2. EFEITOS JURÍDICOS DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
2.1 Qualidade de filho socioafetivo e reconhecimento da filiação
Absolutamente nada difere um filho biologicamente legítimo do reconhecido sobre o manto da afetividade. A premissa aqui lançada não se basta somente na visão constitucional, do Direito Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente fincadas na igualdade declinada mais acima no presente trabalho. A igualdade entre os filhos é uma questão de igual afeto. Ou seja, a filiação, seja ela qual for, quando demonstrada, não demanda qualquer diferença por conta da carga de afeto inserida naquele filho. O afeto é tamanho que não guarda graduações.
A despeito da construção legal, natural e racional acerca da igualdade entre os filhos, várias circunstâncias jurídicas precisam ser relevadas conquanto à filiação socioafetiva e seus efeitos.
Uma das mais importantes relaciona-se à possibilidade do reconhecimento judicial desta modalidade de filiação, em detrimento da investigação genética, já reconhecida e aplicada largamente. Aliás, é bom frisar que qualquer modelo de reconhecimento da filiação no ordenamento jurídico pátrio é aceito.
Nos idos do Código Civil de 1916, o artigo 363[18] daquele diploma descrevia de maneira taxativa os modelos e possibilidades de investigação e posterior reconhecimento da filiação, de modo que situações concretas, que certamente haveriam àquela época, não enquadradas no diploma legal caíram numa lacuna legal sem solução. Contudo, com o advento da Constituição Federal de 1.988, enraizada na igualdade substancial, solidariedade e na dignidade da pessoa humana, o referido elemento legal tornou-se letra morta, dando passo a uma situação aberta e plural de reconhecimento da filiação. Dando complemento ao que se aduz:
O que se investiga, portanto, é o estado de filiação, que pode ter sido determinado por diferentes razões e fundamentos. Isto é, o estado filiatório pode decorrer de um vínculo genético, ou não. Inexiste, pois, primazia ao laço biológico, em prejuízo da afetividade. Somente no caso concreto, consideradas as peculiaridades e circunstâncias de cada litígio, e que será possível determinar o vincula que prepondera. (DE FARIAS, 2013. p. 724).
E arremata a doutrina:
Nessa nova arquitetura, considerada a amplitude (decorrente da inadmissibilidade de limitação ai exercício do estado filiatório) de fundamentos para a propositura da ação investigatória, tem-se, pois, como certa e incontroversa a possibilidade de invocar a socioafetividade como causa de pedir do pedido de investigação de paternidade ou maternidade.
É dizer: é possível a propositura de uma ação de investigação de parentalidade socioafetiva. (Op. cit. p. 724/5).
Diante deste contexto, surge o conceito de “adoção à brasileira” como um dos permissivos da ação acima declinada (reconhecimento da filiação socioafetiva)[19]. Conforme sabido e consabido, a adoção à brasileira consiste numa adoção sem o atendimento dos requisitos legais, fulcrada, especialmente, na manutenção duradoura de um vinculo de filiação, consubstanciada com intenso afeto e sem a presença das formalidades necessárias à adoção.
Assim sendo, o registro da filiação é dado sem o procedimento judicial necessário, sendo passível de incorrer em crime, como abaixo será salientado.
No entanto, não se despreza a possibilidade, em circunstâncias especiais devidamente fundamentadas, do reconhecimento da filiação socioafetiva ante a denominada “adoção à brasileira”. Com efeito, já oportunizou a jurisprudência:
Ementa: PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE MATERNIDADE E ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. CRIANÇA ENTREGUE PELO COMPANHEIRO DA GENITORA AOS TIOS AVÓS QUE PASSARAM A DETER A GUARDA DA INFANTE. VÍNCULO SOCIOAFETIVO. DESCABIMENTO. 1. Descabe desconstituir o registro civil, quando a mãe, que reclama a maternidade, abandonou a filha ainda pequena há mais de dez anos, deixando-a aos cuidados do ex-companheiro, que a entregou ao casal que acolheu a criança e promoveu adoção à brasileira, formalizando o registro civil e tratando-a com zelo e afeto, assegurando-lhe o pleno atendimento de todas as suas necessidades, já estando a infante plenamente adaptada ao ambiente familiar, onde vive há dez anos e é tratada como filha. 2. Deve sempre prevalecer o interesse da criança acima de todos os demais interesses, e, no caso em tela, os elementos de convicção existentes nos autos são eloqüentes em apontar a conveniência da manutenção do registro civil, já que os pais adotivos foram os que registraram a criança, pois ela não possuía sequer registro civil aos dois anos de idade e havia necessitando dessa providência para poderem inclusive levá-la ao médico. Recurso desprovido[20].
Deve-se levar em conta, ainda, uma premissa estabelecida no Estatuto da Criança e Adolescente, qual seja, o melhor interesse da criança/adolescente no caso concreto. Ainda que o ordenamento jurídico possa levantar dúvidas na análise do caso concreto, o Magistrado, usando de sua liberdade de convicção e lançando mão, quando possível, da oitiva da criança ou adolescente envolvido, tal como disposto no artigo 28, § 1º[21], do ECA, tem um grande seio de fundamentação para legitimar a formalmente ilegal “adoção à brasileira”.
Na premissa que se apresenta, interessante compulsar a decisão do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema relacionado à adoção formalmente legítima e o melhor interesse da criança, decisão esta publicada no Informativo Semanal de Jurisprudência nº 427, contendo resumo de julgados entre a data de 15 a 19 de março de 2010:
ADOÇÃO. CADASTRO.
A Turma decidiu que, para fins de adoção, a exigência de cadastro (art. 5º do ECA) admite exceção quando for de melhor interesse da criança. No caso, há verossímil vínculo afetivo incontornável pelo convívio diário da criança com o casal adotante, que assumiu a guarda provisória desde os primeiros meses de vida, de forma ininterrupta, por força de decisão judicial. Precedente citado: REsp 837.324-RS, DJ 31/10/2007. REsp 1.172.067-MG, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 18/3/2010.
Entretanto a análise deve ser tecida com seriedade e à luz de provas convincentes, sob pena do fomento do tráfico de crianças, na medida em que a despeito dos regramentos legais, possam as “crianças desaparecidas” serem adotadas por aqueles que as previamente encomendarem, sobretudo quando ainda sem consciência do que ocorre ao redor delas.
Uma vez, portanto, consubstanciada judicialmente a filiação socioafetiva, os efeitos decorrentes dela são os mesmos de qualquer outra forma de reconhecimento da filiação, especialmente diante da biológica.
Deste modo, direitos sucessórios, alimentícios, de alteração do nome, de guarda, zelo, criação, educação, trato, entre outros estabelecem-se inatos, da mesma forma que a irrevogabilidade da filiação socioafetiva.
Conquanto à irrevogabilidade, esta, ao que parece, não admite qualquer ressalva. Seria temerário sobremaneira admitir que num certo momento da vida, nutrido por intensa felicidade e amplo afeto se reconhecesse a filiação socioafetiva e noutro, gerado por qualquer desentendimento, se negasse tal situação perante o Poder Judiciário. O estabelecimento de afeto filial é figura perene que não pode admitir arrependimentos.
Saliente-se que a doutrina vem entendendo, acerca deste assunto, que nem mesmo em situações embasadas no melhor interesse da criança admite-se o rompimento da paternidade socioafetiva, como se pode entender do Enunciado nº 339, aprovado na IV Jornada de Direito Civil: “a paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho”.
Diga-se, ainda, que a própria filiação biológica é, em regra, irrenunciável, tal como dispõe os artigos 1.609 e 1.610, do Código Civil[22], o que se estende, com mais vigor ainda, como frisado ao norte, para a filiação socioafetiva, haja vista que fincada em questões não científicas, mas nutridas por intenso calor humano e amor. No tocante ao efeito do reconhecimento, valem as considerações abaixo:
O reconhecimento voluntário da paternidade independe de prova da origem genética. É ato espontâneo, solene, público e incondicional. Como gera o estado de filiação é irretratável e indisponível. Não pode estar sujeito a termo, sendo descabido o estabelecimento de qualquer condição (CC 1.613). É ato livre, pessoal, irrevogável e de eficácia erga omnes. Não é um negócio jurídico, é um ato jurídico stricto sensu. Assim, inadmissível arrependimento. Não pode, ainda, ser impugnado, a não ser na hipótese de erro ou falsidade do registro. O pai é livre para manifestar sua vontade, mas seus efeitos são os estabelecidos em lei. (DIAS, 2013. p. 388).
A despeito de ser peremptória a colocação da doutrina supra no sentido da impossibilidade de revogação do reconhecimento voluntário de paternidade, a jurisprudência vem admitindo o manejo de ação negatória de paternidade quando evidenciado algum vício de consentimento ou erro inescusável, como se observa abaixo:
Ementa: NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. INDEFERIMENTO DA INICIAL. SENTENÇA QUE EXTINGUIU O PROCESSO. RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO. INTERESSE DE AGIR DO AUTOR. Reconhecimento voluntário de paternidade. O autor alegou que tomou conhecimento de que a mãe da criança manteve outro relacionamento na época da concepção e que a ré não é sua filha. Quadro dos autos indicativo de reconhecimento de paternidade por erro. Possibilidade de pedir a anulação do reconhecimento por vício de consentimento. Interesse de agir presente. Sentença anulada. Recurso provido[23].
Entretanto, volte-se a dizer, a premissa parece não se aplicar no reconhecimento da filiação socioafetiva, haja vista que se tem, de antemão, ciência plena da inexistência de qualquer vínculo biológico. Havendo apenas, pensa-se, a possibilidade, ainda que remota, de alegação de coação moral irresistível no ato de propositura da ação com vistas à filiação socioafetiva e seu consequente reconhecimento.
2.2 Conhecimento da origem biológica
O Estatuto da Criança e do Adolescente em nos termos do artigo 48, com a redação dada pela Lei Ordinária Federal 12.010, de 13 de agosto de 2009, dispõe que “o adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos”.
Igual direito deve ser dado ao reconhecido por meio da afetividade. Isso porque, além da igualdade que alberga os critérios de filiação, o direito à origem, seja ela qual for, não pode ser renegado.
Não se está aqui, obviamente, declinando fundamento com vistas à retomada do vínculo biológico, situação impossível juridicamente. Está-se, tão somente, tutelando o direito de reconhecimento de sua origem histórica, situação que poderá descortinar realidades até então desconhecidas e enriquecer a vida daquele que tem sua filiação fulcrada unicamente no afeto.
Importa considerar, outrossim, que os efeitos do reconhecimento da filiação socioafetiva, no mundo jurídico, são os mesmos alavancados na adoção, motivo pelo qual o direito ao conhecimento da origem é situação inata à filiação. No entanto, como enfocado pelo aresto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mais uma vez, ele o desvendo da origem biológico não pode ter repercussões em outras esferas do Direito, tais como no registro da filiação, hereditário, alimentares, entre outros.
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. CONFIGURAÇÃO DO VÍNCULO BIOLÓGICO. ALTERAÇÃO DO REGISTRO CIVIL. IMPOSSIBILIDADE. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA CONFIGURADA PELA ADOÇÃO PROMOVIDA PELOS PAIS REGISTRAIS HÁ MAIS DE 30 ANOS. IRREVOGABILIDADE, 1. Assegurado o direito de investigar sua origem biológica e constatado o vínculo genético com o investigado, é parcialmente procedente a pretensão do autor, na medida em que o reconhecimento de paternidade não pode ter repercussões na esfera registral nem patrimonial, uma vez que encontra óbice na relação de filiação socioafetiva estabelecida pela adoção empreendida pelos pais registrais, que é irrevogável, e consolidada ao longo de 30 anos de posse de estado de filho. 2. Assim, dá-se provimento aos recursos dos herdeiros do investigado, afastando a possibilidade de alteração no registro civil e qualquer repercussão patrimonial decorrente da investigatória. DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME[24].
2.3 Filiação socioafetiva e o tipo do artigo 242 do Código Penal
Dispõe o artigo 242 do Código Penal:
Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.
Parágrafo único - Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza:
Pena - detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena.
Em vista da segunda figura do artigo em tela, disserta a doutrina:
O núcleo é registrar, que tem a significação de declarar o nascimento, promover sua inscrição no registro civil. Pune-se a ação de registrar como seu o filho de outrem. Ou seja, o agente declara-se pai ou mãe de determinada criança que, na verdade, não é seu filho, mas de terceira pessoa. Ao contrário do que ocorre na primeira figura, aqui o nascimento é real, a criança registrada existe, porém sua filiação é diversa da declarada. Trata-se da chamada adoção à brasileira mediante a qual muitos casais, em vez de adotar regularmente uma criança (com devida intervenção do Poder Judiciário), preferem registrá-la como própria. (DELMANTO, 2010. p. 740).
Durante o trabalho foi frisado que há a possibilidade de reconhecimento da filiação socioafetiva por meio da “adoção à brasileira”, havendo, inclusive, jurisprudência neste sentido. Contudo, a adoção de tal procedimento leva, inequivocamente, à luz do Direito Penal formal, à tipificação do crime previsto no artigo 242 do Código Penal.
Tem-se, claramente, uma colisão de valores tutelados pelo ordenamento jurídico, ainda que de forma implícita. De um lado, a possibilidade de estabelecimento, guardadas as peculiaridades do caso concreto, da filiação socioafetiva, fruto de forte vínculo emotivo e geradora de acerto e pacificação social. De outro lado, coloca-se a sociedade, os registros públicos e a filiação biológica como vítimas do crime descrito no artigo em comento.
A resolução de embates legais, ainda que se considere o sistema jurídico como um bloco fechado e coerente entre si, deve ser feita à luz do caso concreto e com parâmetros abstratos, devendo-se, sempre quando possível, buscar algum denominador constitucional para a solução do caso.
Com fulcro em tanto, pensa-se, o próprio parágrafo único do artigo 242 do Código Penal deixa aberta a possibilidade de o Magistrado deixar de aplicar a pena em considerando que o motivo pelo qual o registro foi manejado é nobre. A nobreza, como motivo e fundamento do perdão judicial, sem qualquer sombra de dúvidas, tem relação com o afeto.
O ato de registrar um filho, mesmo tendo ciência inequívoca de que não se guarda qualquer vínculo biológico com ele é medida, em regra[25], consubstanciada de intensa carga afetiva e, por conta disso, inequivocamente nobre.
Não se pode distanciar o entendimento atual do Direito Penal, repressivo, dos princípios constitucionais tais como a solidariedade e dignidade da pessoa humana, que, para além de fomentar a afetividade como elemento indissociável e primeiro do Direito de Família, informar o ordenamento jurídico em sua integralidade.
Há de se estabelecer, outrossim, que teorias do próprio Direito Penal, às quais não cabem a discussão no presente trabalho, podem fortalecer a impossibilidade de aplicação da pena, como a tipicidade conglobante, o funcionalismo penal, dentre outros.
Não se quer estabelecer e fincar aqui a ideia de que lançando mão da afetividade tem-se uma carta branca ao cometimento de crime. Quer-se, tão somente, pontuar a ideia de que a afetividade é elemento robusto, apto a derrogar, no caso concreto, a aplicação da lei penal pura e simplesmente. O afeto, como elemento modificador do contexto social, pois modificou a família, que é base da sociedade, não pode deixar de influenciar sobremaneira no direito como um todo, inclusive no Direito Penal.
Diante do raciocínio que aqui se apresenta, ligando o perdão judicial ao afeto, tem-se abaixo:
Ementa: PARTO SUPOSTO. ARTIGO 242 DO CÓDIGO PENAL. ADOÇÃO À BRASILEIRA. PERDÃO JUDICIAL CONCEDIDO. SENTENÇA MANTIDA. Mãe do menor é prostituta e diante da impossibilidade de criar adequadamente o recém nascido o entregou aos réus. Para adequarem a realidade à certidão de nascimento, os réus se declararam pais do nascituro e lograram êxito em registrá-lo. Sentença concessiva de perdão judicial mantida. APELO NÃO PROVIDO[26].
Não há nada mais nobre que o afeto, que o amor. São sentimentos que fundamentam e dão todo significado à filiação, não devendo, portanto, sofrerem qualquer abrandamento, ainda que legal.