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A esquizofrenia da Constituição Federal de 1988 e a fragilidade do sistema sindical pátrio

31/08/2014 às 16:22
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A fragilidade do sistema sindical brasileiro, que se reflete na atuação débil de suas organizações e na desconexão com os anseios de seus representados, deve-se, em boa medida, às incongruências de sua estrutura constitucional.

INTRODUÇÃO

O recrudescimento das tensões sociais, com o aumento exponencial de greves, sobretudo em serviços considerados de utilidade pública, como por exemplo, em sistemas de transportes públicos urbanos, tem prejudicado diretamente boa parcela dos cidadãos e, indiretamente, praticamente todos os moradores das grandes e médias cidades brasileiras.

Sem sombra de dúvidas, o direito à greve é constitucionalmente assegurado, consistindo em importante instrumento de exercício direto de coerção pelos trabalhadores e aceito pelo Ordenamento Jurídico. Entretanto, a atual onda de movimentos paredistas, tem chamado atenção para a pouca ou nenhuma atuação das entidades sindicais. Tais entes não têm desempenhado, como desejável, o papel de protagonistas na construção das soluções às paralisações generalizadas.

Parcela dessa atuação apequenada se deve à perda de legitimidade por que vêm passando as representações obreiras.

Por óbvio que a realidade constatada não pode ser atribuída a um único fator. As causas para a fragilidade das atuações sindicais situam-se, a bem da verdade, muito mais nas inconsistências do próprio sistema sindical do que em situações pontuais vivenciadas por este ou aquele sindicato.

A evolução sindical no Brasil, além dos naturais avanços e recuos comuns a qualquer processo de amadurecimento, apresenta características peculiares que tornam o aperfeiçoamento do sistema sindical pátrio algo controverso e complexo.

A convivência de institutos que representam ideias diametralmente opostas e, muitas das vezes, inconciliáveis, se dá, inclusive, no seio da Lei Magna.


AS CONTRADIÇÕES DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A FRAGILIDADE DO SISTEMA SINDICAL PÁTRIO

Conforme afirmado, o sistema sindical brasileiro é marcado por contradições que dificultam, sobremaneira, a sua expansão e o seu aperfeiçoamento. Curiosamente, a Constituição Federal de 1988, a despeito de sua inconteste vocação democrática, ao tratar dos princípios, organização e funcionamento do sistema sindical, por vezes é vacilante.

A Lei Maior manteve inalterados alguns dos sustentáculos do ultrapassado sistema corporativista. Dispositivos dignos de Cartas de períodos marcadamente antidemocráticos.

De um lado, tem-se no corpo constitucional previsões que refletem o que há de mais moderno em termos de garantias e prerrogativas dos entes sindicais, tais como: a) vedação de que lei exija a autorização do Estado para a criação de sindicatos (art. 8º, I, CF/88); b) proibição de interferências e intervenções do Poder Público na organização sindical (art. 8º, I, in fine, CF/88); c) obrigatoriedade da participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho (art. 8º, VI, CF/88); d) garantia provisória do dirigente sindical (art. 8º, VIII, CF/88).

De outro, a manutenção de contradições antidemocráticas, as quais, por vezes, findam por sabotar o florescimento do sistema sindical nacional: a) unicidade sindical (art. 8º, II, CF/88); b) imposto sindical (art. 8º, IV, in fine, CF/88); c) poder normativo da justiça do trabalho (art. 114, § 2º, CF/88).


VEDAÇÃO DE QUE LEI EXIJA A AUTORIZAÇÃO DO ESTADO PARA A CRIAÇÃO DE SINDICATOS (Art. 8º, I, CF/88)

Por muito tempo o Estado controlou com pulso forte a criação de entes sindicais. É compreensível o temor demonstrado pelos governantes com a reunião dos obreiros em torno de uma organização que lhes passaria a emprestar natureza jurídica de ser coletivo, propiciando, pelo menos em tese, o surgimento da igualdade material nas relações travadas entre os detentores dos meios de produção e os operários.

Era necessária uma vigilância estatal eficaz, inclusive no que se refere à criação dessas novas agremiações.

Portanto, a fim de estabelecer um mínimo de independência aos entes sindicais, a Constituição Federal vedou a existência de lei que, de alguma forma, previsse a necessidade de autorização do Estado para a criação de sindicatos.

Dessa forma, buscou-se garantir o livre desígnio dos indivíduos na criação de sindicatos, retirando, assim, qualquer influência estatal no momento prévio ao surgimento do ente coletivo.


UNICIDADE SINDICAL (Art. 8º, II, CF/88)

“II – é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município;”

A unicidade sindical representa uma exclusividade imposta pela norma. Em outros termos, de acordo com a unicidade, apenas um e somente um sindicato poderá, em determinada base territorial, representar categoria profissional ou econômica.

A respeito da denominada unicidade sindical, interessante o que diz Maurício Godinho Delgado[1]:

“A unicidade corresponde à previsão normativa obrigatória de existência de um único sindicato representativo dos correspondentes obreiros, seja por empresa, seja por profissão, seja por categoria profissional. Trata-se da definição legal imperativa do tipo de sindicato passível de organização na sociedade, vedando-se a existência de entidades sindicais concorrentes ou de outros tipos sindicais. É, em síntese, o sistema de sindicato único, com monopólio de representação sindical dos sujeitos trabalhistas

No Brasil vigora, desde a década de 1930, inclusive após a Constituição de 1988, o sistema de unicidade sindical, sindicato único por força de norma jurídica – respeitado o critério organizativo da categoria profissional, como visto.

O sistema da liberdade sindical, seja com pluralismo, seja com unidade prática de sindicatos, prepondera na maioria dos países ocidentais desenvolvidos (França, Inglaterra, Alemanha, EUA, etc.). Nos países em que há unidade prática de sindicatos (caso da Alemanha), ela resulta da experiência histórica do sindicalismo, e não de determinação legal. Esse sistema de liberdade sindical plena encontra-se propugnado pela Convenção 87 da OIT, de 1948, ainda não subscrita pelo Brasil.

É necessário, porém, distinguir-se entre unicidade e unidade sindicais. A primeira expressão (unicidade) traduz o sistema pelo qual a lei impõe a presença na sociedade do sindicato único. A segunda expressão (unidade) traduz a estruturação ou operação unitárias dos sindicatos, em sua prática, fruto de sua maturidade, e não de imposição legal.

Isso significa que o sistema de liberdade sindical plena (Convenção 87, OIT, por exemplo) não sustenta que a lei deva impor a pluralidade sindical. De modo algum: ele sustenta, apenas, que não cabe à lei regular a estruturação e organização internas aos sindicatos, cabendo a estes eleger, sozinhos, a melhor forma de se instituírem (podendo, em consequência, firmar a unidade organizacional e prática, como já mencionado). (grifos acrescidos)

Portanto, a unicidade sindical, ao contrário da vedação de que lei exija a autorização do Estado para a criação de sindicatos, consiste em uma faceta antidemocrática da Constituição de 1988, na medida em que impõe uma espécie de “reserva de mercado” a um determinado sindicato. Em outras palavras, há uma determinação normativa para que um único ente sindical, em área territorial definida, atue com monopólio na representação de respectiva categoria profissional ou econômica.

A história tem demonstrado que toda e qualquer espécie de limitação de competição acaba, mais cedo ou mais tarde, afigurando-se infrutífera e prejudicial. Com a representação sindical não é diferente.


PROIBIÇÃO DE INTERFERÊNCIAS E INTERVENÇÕES DO PODER PÚBLICO NA ORGANIZAÇÃO SINDICAL (Art. 8º, I, in fine, CF/88)

Trata-se de outro exemplo de avanço da Constituição Federal. Na verdade, tal garantia deve ser tomada em conjunto com a vedação de que a lei exija a autorização do Estado para a criação de sindicatos. Ambas têm por objetivo garantir a atuação independente dos entes integrantes da estrutura sindical, daí a necessidade de serem combinadas entre si.

Enquanto a proibição de exigência de autorização do Estado para a criação de sindicatos destina-se à uma fase preliminar à própria criação e funcionamento do ente sindical, a vedação de interferências e intervenções na organização sindical por parte do Poder Público, tem por objeto tutelar a fase posterior, ou seja, visa a garantir um funcionamento imune à eventuais investidas do Estado.


IMPOSTO SINDICAL (Art. 8º, IV, in fine, CF/88)

Aqui, mais uma vez, a Lei Magna deixa aflorar sua esquizofrenia no trato do sistema sindical.

Se por um lado, tem o cuidado de garantir uma atuação sindical independente e livre de interferências estatais. Por outro, fomenta um ambiente vulnerável às disputas mesquinhas e descompromissadas com o interesse das bases representadas.

Ao garantir uma receita independentemente da eficiência, compromisso e legitimidade do ente sindical, o Ordenamento Jurídico acaba por propiciar o surgimento desenfreado de novos sindicatos, cada vez mais fragmentados e enfraquecidos, e interessados, tão somente, em amealhar uma fatia dos vultosos recursos oriundos do imposto sindical, que, dado ser um tributo, é cobrado compulsoriamente dos sujeitos passivos da relação.

Acaso inexistisse o imposto sindical, ou qualquer outra fonte de recursos, garantida independentemente da qualidade da representação, provavelmente os sindicatos passariam a perseguir uma maior eficiência, a fim de assegurar a permanência de seus sindicalizados e o ingresso de novos.


OBRIGATORIEDADE DA PARTICIPAÇÃO DOS SINDICATOS NAS NEGOCIAÇÕES COLETIVAS DE TRABALHO (Art. 8º, VI, CF/88)

Com tal disposição, a Constituição Federal buscou ampliar a participação direta dos sujeitos na produção das normas que regerão suas relações.

Reflete a busca por uma maior produção de normas autônomas e uma consequente diminuição da interferência estatal por meio de suas normas heterônomas.

Mais uma vez, a Lei Maior avança no que diz respeito à tentativa de fomentar um cenário democrático, posto que busca propiciar a participação dos sujeitos envolvidos na produção das normas que lhes serão aplicáveis.

A obrigatoriedade da participação dos sindicatos nas negociações coletivas consiste na tentativa de alçar os entes sindicais ao papel de protagonistas. Busca-se diminuir a imposição de normas estranhas às negociações entabuladas entre os sujeitos econômicos e profissionais.

Dessa forma, tenta-se resguardar, da interferência estatal, o equilíbrio e a lógica negociativa alcançadas nas tratativas, onde invariavelmente ocorrem transações de direitos e interesses.


PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO (Art. 114, § 2º, CF/88)

O denominado Poder Normativo da Justiça do Trabalho, o qual se exterioriza por meio das sentenças normativas, trata-se de singularidade do Direito do Trabalho.

Consiste na possibilidade de imposição, pela Justiça do Trabalho, de normas gerais, abstratas, impessoais e obrigatórias, caracterizando exercício de função típica do Poder Legislativo.

Observe-se que a existência do Poder Normativo da Justiça do Trabalho vai de encontro a uma busca por maior produção de normas autônomas, com a participação dos sujeitos diretamente interessados.

Nesse ponto, pode-se dizer que haveria mais uma indefinição de qual rumo tomar, por parte da Constituição Federal de 1988.

A fim de sanar a indecisão acima apontada, o legislador constituinte derivado, por meio da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, alterou o § 2º do artigo 114 da Constituição.

Segundo a atual redação do dispositivo aludido, tem-se que:

“§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. ”.     (grifos nossos)

Evidentemente a alteração em comento significou um avanço, haja vista que acabou por prever requisitos indispensáveis ao ajuizamento do dissídio coletivo.

Segundo a previsão constitucional, deve-se tentar, primeiramente, a solução do conflito por meio da negociação coletiva ou arbitragem, hipóteses de autocomposição. Somente restando frustradas as tentativas mencionadas, é que as partes, de comum acordo, poderão ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica.

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Entretanto, não se pode deixar de mencionar que, mesmo no seio de uma alteração que buscou realinhar a Constituição ao seu espírito democrático, a idiossincrasia permaneceu presente. De um lado tentou-se restringir a manifestação do Poder Normativo da Justiça do Trabalho, dando espaço à produção autônoma de normas, por outro lado a sentença normativa continua prevista e, consequentemente o Poder Normativo da Justiça Laboral com todas as implicações já comentadas.


GARANTIA PROVISÓRIA DO DIRIGENTE SINDICAL (Art. 8º, VIII, CF/88)

Ora, a busca pela independência da atuação dos entes sindicais estaria gravemente comprometida, caso inexistente a garantia provisória do dirigente sindical.

Segundo o inciso VIII do artigo 8º da Constituição de 1988, é vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei.

Registre-se que a garantia referenciada vincula-se estritamente ao desempenho da função, sendo de forma alguma uma vantagem pessoal do dirigente sindical. É o que se depreende da Súmula de Jurisprudência Uniforme nº 369[2] do Egrégio Tribunal Superior do Trabalho:

Súmula nº 369 do TST

 DIRIGENTE SINDICAL. ESTABILIDADE PROVISÓRIA (redação do item I alterada na sessão do Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) -Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012

I - É assegurada a estabilidade provisória ao empregado dirigente sindical, ainda que a comunicação do registro da candidatura ou da eleição e da posse seja realizada fora do prazo previsto no art. 543, § 5º, da CLT, desde que a ciência ao empregador, por qualquer meio, ocorra na vigência do contrato de trabalho.

 II - O art. 522 da CLT foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Fica limitada, assim, a estabilidade a que alude o art. 543, § 3.º, da CLT a sete dirigentes sindicais e igual número de suplentes.

 III - O empregado de categoria diferenciada eleito dirigente sindical só goza de estabilidade se exercer na empresa atividade pertinente à categoria profissional do sindicato para o qual foi eleito dirigente.

IV - Havendo extinção da atividade empresarial no âmbito da base territorial do sindicato, não há razão para subsistir a estabilidade.

V - O registro da candidatura do empregado a cargo de dirigente sindical durante o período de aviso prévio, ainda que indenizado, não lhe assegura a estabilidade, visto que inaplicável a regra do § 3º do art. 543 da Consolidação das Leis do Trabalho.

Complementando a garantia sub lume, tem-se a Súmula de Jurisprudência Uniforme nº 379 do TST, a qual prevê que o dirigente sindical somente poderá ser dispensado por falta grave mediante a apuração em inquérito judicial.


CONCLUSÃO

Ante o exposto, percebe-se que a fragilidade do sistema sindical pátrio, que se reflete inúmeras vezes na atuação débil de suas organizações, bem como no desempenho em desconexão com os reais anseios de seus representados, deve-se, em boa medida, às incongruências do próprio sistema.

Conforme buscou-se demonstrar, a Constituição Federal abriga, em seu seio, diversos dispositivos francamente contraditórios entre si, os quais sabotam o desejável desenvolvimento de todo o sistema sindical.

A convivência forçada de previsões democráticas ao lado de outras claramente antidemocráticas, externa uma indesejável esquizofrenia constitucional.

Apesar de todo o esforço envidado, seja pelo constituinte, seja pelos operadores do direito, a fim de emprestar uma lógica ao sistema sindical alinhada às feições democráticas do Ordenamento Jurídico, reconhece-se que muito ainda deve ser avançado.    


REFERÊNCIAS

ANTUNES, Daniela Muradas. A negociação Coletiva Trabalhista e Suas Restrições Jurídicas. Porto Alegre: Síntese, Revista Síntese Trabalhista, ano XIII, n. 146, agosto de 2001.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho, 11ª ed. São Paulo: LTr, 2012.

GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Manual de Direito do Trabalho. 6ª ed. São Paulo: Método, 2013.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Compêndio de Direito Sindical. 2ª. ed. São Paulo: LTr, 2000. 


Notas

[1] Curso de direito do trabalho, 11ª ed. – São Paulo: LTr, 2012.

[2] Súmula de Jurisprudência Uniforme 369 do TST. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/>. Acesso em maio de 2014.

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Sobre o autor
Fabrício Cardoso de Meneses

Procurador Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENESES, Fabrício Cardoso. A esquizofrenia da Constituição Federal de 1988 e a fragilidade do sistema sindical pátrio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4078, 31 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29363. Acesso em: 28 mar. 2024.

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