praticado pela pessoa natural (ou outra pessoa jurídica). Na realidade, nessas hipóteses, a pessoa natural procura um escudo de legitimidade na realidade técnica da pessoa jurídica, mas o ato é fraudulento e ilegítimo. Imputa-se a responsabilidade aos sócios e membros integrantes da pessoa jurídica que procuram burlar a lei ou lesar terceiros. Não se trata de considerar sistematicamente nula a pessoa jurídica, mas, em caso especifico e determinado, não a levar em consideração. Tal não implica, como regra geral, negar validade à existência da pessoa jurídica[1].

Cumpre observar que após a vigência do Novo Código Civil que regulamentou o instituto, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem sido aplicada nos processos de execução, sobretudo quando depara-se com qualquer dificuldade de localização de bens.

Muito se discute acerca da aplicabilidade do instituto porque há preocupação de se evitar a banalização do mesmo, havendo julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo cujo entendimento precípuo é que a mera insuficiência de bens não é motivo para a desconsideração da personalidade jurídica “considerando que percalços econômicos financeiros, mesmo que consequentes da incapacidade financeira, não bastam por si para atribuir responsabilidade patrimonial dos sócios”.

Aliado à essas argumentações, observa-se ainda ainda que, em casos de suspeita de fraude, como a mudança de endereço da empresa sem a comunicação dos cadastros oficiais (junta comercial e outros), indicando possível má-fé, será estabelecida a dissolução da sociedade empresarial na ação de execução.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento sobre a dissolução de empresas que deixam de funcionar em seus respectivos domicílios fiscais e não comunicam essa mudança de modo oficial, através da edição da Súmula 435, que versa que "Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução para o sócio-gerente".[2]

                                    

A despeito da aplicação da teoria de forma redundante nos processos de execução em geral, esta tem encontrado cabimento ainda  nos processos falimentares e recuperacionais, ressalvada a questão de que se exige de forma robusta a comprovação dos requisitos elencados no artigo 50 do Código Civil, que destaca que:

Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Menciona-se também o art. 28 do Código de Direito do Consumidor:

O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

É importante ressaltar também que garante-se ainda ao sócio atingido com a medida judicial o direito ao contraditório e ampla defesa.

Assim tem-se que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é aplicável no processo falimentar e de recuperação judicial, desde que preenchidos os requisitos legais do artigo 50 do Código Civil, podendo tal ato ser inclusive deferido de forma incidental no processo de falência e recuperação judicial mediante comprovação da confusão patrimonial ou desvido de finalidade, observados, ainda  os princípios constitucionais de devido processo legal, ampla defesa e contraditório.

Desta forma, percebe-se que a jurisprudência é assente, mesmo estando da empresa em recuperação judicial, sobre a possibilidade de desconsideração da pessoa jurídica da empresa e do direcionamento dos atos executórios contra seus sócios, como se observa a seguir:

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AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE EM RECUPERAÇÃO POR JUÍZO TRABALHISTA. CONSTRIÇÃO DE BENS DE SÓCIO E DE OUTRA SOCIEDADE DO MESMO GRUPO ECONÔMICO. PESSOAS NÃO ENVOLVIDAS NO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA NA ESPÉCIE. 1. Não configura conflito positivo de competência a apreensão, pela Justiça Especializada, por aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine), de bens de sócio da sociedade em recuperação ou de outra sociedade do mesmo grupo econômico, porquanto essas medidas não implicam a constrição de bens vinculados ao cumprimento do plano de reorganização da sociedade empresária, tampouco interferem em atos de competência do juízo da recuperação. Precedentes. 2. Os bens dos sócios ou de outras sociedades do mesmo grupo econômico da devedora não estão sob a tutela da recuperação judicial, a menos que haja decisão do Juízo da recuperação em sentido contrário. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.“ (AgRg no CC 121487 / MT <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:superior.tribunal.justica;secao.2:acordao;cc:2012-06-27;121487-1202937>. Ministro Relator RAUL ARAÚJO. Superior Tribunal de Justiça. 2ª Seção. Data Julgamento: 27/06/2012). (sem os grifos)

“PROCESSO CIVIL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA DO TRABALHO E JUSTIÇA CÍVEL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PENHORA ON-LINE. 1. O processamento de pedido de recuperação judicial não paralisa as reclamações trabalhistas ainda não julgadas. Entretanto, o deferimento de antecipação de tutela para pagamento de verbas incontroversas, com ordem de constrição de bens, consubstancia ato de execução. 2. A desconsideração da personalidade jurídica da empresa, contudo, pode ser decidida pela justiça do trabalho não obstante o pedido de recuperação judicial. Precedentes. 3. Conflito de competência não conhecido.” (Ministra Relatora NANCY ANDRIGHI. CC 108721 / DF <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:superior.tribunal.justica;secao.2:acordao;cc:2010-08-25;108721-1044975>. Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça. Data Julgamento: 25/08/2010). (com grifos acrescidos)

DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO. EXECUÇÃO. AGRAVO DE PETIÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA EXECUTADA E EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PENHORA DOS BENS DO SÓCIO. CABIMENTO. A fim de obstaculizar as atividades de subversão dos fins para os quais se instituiu a pessoa jurídica e, no propósito de fortalecer o próprio instituto, foi concebida a chamada teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Traduz-se na declaração de ineficácia da personalidade jurídica para certos efeitos, dentre eles, a possibilidade de que os bens dos seus sócios possam responder pelos seus débitos, conforme permissivo legal insculpido no artigo 28 do CDC e ainda no artigo 50 do Código Civil. Neste passo, a ocorrência de insuficiência de bens da pessoa jurídica para adimplir as dívidas contraídas provoca a inafastável desconsideração da personalidade jurídica, propiciando a invasão no patrimônio da pessoa física do titular, o qual responde pelas obrigações trabalhistas porquanto foi beneficiário da mão-de-obra do ex-empregado. O fato de a empresa executada se encontrar em recuperação judicial, não é empecilho para o descortinamento da personalidade jurídica, na medida em que os bens dos sócios da devedora não estão sob a tutela da recuperação judicial, a menos que haja decisão do Juízo da recuperação em sentido contrário. Não havendo bens da empresa, tem-se por válida a constrição realizada sobre bem de propriedade de sócio, porquanto este permanece responsável pelos débitos contraídos pela empresa da qual é sócio. Agravo provido. (MINISTRA RELATORA Desª VIRGÍNIA MALTA CANAVARRO. Terceira Turma)

Portanto, como acima descrito, a desconsideração da pessoa jurídica é medida legal e eficaz tanto a luz da doutrina, da legalidade e da jurisprudência, como forma de  objetivar prestação jurisdicional, de fato, efetiva visando a quitação do débito da empresa com seu consumidor, com fundamentação em preceptivos legais (art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e do art. 50 do CC/02).

REFERÊNCIAS

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. 4. ed. I vol. Parte Geral. Atlas. São Paulo. 2004;

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 435. Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução para o sócio-gerente. Disponível em < http://www.dji.com.br/normas_inferiores/regimento_interno_e_sumula_stj/stj__0435.htm> Acesso em 30out2013.


[1] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. 4. ed. I vol. Parte Geral. Atlas. São Paulo. 2004, p. 309.

[2] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 435. Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução para o sócio-gerente. Disponível em < http://www.dji.com.br/normas_inferiores/regimento_interno_e_sumula_stj/stj__0435.htm> Acesso em 30out2013.

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Sobre a autora
Renata Neves de Jesus

Graduada em Direito pela Universidade da Amazônia/PA<br>Advogada.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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