INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem por finalidade a análise dos efeitos jurídicos do contrato de namoro no ordenamento jurídico brasileiro. Utilizamos os métodos de pesquisa doutrinária, legislativa e jurisprudencial.
Cada vez mais casais têm buscado esta espécie de contrato na intenção de afastarem o reconhecimento de uma união estável. Este crescente instrumento surgiu após a edição da Lei 9.278/96 que afastou o prazo mínimo de cinco anos de convivência que constava na antiga Lei 8.971/94. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, § 3º, também não faz qualquer exigência em relação ao prazo mínimo para constituição da união estável. O Código Civil de 2002 não trouxe qualquer inovação relevante à união estável, mas manteve a sistemática da Lei 9.278/96 ao dispor no artigo 1723: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, com o objetivo de constituição de família”[1].
As diferenças entre um simples namoro e uma união estável tornaram-se tênues, uma vez que, qualquer relação, independentemente do tempo de duração, pode, teoricamente, converter-se em uma união estável. Ficou a critério do magistrado a análise dos elementos fáticos para a caracterização de uma relação em união estável. Ou seja, se o magistrado se convencer que determinada relação é pública, contínua e duradoura, e tem o objetivo de constituir família, estará configurada a união estável.
Nesse sentido, passou-se a divulgar uma espécie de documento (um contrato) entre duas pessoas que não querem que a sua relação seja considerada uma união estável, principalmente em relação aos reflexos patrimoniais. Hoje já é possível celebrar um contrato entre duas pessoas que mantêm relacionamento amoroso, um namoro, e que pretendem, por meio da assinatura de um documento que poderá ser até lavrado em cartório, afastar os efeitos da união estável.
Mas será que esse documento conhecido como “contrato de namoro” possui validade jurídica?
No primeiro capítulo aborda-se o conceito de contrato comparando sua definição desde a Roma Antiga até a sociedade moderna. Faz-se também, uma análise geral da função social do contrato e do que a doutrina moderna chama de “dirigismo contratual”; das condições de validade do contrato, passando pela teoria desenvolvida por Pontes de Miranda.
Já no segundo capítulo, discorre-se sobre o conceito de família em vários aspectos, a regulamentação da família no Brasil, as composições familiares modernas e a natureza jurídica do direito de família.
No capítulo terceiro é feita uma análise do conceito de união estável e todos os seus requisitos. Faz-se ainda, um exame das atuais diferenças entre o concubinato e a união estável.
No quarto capítulo fica reservado o estudo sobre o que se entende hoje por namoro, buscando argumentos que o distinga de uma união estável.
Enfim, no quinto capítulo, faz-se um estudo sobre o tema principal desta pesquisa, examinando-se a origem do contrato de namoro e os atuais entendimentos doutrinários e jurisprudenciais.
Capítulo 1- DO CONTRATO
1.1 Conceito de contrato
O contrato vem da palavra contractus e significa unir, contrair. Antigamente, tanto o direito romano quanto o Código Napoleão consideravam o contrato e o pacto como espécies do gênero convenção. Silvio de Salvo Venosa explica:
Convenção é termo mais genérico, aplicável a toda espécie de ato ou negócio jurídico bilateral. O termo pacto fica reservado para cláusulas acessórias que aderem a uma convenção ou contrato, modificando seus efeitos naturais, como o pacto de melhor comprador na compra e venda e o pacto antenupcial no casamento. Pacto, usado singelamente, não tem a mesma noção de contrato. Utiliza-se para denominar um acordo de vontades sem força cogente.[2]
Na Roma Antiga havia uma rigorosa solenidade nas formas e elaboração dos contratos. Não bastava a simples vontade das partes, tanto que o simples pacto ou convenção não criava a obrigação, mas sim a formalidade na elaboração do negócio.
Somente na época de Justiniano que a vontade das partes suplantou o formalismo contratual e as codificações do direito fizeram com que o acordo de vontades fosse fundamental para a validade de um contrato.
Já no fim da Idade Média até a sociedade moderna, o contrato passou por transformações fruto do jusnaturalismo e de forte influência do capitalismo e na circulação de riquezas, no qual indivíduo passa a ser determinado por sua vontade autônoma, sendo, o contrato, um instrumento da garantia da liberdade de contratar.
Atualmente, a maior parte da doutrina conceitua o contrato como uma espécie de negócio jurídico que se origina do encontro da vontade das partes.
Nas palavras de Maria Helena Diniz:
O contrato constitui uma espécie de negócio jurídico, de natureza bilateral ou plurilateral, dependendo, para a sua formação, do encontro da vontade das partes, por ser ato regulamentador de interesses privados.[3]
O contrato é negócio jurídico bilateral ou plurilateral. Carlos Roberto Gonçalves ensina que:
Os contratos distinguem-se, na teoria dos negócios jurídicos, os unilaterais, que se aperfeiçoam pela manifestação de vontade de apenas uma das partes, e os bilaterais, que resultam de uma composição de interesses. Os últimos, ou seja, os negócios jurídicos bilaterais, que decorrem de mútuo consenso, constituem os contratos.[4]
Nesse sentido, o contrato é conceituado como um acordo de duas ou mais vontades com o escopo de se estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, em conformidade com o ordenamento jurídico e com a finalidade de adquirir, modificar ou extinguir direitos.
1.2 Função social do contrato
A nova ordem jurídica contratual, corroborada pelo Código Civil de 2002, delimita a autonomia da vontade privada em razão do interesse social. O artigo 421 do referido diploma legal dispõe que “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”[5].
Conceitua-se de função social do contrato como sendo a finalidade pela qual visa o ordenamento jurídico a conferir aos contratantes medidas ou mecanismos jurídicos capazes de coibir qualquer desigualdade dentro da relação contratual, como descrito por Orlando Gomes:
“a locução função social traz a ideia de que o contrato visa a atingir objetivos que, além de individuais, são também sociais. O poder negocial é assim, funcionalizado, submetido a interesses coletivos ou sociais.”[6]
Desta forma, Silvio Venosa ensina que:
Na contemporaneidade, a autonomia da vontade clássica é substituída pela autonomia privada, sob a égide de um interesse social. Nesse sentido o Código aponta para liberdade de contratar sob o freio da função social. Há, portanto, uma nova ordem jurídica contratual, que se afasta da teoria clássica, tendo em vista mudanças históricas tangíveis. O fenômeno do interesse social na vontade privada negocial não decorre unicamente do intervencionismo do Estado nos interesses privados, com o chamado dirigismo contratual, mas da própria modificação de conceitos históricos em torno da propriedade. No mundo contemporâneo há infindáveis interesses interpessoais que devem ser sopesados, algo nunca imaginado em passado recente, muito além dos princípios do simples contrato de adesão.[7]
Portanto, pode-se depreender que as vontades dos contratantes são limitadas pela função social do contrato, fazendo com que o mesmo não seja eminentemente privado, mas que seja observado através de uma perspectiva social.
O jurista Miguel Reale destaca que é inerente à finalidade do contrato a sua função social e não apenas aos interesses dos contratantes:
Não há razão alguma para se sustentar que o contrato deva atender tão somente aos interesses das partes que o estipulam, porque ele, por sua própria finalidade, exerce uma função social inerente ao poder negocial que é uma das fontes do direito, ao lado da legal, da jurisprudencial e da consuetudinária.[8]
Diante disso, faz-se necessária a análise da função social do contrato em relação ao meio social externo. Significa dizer que o direito contratual deixa de ser somente negócio entre os contratantes, mas passa a interferir negativa e positivamente, também, em relação à sociedade e a terceiros. Na visão de Nelson Rosenvald:
Os bons e maus contratos repercutem socialmente. Ambos os gêneros produzem efeito cascata sobre toda a economia. Os bons promovem a confiança nas relações sociais. Já os contratos inquinados por cláusulas abusivas resultam em desprestígio aos fundamentos da boa-fé e quebra de solidariedade social.[9]
A função social do contrato ultrapassa o contorno dos interesses individuais, pois busca a proteção aos interesses coletivos. Desta forma, pode-se depreender que é legítima a intervenção social em contratos que ofendam os interesses metaindividuais, como Rosenvald continua explicando:
Daí a necessidade de oponibilidade externa dos contratos em desfavor dos interesses dos contratantes. Ou seja, é possível que os contratos satisfaçam aos desígnios particulares dos contratantes, mas ofendam interesses metaindividuais – coletivos ou difusos. Basta supor a realização de avenças que afetem o meio ambiente, direitos do consumidor ou livre concorrência. Em tais casos, a sociedade poderá intervir sobre as cláusulas contratuais ofensivas a direitos fundamentais.[10]
Importante destacar o que nos ensina Humberto Theodoro Júnior:
Por meio das leis de ordem pública, o legislador desvia o contrato de seu leito natural dentro das normas comuns dispositivas, para conduzi-lo ao comando daquilo que a moderna doutrina chama de ”dirigismo contratual”, onde as imposições e vedações são categóricas, não admitindo possam as partes revogá-las ou modificá-las.[11]
O dirigismo contratual é a intervenção do Estado através de normas gerais que têm por objetivo a prevalência dos interesses comuns, sobre os interesses particulares. Esta intervenção visa também buscar o equilíbrio entre as partes, protegendo o economicamente desfavorável do mais poderoso para garantir a justiça social.
Alguns doutrinadores dizem que o dirigismo contratual teve origem no processo evolutivo do modelo de Estado onde a proteção do contratante débil não seria uma causa e sim uma consequência. No decorrer do tempo, cada vez mais o contrato foi buscando atender o bem comum e a paz social, proporcionando mais proteção às necessidades coletivas e não apenas interesses estritamente individuais. Essa proteção ao mais vulnerável deu-se através da intervenção estatal que criou normas protetivas interferindo na plena liberdade contratual.
Ademais, vale destacar que o parágrafo único do art. 2035 do Código Civil submete as convenções aos preceitos de ordem pública: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”[12]. Percebe-se que não é apenas a simples vontade das partes que dá origem ao vínculo obrigacional, mas este só produzirá efeitos se a manifestação da vontade for conforme a ordem legal.
Assim sendo, é atribuído naturalmente ao contrato uma função social, a fim de que seja benéfica aos contratantes, desde que não seja conflitante com o interesse público e o ordenamento jurídico.
1.3 Condições de validade do contrato
Inicialmente, cabe esclarecer que o contrato, por ser uma espécie do gênero negócio jurídico, está sujeito a requisitos para a sua validade.
Todavia, estudando a estrutura da autonomia privada, o jurista Pontes de Miranda[13], em sua conhecida obra “Tratado de Direito Privado”, entendeu que os negócios jurídicos podem ser divididos em três planos de análise: a existência, a validade e a eficácia, sendo que um seria pressuposto lógico do seguinte e na falta do anterior restaria prejudicada o plano subsequente.
Como ensina Pontes de Miranda, o estudo do negócio jurídico fica sujeito a uma escalada lógica progressiva, sendo que em cada estágio há vários elementos ou requisitos a serem satisfeitos, sob pena de invalidade daquele plano. A esta teoria foi dado o nome de “escada ponteana” vez que na visão do autor, o negócio jurídico é dividido em três planos, o que gera um esquema gráfico como uma estrada com três degraus: a existência, a validade e a eficácia.
Nesse sentido, de acordo com Pontes Miranda, não tem sentido falar de validade ou invalidade de um negócio jurídico sem antes verificar a sua existência:
Os conceitos de validade ou de invalidade só se referem a atos jurídicos, isto é, a atos humanos que entraram (“plano da existência”) no mundo jurídico e se tornaram, assim, atos jurídicos.[14]
Seguindo esse raciocínio, é necessário que um contrato, em regra, para que futuramente produza efeitos, atenda aos requisitos necessários à sua validade. A falta de quaisquer destes requisitos enseja na invalidade do negócio jurídico.
Conforme ensina Orlando Gomes{C}[15], os requisitos do contrato não se confundem com os pressupostos. Estes são as condições sob as quais se desenvolve (ou pode desenvolver-se) o contrato, também chamados de elementos extrínsecos, quais sejam: capacidade das partes, idoneidade do objeto e legitimação para realizá-lo. No momento da realização de um contrato, esses pressupostos precisam estar presentes para a sua validação.
Já os requisitos de validade do contrato estão elencados no art. 104 do Código Civil, conforme abaixo reproduzido, quais sejam: objeto lícito, partes capazes e forma prescrita ou não defesa em lei:
Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I - agente capaz;
II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III - forma prescrita ou não defesa em lei.[16]
Orlando Gomes esclarece que:
Porque os pressupostos e os requisitos se completam, confundem-se, apesar de serem elementos diversos. Por simplificação, diz-se que são requisitos essenciais à validade do negócio jurídico: a capacidade do agente, a possibilidade do objeto e a forma, esta quando prescrita em lei. Sendo o contrato negócio jurídico bilateral, a vontade dos que o realizam requer exame à parte, por ser particularização que precisa ser acentuada. Assim o acordo das partes adquire importância especial entre os elementos essenciais dos negócios jurídicos bilaterais. É, de resto, sua força propulsora.[17]
Numa análise perfunctória da classificação doutrinária, os requisitos podem ser divididos em subjetivos (os que dizem respeito às partes), objetivos (e relação ao objeto do contrato) e formais (meio de revelação da vontade).
Segundo Carlos Roberto Gonçalves[18], os requisitos subjetivos consistem na manifestação de duas ou mais vontades e capacidade genérica para praticar os atos da vida civil, aptidão específica para contratar e o consentimento das partes.
a) Capacidade genérica: a capacidade genérica dos contratantes é o primeiro elemento ou condição subjetiva de ordem geral para a validade dos contratos. Estes serão nulos ou anuláveis, se a incapacidade, absoluta ou relativa, não for suprida pela representação ou pela assistência. A capacidade exigida nada mais é do que a capacidade de agir em geral (capacidade de fato), que pode inexistir em razão da menoridade, da falta do necessário discernimento ou de causa transitória, ou ser reduzida nas hipóteses mencionadas no Artigo 4º do Código Civil de 2002, quais sejam, a menoridade relativa, embriaguez habitual, dependência de tóxicos, discernimento reduzido e a prodigalidade.[19]
b) Aptidão Específica para Contratar: em alguns casos, a lei exige que a pessoa possua capacidade específica para contratar, como nos casos de doação, na transação e na alienação onerosa. A capacidade deve ser comprovada no momento em que o contratante declara a sua vontade.
c) Consentimento: o consentimento deve ser válido, ou seja, deve realmente demonstrar a vontade entre as partes. Nesse sentido, não pode ter a sua validade afetada pelos vícios ou defeitos do negócio jurídico: erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão e fraude.
Já os requisitos objetivos dizem respeito ao objeto do contrato, devendo ser lícito, possível, determinado ou determinável, conforme o artigo 104, II, do Código Civil.
a) Licitude do objeto: é condição de validade do contrato que o seu objeto seja lícito, ou seja, que não atente contra a lei, moral ou os bons costumes.
b) Possibilidade física ou jurídica do objeto: o objeto deve ser possível, caso contrário, o contrato é nulo, conforme do artigo 166, II do Código Civil. Esta invalidade pode ser física, quando procede das leis físicas ou naturais, ou pode ser jurídica, quando é proibido por lei.
c) Determinação do objeto: também é necessário que o objeto do contrato seja determinado ou determinável. Determinável é o objeto que seja indicado ao menos pelo gênero e pela quantidade, conforme o artigo 243 do Código Civil. Se o objeto for indeterminável o contrato será inválido e ineficaz.
Quanto aos requisitos formais, a regra é a liberdade de forma (CC, art. 107), devendo ser prescrita ou não defesa em lei (CC, art. 104, II).
Entretanto, para que alguns contratos sejam válidos, é exigida uma forma especial ou solene, como, por exemplo, a escritura pública para alienações imobiliárias, cujo valor seja superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País (CC, art. 108).
Por fim, o artigo 109 do Código Civil diz respeito à forma contratual que é a convencionada pelas partes: “No negócio jurídico celebrado com a cláusula de não valer sem instrumento público, este é da substância do ato.”[20]Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves, “Os contratantes podem, portanto, mediante convenção, determinar que o instrumento público torne-se necessário para a validade do negócio.”[21]Assim, a forma do contrato pode ser estipulada pelas partes desde que a lei não exija forma especial.