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Competência para fiscalizar na Lei Complementar nº 140/11

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08/10/2014 às 16:22
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As atividades de fiscalização e de licenciamento são facetas da mesma competência comum para a proteção do meio ambiente. Não há, contudo, confusão entre as duas atividades e uma não vincula à outra.

Resumo: A monografia trata da competência dos órgãos ambientais para fiscalizar a partir da publicação da Lei Complementar nº 140/2011. Pretende-se responder às dúvidas sobre a competência comum para fiscalizar a partir da regulamentação da novel legislação, focando na atribuição para fiscalização dos órgãos ambientais. A revisão da doutrina e da jurisprudência demonstra que há diversidade de entendimento, mas é adequada a defesa da manutenção da competência comum. A Lei Complementar nº 140/2011 cumpriu o mandamento constitucional do artigo 23 e regulamentou a competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para proteção do meio ambiente. A regulação trazida pela nova lei afetou de modo especial a atribuição de licenciamento ambiental e de fiscalização dos órgãos ambientais, não impondo, contudo, limitação da competência comum para a proteção do meio ambiente.

Palavras-chave: Lei Complementar nº 140, de 2011; competência; fiscalização; meio ambiente; licenciamento.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO.1. LEITURA INTEGRADA.1.1 INTERPRETAÇÃO DA NORMA.2. COMPETÊNCIA COMUM.3. SISTEMA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL COMUM.3.1 FISCALIZAÇÃO REALIZADA PELO ENTE LICENCIADOR.3.2. INEXISTÊNCIA DA PREVALÊNCIA DO ENTE LICENCIADOR.3.3 FISCALIZAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS LICENCIADOS OU LICENCIÁVEIS. 4. MEDIDAS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL EM FLAGRANTE DE DANO.CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

O advento da Lei Complementar nº 140 de 08 de dezembro de 2011 – LC 140/11 (BRASIL) trouxe dúvidas sobre a atribuição para o licenciamento das atividades potencialmente poluidoras e, em especial, sobre a competência comum para fiscalização ambiental. Há grande receio de fragilização da defesa do meio ambiente, com eventual redução da competência comum para fiscalização.

A preocupação maior na fragilização da defesa do meio ambiente resta em suposta redução das competências dos órgãos para fiscalizar, restringindo-se a fiscalização apenas aos órgãos ambientais com atribuição de licenciar.

Portanto, é fundamental estudar esta matéria para poder responder perguntas elementares: a fiscalização ambiental é própria da competência comum e não sofre qualquer limitação? Somente o órgão licenciador pode fiscalizar as atividades licenciadas ou licenciáveis? Há prevalência do órgão licenciador sobre os demais órgãos de proteção ambiental?

E ainda, há contradição do texto da lei quando afirma no art. 17 da LC 140/11 (BRASIL) que a fiscalização é executada pelo órgão licenciador e no § 3º do mesmo artigo informa que não há impedimento do exercício pelos entes federativos da atribuição comum de fiscalização? A solução para esta possível contradição pode ser de três formas: a primeira seria no sentido de que somente pode fiscalizar as atividades licenciáveis ou autorizáveis quem tem atribuição para o licenciamento; a segunda possibilidade seria admitir a fiscalização por todos os entes da federação, mas com preponderância da atividade de licenciamento; por fim, a terceira opção seria a manutenção da competência comum para fiscalizar independente da atividade de licenciamento.

O estudo buscou responder a estas questões e apresentar a solução para esta contradição dentro da melhor interpretação constitucional possível. Ou seja, busca ver até que ponto a lei complementar cumpriu com a função de regulamentar a competência comum para a proteção do meio ambiente, fixando normas para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, com o objetivo do equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. E ainda, verificar se a regulamentação teria extrapolado o mandado constitucional e importado em alguma inconstitucionalidade ou ofensa a princípio ambiental.

Como se verá no estudo, a matéria é recente e, além das divergências de entendimento, ainda suscita dúvidas entre os doutrinadores.

A jurisprudência construída antes da publicação da LC 140/11 (BRASIL) distinguia a atribuição para fiscalização da atribuição para o licenciamento. O estudo também buscou observar quais são as possibilidades de manutenção deste entendimento ou se há necessidade de alguma inovação neste campo.

Por fim, além de se ter buscado a resposta fundamental se a competência comum foi respeitada na LC 140/11 (BRASIL) e em que parâmetros, o trabalho procurou apresentar a forma como a nova legislação organizou o sistema de proteção do meio ambiente. Pretende-se descrever como se dá o exercício do almejado federalismo cooperativo nos termos da lei complementar.

Ainda, para facilitar o entendimento de artigos da nova lei que possam gerar dúvidas, foram analisadas algumas questões práticas que comumente se encontram nas atividades de licenciamento e de fiscalização.

Para esta tarefa, iniciou-se com o estudo da forma de interpretação da LC 140/11 (BRASIL) e do texto constitucional. Após, procurou-se aprofundar o método de interpretação do texto legal, seguindo a lição de Ronald Dworkin, baseado em leitura da norma com os princípios ambientais e constitucionais, para a tentativa de esclarecer o alcance da instituição constitucional da competência comum.

Estas são as observações que podem ajudar o leitor a entender o caminho percorrido no presente trabalho.


1. LEITURA INTEGRADA

Como diz Dworkin (2010, p. 222), a integridade é nosso Netuno. Antes que os astrônomos pudessem comprovar, já informavam da existência do planeta, porquanto os fenômenos os orientavam neste sentido. A integridade, o respeito aos princípios, é o ideal político na elaboração da norma e na sua interpretação. Os fenômenos indicam que somente pode haver uma explicação adequada quando o direito é visto no todo, partindo dos princípios.

Nada mais adequado para a leitura do direito ambiental do que a leitura a partir dos princípios. Em uma linguagem mais ambientalista, pode-se dizer que é a visão holística da lei e da realidade. Esta é a revolução que o direito ambiental traz para a ciência do direito, uma disciplina que está calcada fundamentalmente em princípios, que busca o objetivo moral final do bem comum. A revolução que o direito ambiental traz para a ciência do direito é de tal ordem e de velocidade tão espantosa que se pode dizer que quem não conhecer as premissas do direito ambiental não será mais capaz de entender a própria ciência do direito.

Primeiro, adota-se uma compreensão sistêmica (=orgânica ou holística) e legalmente autônoma do meio ambiente, determinando um tratamento jurídico das partes a partir do todo, precisamente o contrário do paradigma anterior. Com apoio nas palavras de Pontes de Miranda, empregadas em outro contexto, é possível afirmar que nesses dispositivos constitucionais ‘não se veio do múltiplo para a unidade. Vai-se da unidade para o múltiplo’. (BENJAMIN, 2012, p. 92).

Por estas razões, a feitura e a interpretação da norma não pode se dar de forma isolada. Somente há sentido nas normas se estas buscarem os objetivos mais profundos da comunidade política, o bem comum.

Portanto, a leitura que se deve fazer da LC 140/11 (BRASIL) é uma leitura integrada, holística, respeitando os princípios, como bem esclarece Dworkin (2010, p. 230) na teoria da integridade:

A integridade, pelo contrário, insiste em que cada cidadão deve aceitar as exigências que lhe são feitas e pode fazer exigências aos outros, que compartilham e ampliam a dimensão moral de quaisquer decisões políticas explícitas. A integridade, portanto, promove a união entre a vida moral e política dos cidadãos: pede ao bom cidadão, ao decidir como tratar seu vizinho quando os interesses de ambos entra em conflito, que interprete a organização comum da justiça à qual estão comprometidos em virtude da cidadania.

É interessante observar que a leitura a partir dos princípios é fundamental em direito ambiental. A moral ambiental nasce da crise de um sistema ganancioso, da vantagem a qualquer custo, tanto nas economias capitalistas como nas chamadas economias planificadas. Ainda que não se tenha apontado, a revolução do direito ambiental transforma não só economia, mas muda para sempre a sociedade e a forma como se conhece e se entende o direito.

Nesse complexo quadro de aspirações individuais e sociais, ganham relevo categorias novas de expectativas (e a partir daí, de direitos), cujos contornos estão em divergência com a fórmula clássica do eu-contra-Estado, ou até da sua versão welfarista mais moderna, dos nós-contra-o-Estado. Seguindo tal linha de análise, a ecologização do texto constitucional traz certo sabor herético, deslocando as fórmulas antecedentes, ao propor a receita solidarista – temporal e materialmente ampliada (e, por isso mesmo, prisioneira de traços utópicos) – do nós-todos-em-favor-do-planeta.

(...)

Só em meados da década de 70 – por uma conjugação de fatores, que não interessa aqui esmiuçar – os sistemas constitucionais começaram, efetivamente, a reconhecer o ambiente como valor merecedor da tutela maior; esse, sem dúvida, um daqueles raros momentos, que ocorrem de tempos em tempos, em que o senso de civilização é redefinido, para usar a expressão feliz do geógrafo Carl O. Sauer. Há, em tal constatação, um aspecto que impressiona, pois na história do direito poucos valores ou bens tiveram uma trajetória tão espetacular, passando, em poucos anos, de uma espécie de nada jurídico ao ápice da hierarquia normativa, metendo-se com destaque nos pactos políticos nacionais. (BENJAMIN, 2012, p. 84-85; 86-87).

Esta mudança de paradigma é bem entendida pela teoria da integridade, sempre aberta à mudança orgânica. “Uma comunidade que aceite a integridade tem um veículo para a transformação orgânica, mesmo que este nem sempre seja totalmente eficaz, que de outra forma sem dúvida não teria.” (DWORIN, 2010, p. 229).

A nova perspectiva ambientalista exige que o direito ambiental, e o direito todo, sejam vistos de forma ampla, integral, o que também já era exigido pela teoria da integridade.

Os membros de uma sociedade de princípio admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas dependem, em termos mais gerias, do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam. Assim, cada membro aceita que os outros têm direitos, e que ele tem deveres que decorrem desse sistema, ainda que estes nunca tenham sido formalmente identificados ou declarados. (DWORKIN, 2010, p. 254-255)

Este novo olhar do direito foi possível porquanto a crise ambiental exigiu que houvesse um olhar para o todo, para o mais profundo de nosso sistema econômico, político e jurídico. Esta é a exigência de uma sociedade que ultrapassa os termos mecânicos de uma sociedade positivista baseada apenas em regras.

A integridade exige que as normas públicas de comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção. Uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores, em busca da fidelidade aos princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo. (DWORKIN, 2010, p. 264).

E o fundamental está estampado no art. 225 de nossa Constituição[1], o compromisso com a possibilidade de uma vida digna em comunhão com a natureza.

Figueiredo (2013, p. 31-32) bem descreve esta efervescência cultural que abriu as portas da nova era:

Foi nesse período de efervescência cultural e política que passamos a sentir a necessidade de regulamentação não só do meio ambiente, mas também das relações de consumo, das minorias raciais, das pessoas com deficiência, das mulheres, da comunicação, do desenvolvimento.

Uma nova onda de direitos formava-se num cenário histórico bastante peculiar: os direitos do consumidor constituíram uma importante plataforma política de John Kennedy, então presidente dos EUA; a construção de direitos das pessoas com deficiência teve como pano de fundo as reivindicações dos veteranos da Guerra do Vietnã e de seus familiares; a campanha pela igualdade de gênero foi consequência da emancipação sexual das mulheres; a emancipação dos afro-americanos estava diretamente relacionada com o grande número deles nas fileiras do exército estadunidense e com chocantes atentados racistas; e na nova consciência sobre a qualidade ambiental advinda de uma conjugação de diversos fatos, como as mortes e doenças decorrentes da poluição atmosférica em Londres, os sombrios efeitos da radioatividade nas regiões atingidas pela bomba atômica, o extermínio de aves e animais silvestres em consequência da pulverização de DDT na lavoura.

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Ler direito ambiental, portanto, não pode ser tarefa conduzida com os velhos instrumentos da ciência do direito. Há necessidade de profundo entendimento do chamado microssistema de direitos difusos. Nesta perspectiva, o coletivo ganha novo relevo. Não se busca a solução de amplos conflitos, ou de conflitos que afetam a coletividade com a visão privatista dos antigos preceitos jurídicos. Essa nova forma de ver o direito expande-se para toda a ciência do direito e começa a perpassar outros ramos do direito, como, por exemplo, o direito de propriedade, que agora precisa cumprir também sua função social.

Assim, as normas de cooperação ou de colaboração entre os entes federativos devem ter ‘em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional’. Desenvolvimento e bem-estar precisam estar contrabalançados, isto é, nem mais para um, nem mais para o outro. Os dois devem ter realmente peso na vida do País, pois são objetivos fundamentais da República ‘garantir o desenvolvimento nacional’ e ‘promover o bem de todos’ (art. 3º, II e IV da Constituição).

O intérprete do parágrafo único necessita ampliar sua análise do texto para sair da letra e buscar seu espírito (mens legis). Textualmente nem todos os incisos do art. 23 da CF devem obrigatoriamente ser objeto de leis complementares. O parágrafo único mencionado está centrado nos seres humanos, isto é, no equilíbrio entre desenvolvimento e o bem-estar em âmbito nacional que deve ser visado através da cooperação nas matérias dos incisos VIII, IX e X do art. 23 da Constituição. (MACHADO, 2013, p. 181-182).

Portanto, a lei não pode ser lida fora do arcabouço jurídico existente e deve estar calcada nos princípios constitucionais. Somente uma interpretação que respeite os princípios constitucionais pode ser aceita como adequada. A norma não tem sentido fora do sistema jurídico e sua interpretação correta somente se pode dar a partir dos princípios, como se apreende dos ensinamentos de Dworkin. (AZEVEDO, 2013, p. 22).

O direito não pode ser visto por partes, não se pode ler cada lei, cada norma, de forma isolada. A leitura somente faz sentido adequado em uma leitura integrada da norma. O direito precisa ser visto em sua integridade, e a integridade da leitura da lei parte dos princípios mais fundamentais do sistema jurídico, e muitos destes princípios elementares também estão previstos em nossa Constituição.

Cuidando-se da leitura de lei que trata da seara ambiental é ainda mais importante uma leitura principiológica da lei. O direito ambiental trata do direito fundamental de proteção da vida e possui princípios que perpassam os fundamentos do direito e possuem aplicação universal.

Em países conhecidos por prestarem obediência à norma ordinária e ignorarem ou desprezarem a norma constitucional (como o Brasil), mais relevante ainda é essa busca dos fundamentos remotos do Direito Ambiental, pouco importando que ele, na superfície, transmita uma falsa aparência de consistência e consolidação. Evidentemente, a diligência e a configuração teóricas devem começar e terminar pela norma constitucional, pois não é papel da Constituição confirmar, em juízo posterior, o Direito Ambiental aplicado (e, infelizmente, amiúde mal-aplicado), mas determinar, de forma preambular, seus rumos e até existência. (BENJAMIN, 2012, p. 91).

Além dos princípios ambientais fundamentais, a lei toca também em princípios basilares da formação do Estado na divisão de competências, porquanto a lei complementar veio cumprir o mandamento do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal de 1988 – CF/88 (BRASIL), que determinava a expedição de normas para a cooperação.

Assim, não é correta uma leitura fragmentada da lei. Qualquer leitura solta acabará por levar o leitor a interpretações equivocadas. Leitura isolada pode muito bem estar a serviço do desenvolvimento a qualquer custo, mantendo o velho paradigma que desconsidera a relevância dos novos direitos, da proteção à vida como fundamento de nossa sociedade. A leitura da lei não é neutra. O objetivo do intérprete, sua ideologia, tem forte importância no produto de sua leitura.

(...) há muitas décadas, a jurisprudência norte-americana vem enfatizando: o fato de que a convicção política desempenha papel na decisão judicial, e que, em qualquer época, a forma do direito reflete ideologia, poder e aquilo que é erroneamente chamado de “lógica”. (DWORKIN, 2010, p. 323).

Pode-se observar que o art. 225 da CF/88 (BRASIL) traz o princípio fundamental da defesa do meio ambiente. Ayala (2012, p. 418) defende a existência de um princípio do direito humano ao meio ambiente saudável. Guilherme Purvin de Figueiredo (2013, p. 138) diz que não se trata de princípio, visto que as normas estão definidas em tratados internacionais reconhecidos pelo Brasil e têm para nós força de norma constitucional, por isso, de aplicação imediata:

Estas evidências, contudo, não são suficientes para que possamos concluir que exista um “princípio do direito humano fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Levam-nos, na verdade, muito além: possibilitam a utilização de todos os mecanismos internacionais e internos de tutela dos Direitos Humanos (com todos os princípios que lhes são inerentes) em defesa do meio ambiente.

De qualquer forma, não se pode negar a força do direito humano ao meio ambiente saudável, que é direito/dever a ser defendido por todos. A obrigação de proteção é dever de todos os entes federativos, previsto no art. 23 da CF/88 (BRASIL). O art. 225 da CF/88 (BRASIL) prescreve que não apenas o Estado seja encarregado da defesa do meio ambiente, mas toda a sociedade. Enfim, além da possibilidade der ser considerado um direito humano fundamental, a sua defesa é obrigação de todos, o que resulta na previsão da máxima proteção para esta e para as futuras gerações.

Esta é a interpretação adequada segundo os princípios constitucionais da defesa do meio ambiente. É a interpretação da norma na sua integridade, como explica Azevedo (2013, p. 22) a respeito dos ensinamentos de Dworkin:

O direito seria uma interpretação contínua e em permanente desenvolvimento, tal qual um romance em construção. O processo de interpretação consiste em recuperar o trajeto desse romance e produzir a melhor interpretação possível com os dados e informações de que se dispõe. Essa interpretação será tanto melhor quanto maior for sua capacidade de expressar o significado do direito em sua integridade e não apenas o significado de certas normas, pois o significado destas deve ser coerente com os princípios revelados pela leitura de todo o ordenamento.

Há, portanto, como diz Dworkin, uma resposta correta para as questões difíceis. Não pode o leitor ou o juiz interpretar da forma que melhor lhe aprouver. Este é o erro que frequentemente se comete ao ler as normas ambientais. Como direito extremamente novo, ainda há dificuldades no trato de todos os novos princípios que emergem deste campo. No Brasil, que possui uma das mais profundas e avançadas constituições em matéria ambiental, será necessário ainda um longo tempo para apreender tudo o que se deve extrair de proteção ambiental do texto constitucional.

Estas dificuldades podem explicar os possíveis desvios cometidos na leitura da LC 140/11 (BRASIL). A norma deve ser lida tendo como base a Constituição, carregada de princípios e fundamentos ambientais específicos. Elemento primordial a orientar a leitura da norma é justamente a previsão da competência comum. Qualquer leitura que não preserve esta função específica da norma estará fugindo do objetivo imposto pelo parágrafo único do art. 23 da CF/88 (BRASIL).

Estes são os cuidados que devem ser tomados na interpretação das normas ambientais. São inúmeros interesses contraditórios em jogo e cabe ao juiz buscar os princípios jurídicos que informam a chave de leitura. Na lição de Dworkin, não se deve buscar a resposta que atenda a interesses políticos, deve-se buscar o fundamento jurídico correto. No caso, a lição mais fundamental é a defesa do meio ambiente sendo exercida por todos, sem imposição de limites, muito menos limites infraconstitucionais e que, por contrários à carta maior, seriam também inconstitucionais. “Contudo, insisto que, mesmo nos casos difíceis, é razoável dizer que o processo tem por finalidade descobrir, e não inventar, os direitos das partes interessadas que a justificação política do processo depende da validade dessa caracterização.” (DWORKIN, 2011, p. 430).

A busca da leitura integrada da norma calca-se na procura do fundamento do direito. Afirma Dworkin que o juiz não está descobrindo ou inventando o direito, ainda que possa fazer as duas coisas juntas. As afirmações jurídicas são opiniões de interpretação, que olham para o passado, para os princípios do direito, e interpretam a prática jurídica em contínuo processo de desenvolvimento.

O princípio judiciário de integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada -, expressando uma concepção corrente de justiça e equidade. (...) As proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade. (DWORKIN, 2010, p. 271-272).

A busca da leitura integrada, holística, da LC 140/11 (BRASIL) deve procurar trazer estes pressupostos criados pela comunidade, que arduamente construiu os princípios de defesa do meio ambiente como direito fundamental, de extrema importância para todos.

1. 1. INTERPRETAÇÃO DA NORMA

Interpretar não é um ato neutro. A interpretação, portanto, deve ser feita com cuidado, sabendo-se que há enorme responsabilidade no ato de interpretar. Não se pode interpretar de forma descompromissada. A leitura deve sempre levar em conta qual o objetivo do escritor, que não é neutro.

A interpretação repercute na prática, alterando sua forma, e a nova forma incentiva uma nova interpretação. Assim, a prática passa por uma dramática transformação, embora cada etapa do processo seja uma interpretação do que foi conquistado pela etapa imediatamente anterior. (DWORKIN, 2010, p. 59).

Esta reinterpretação é extremamente presente na prática jurídica. Por esta razão a aplicação do direito deve ser muito cautelosa, buscando sempre a interpretação correta. A interpretação não terá efeitos apenas para o caso em que está sendo aplicada, mas será também matéria prima para a construção coletiva do direito, terá efeitos no presente e no futuro. “Um juiz que decide o caso Mcloughlin ou Brown introduz acréscimos na tradição que interpreta; os futuros juízes deparam com uma nova tradição que inclui o que foi feito por aquele.” (DWORKIN, 2010, p. 275)

Para entender a responsabilidade do juiz, do intérprete, Dworkin sugere que se imagine a criação de um romance em cadeia, em que cada juiz (intérprete) recebe os capítulos anteriores e deve interpretar da melhor forma possível para escrever a sua parte.

Cada um deve escrever seu capitulo de modo a criar da melhor forma possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade. (...) Em nosso, exemplo, contudo, espera-se que os romancistas levem mais a sério suas responsabilidades de continuidade; devem criar um conjunto, até onde for possível, um só romance unificado que seja da melhor qualidade possível. (DWORKIN, 2010, p. 276).

A norma positivada sozinha não tem efeito prático, a sua aplicação se dá com a interpretação. Deve-se, portanto, interpretar para buscar a aplicação dos princípios do direito e, no caso, aplicação do objetivo fundamental de nossa Carta que é o ambiente ecologicamente equilibrado.

Observados os pressupostos para leitura das normas em direito, deve-se verificar qual a forma correta de interpretação. Busca-se interpretar norma complementar à Constituição, portanto sua compreensão somente se pode dar a partir da própria Constituição. Pode parecer curial, mas é importante repetir, a norma infraconstitucional é que deve ser lida a partir da Constituição, e não o contrário. Interpretar a Constituição a partir das normas infraconstitucionais não é valido. O texto da Carta Maior somente deve ser interpretado pelos seus próprios dispositivos e pelos pressupostos mais profundos dos princípios jurídicos.

Importa dizer que a lei complementar sujeita-se à Constituição e que para ser aprovada requer maioria absoluta (art. 69 da CF). Não se há de servir das leis complementares para ‘interpretar a Constituição ou qualquer de suas normas’, sendo ‘leis integrativas de normas constitucionais de eficácia limitada’, na lição de José Afonso da Silva. (MACHADO, 2013, p. 182).

Repete-se apenas para que não paire dúvida. Não se deve cair na tentação de interpretar a Constituição conforme as leis complementares. O princípio básico da competência comum é o exercício conjunto do poder, previsto na Carta. Não se pode assim, em norma de hierarquia inferior querer limitar este poder. O que não foi limitado na Constituição não pode ser limitado pelo legislador infraconstitucional. A atribuição restante é acessória, o parâmetro está na Carta, somente pode dizer como as unidades da Federação podem expressar seu poder de forma comum, mas sem criar limitação que não foi prevista no texto constitucional.

Não se pode fugir à interpretação hierárquica da lei. O entendimento da lei complementar não pode ultrapassar os limites do texto constitucional, pois é norma meramente integrativa, para dar completude ao texto e não deve informar instrumento novo, em especial fundamento que não esteja adstrito aos ditames constitucionais fundados no respeito ao meio ambiente.

Ao tratar das leis complementares, diz o professor José Afonso da Silva que ‘sendo inferiores a Constituição, sua validade afere-se segundo o princípio da compatibilidade vertical. Por isso, estão sujeitas ao controle de constitucionalidade, como outra lei qualquer. Sua função é de mera complementariedade, disso não pode transbordar’.

A edição dessa parte da Lei Complementar 140/2011 não pode perder o rumo da manutenção de um Estado Democrático de Direito, em que a preservação ambiental harmoniosamente leve em conta as liberdades públicas civis e socais. (MACHADO, 2013, p. 191).

Esta é também a lição de Benjamin, que informa que qualquer interpretação que não seja conforme a Constituição não é valida. Há, portanto, uma firme diretriz para a leitura da lei complementar, e qualquer afastamento deste marco sinaliza erro no trabalho interpretativo da norma.

A preeminência normativa da norma constitucional ocasiona, na palavra de Canotilho e Moreira, três consequências jurídicas imediatas. Inicialmente, a interpretação das normas constitucionais deve ser feita da forma mais concordante com a Constituição – é o princípio da interpretação conforme a Constituição; além disso, tais normas, se desconformes com a Constituição, serão inválidas, não podendo ser aplicadas pelos tribunais. (BENJAMIN, 2012, p. 103).

Retornando à lição da leitura integrada, não podemos desistir de encontrar a melhor interpretação, a interpretação correta que mantém a defesa do meio ambiente, como previsto nos artigos 23 e 225 da CF/88 (BRASIL) e no fundamento último do direito que é a defesa da vida.

Dworkin (2010, p. 107) faz uma grande exposição para concluir que é possível ter uma interpretação correta, ainda que os céticos não queiram acreditar:

Subi e desci a colina somente porque a impugnação cética, percebida como impugnação do ceticismo exterior, exerce poderosa influência sobre advogados. A propósito de qualquer tese sobre a melhor maneira de avaliar uma situação jurídica em algum domínio do direito, eles dizem: ‘Essa é a sua opinião’, o que é ao mesmo tempo verdadeiro e inútil. Ou perguntam: ‘Como você sabe?’, ou ‘De onde provém essa pretensão?’, exigindo não um caso que possam aceitar ou rejeitar, mas uma demonstração metafísica avassaladora à qual não possa resistir ninguém que a consiga compreender. E, quando percebem que não estão diante de nenhum argumento dotado de tal força, resmungam que a doutrina é tão-somente subjetiva.

Por isso, este trabalho busca fazer a descoberta da forma correta de ler a LC 140/11 (BRASIL). A interpretação adequada que parte dos princípios do direito, dos princípios constitucionais, e em especial da perspectiva comprometida com a defesa do meio ambiente.

O exercício em questão é de descoberta, pelo menos neste sentido: descobrir qual ponto de vista das questões importantes que discutimos se ajusta melhor às convicções que, juntos ou individualmente, temos e conservamos a propósito da melhor avaliação de nossas práticas comuns. (DWORKIN, 2010, p. 108).

A interpretação como integridade busca coerência com os princípios. Não é uma coerência estanque, que mantenha congelado o direito, que obrigue a repetir hoje o que se entendeu correto no passado, mas uma coerência com os fundamentos próprios do direito.

Não exige que os juízes tentem entender o direito de um século antes, já em desuso, ou mesmo de uma geração anterior. Exige uma coerência de princípio mais horizontal do que vertical ao longo de toda a gama de normas jurídicas que a comunidade agora faz vigorar. Insiste em que o direito – os direitos e deveres que decorrem de decisões coletivas tomadas no passado e que, por esse motivo, permitem ou exigem a coerção – contém não apenas o limitado conteúdo explícito dessas decisões, mas também, num sentido mais vasto, o sistema de princípios necessários a sua justificativa. (DWORKIN, 2010, p. 273).

Dworkin (2010, p. 277), por fim, propõe como prova da correção da interpretação dois elementos: o primeiro é que a interpretação apresentada pode ter sido escrita por outro juiz, ou seja, deve estar em linha com o pensamento jurídico da comunidade. E também que a interpretação deve dar uma explicação completa para a questão, sem deixar um elemento importante sem resposta.

Enfim, a interpretação que não explique de forma adequada a aplicação e manutenção da competência comum na LC 140/11 (BRASIL), em especial que não esclarece qual o sentido do § 3º do art. 17 da referida lei, não é aceitável. Sem explicar este elemento essencial da LC 140/11 (BRASIL) não se atende ao segundo princípio da interpretação com integridade.

Ele prossegue dizendo que o juiz não pode se deixar vencer quando achar que mais de uma interpretação pudesse se ajustar ao contexto. “A segunda dimensão da interpretação vai exigir-lhe então que julgue qual dessas leituras possíveis se ajusta melhor à obra em desenvolvimento, depois de considerados todos os aspectos da questão”. (DWORKIN, 2010, p. 278).

Assim, ainda que houvesse mais de uma explicação plausível para a LC 140/11 (BRASIL), qual delas se ajusta melhor à obra geral de proteção do meio ambiente? Sim, esta pergunta é fundamental. É, aliás, o tema central a ser respondido em função do disposto no art. 23 da CF/88 (BRASIL). O objetivo geral da lei é a proteção do meio ambiente, feita de forma conjunta. Uma interpretação que fragilize esta atividade não se ajusta ao conjunto da obra, está em caminho oposto. Uma interpretação que restrinja o poder de fiscalização do meio ambiente não é constitucional, porquanto não atende aos pressupostos básicos dos artigos 23 e 225 da CF/88 (BRASIL). Uma interpretação que não busque a defesa do meio ambiente não pode ser aceita, visto que não trilha no caminho que a comunidade brasileira está construindo, de proteção crescente do meio ambiente.

Agora se pretende partir para essa interpretação, aquela voltada para a defesa da competência comum, da proteção do meio ambiente. Qualquer outra interpretação que se apresente contrária aos princípios do direito ambiental e contrária aos princípios constitucionais será rejeitada, pois não seria válida, não se ajustaria à melhor avaliação de nossas práticas comuns.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Henrique Albino. Competência para fiscalizar na Lei Complementar nº 140/11. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4116, 8 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29730. Acesso em: 18 abr. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada ao Centro de Educação a Distância – CEAD, da Universidade de Brasília – UnB, como requisito parcial à obtenção do grau de Especialista em Direito Público.

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