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A impossibilidade da penhora do capital de giro

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01/04/2002 às 00:00
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5. A IMPOSSIBILIDADE DA PENHORA DO CAPITAL DE GIRO

Quando se tem uma coisa complexa, isto é, formada pela integração de vários elementos, sendo impossível a eliminação de qualquer um deles, sob pena de perda de substância, diz-se que cada um desses elementos configura parte integrante da coisa.

A parte integrante é mais do que o acessório, já que este pode, às vezes, ser destacado da coisa principal, sem que esta perca sua substância, tal como se dá com os frutos e rendimentos. Com relação à coisa composta, as partes que a integram não podem ser destacadas, porque isto desconfiguraria a própria coisa. Caio Mário da Silva Pereira ensina, nessa ordem de idéias, que "as partes integrantes de uma coisa composta são aquelas que se acham em conexão corporal com ela, erigindo-se em complemento da própria coisa, participando de sua natureza" e que por isso devem seguir a sorte desta (Instituição de Direito Civil, 18ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1996, vol. I, nº 75, . 275).

Vicente Ráo observa que as partes integrantes são as "que por sua natural conexão com a coisa principal com esta formam um só todo e são desprovidas de existência material própria", e, ainda, as que "a coisa principal por tal modo estão unidas que, dela separadas, esta ficaria incompleta". Entre elas, o civilista inclui "certas partes de um organismo vivo, ou as coisas artificiais como os edifícios em relação ao solo" (O Direito e a Vida dos Direitos, São Paulo, Max Limonad, 1960, vol. II, nº 195; Silvio Rodrigues, Direito Civil, 25ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 1995, vol. I, p. 133, na nota nº 99).

Porque não se pode tratar, juridicamente, a parte integrante como objeto de direito distinto da coisa complexa, o art. 649, nº VIII, do CPC considera absolutamente impenhoráveis "os materiais necessários para obras em andamento". Somente poderão ser constritos se a construção (coisa complexa) for integralmente penhorada.

Esse mesmo raciocínio prevalece para o capital de giro no caso da empresa mercantil. Sem este, aquela perde parte substancial de sua complexidade econômica. Logo, para não ser a empresa desnaturada ou destruída, o gravame não pode restringir-se àquela parte integrante do ente complexo que é a empresa economicamente estruturada. Ou o gravame atinge o todo, ou o capital de giro fica imune à penhora, de forma isolada.

Pensar-se em penhora apenas do capital de giro seria o mesmo que admitir-se a penhora da casa (parte integrante do terreno edificado) ou do motor ou dos pneus do veículo (partes integrantes do automóvel).

É uma imposição natural e lógica: a parte integrante devendo seguir sempre o destino da coisa complexa, não poderá ser atingida por penhora separadamente.

Sendo, outrossim, o capital de giro parte essencial da empresa econômica, que, por isso mesmo não pode ser tratado, para efeito de penhora, como uma unidade autônoma dentro do patrimônio da entidade executada, resta conceituar o que se entende, tecnicamente, por semelhante parte integrante.

Em termos de administração financeira, o capital de giro consiste no ativo corrente da empresa, que tem como componentes os títulos "caixa", "títulos negociáveis", "valores a receber" e "estoques" (Enciclopédia Saraiva de Direito, verbete "Capital de giro", vol. 13, p. 94). O líquido dessas contas forma, para a ciência contábil, o capital de giro da empresa.

No ensinamento de Richard T. Cherry, "o conceito de capital de giro como ativo corrente visa diretamente ao ciclo recorrente da caixa ao estoque, do estoque às contas a receber e de volta à caixa. Na seqüência convencional do fluxo, os recursos financeiros aparecem primeiro como caixa disponível. A caixa é usada para adquirir estoque, o qual é processado e colocado à venda; à medida que o estoque é vendido, os recursos financeiros fluem para contas a receber, para manter o crédito dos clientes, e finalmente volta para a caixa, conforme as contas são cobradas" (Introdução à Administração Financeira, São Paulo, Atlas, 1975, apud Enciclopédia Saraiva de Direito, verbete cit., p. 95).

Semelhante é a lição de Dávio A. Prado Zarzana, para quem "o capital de giro é o elemento integrante do patrimônio da empresa ou entidade correspondente, em valor, a parcela do capital aplicada no Ativo Circulante. Tal seria o Capital de Giro Global que está ‘girando’, seguindo o fluxo (disponibilidades - produção - estoques - contas a receber- disponibilidades)" (Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 13, verbete "Capital de giro tributário" p. 96).

Inviável, destarte, se revela a penhora de "contas a receber" dentro do ativo circulante de uma empresa. Ditas contas são partes integrantes do capital de giro, do qual a entidade não pode ser privada, sem sofrer profundo abalo no fluxo da circulação econômica que a mantém ativa.

Atingi-la nesse ponto vital importa decretar-lhe a imediata paralisia. Se não contar com os créditos a receber, como a empresa custeará o funcionamento de suas atividades? Como resgatará os compromissos trabalhistas e tributários? Como alimentará de matéria prima sua linha de produção? A insolvência e a quebra serão o seu fim imediato e irremediável.

É bom de ver que o estrangulamento e a extinção das empresas não são o desiderato da sociedade contemporânea nem, muito menos, o objetivo o processo de execução, cujo desenvolvimento, ao contrário, a lei manda subordinar-se ao princípio fundamental da menor onerosidade possível para o executado (CPC, art. 620).

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Mesmo quando, em casos extremos, se chega a admitir a penhora e o usufruto judicial de toda a empresa, não permite a lei processual, que o credor, ou o juízo, se apodere sumariamente de todo o seu faturamento ou de todo o seu capital de giro. Muito pelo contrário, o que impõe o Código é o estabelecimento de um plano de administração e de um esquema de pagamento, dentro das disponibilidades das receitas e do fluxo econômico da empresa (CPC, arts. 677, 678 e 716 a 720).

Sem, portanto, o gravame por inteiro da empresa, impenhorável se mostra o capital de giro, quer como disponibilidade de caixa, quer como título ou créditos a receber da clientela.

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Sobre o autor
Humberto Theodoro Júnior

professor titular de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, doutor em Direito, advogado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

THEODORO JÚNIOR, Humberto. A impossibilidade da penhora do capital de giro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2925. Acesso em: 26 abr. 2024.

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