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A crise de eficácia do tipo penal de lavagem de dinheiro promovida por “organizações criminosas”

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4 A PROBLEMÁTICA CONCEITUAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E EXPRESSÕES CORRELATAS.

Após a análise sociológica do tema alvo deste estudo, bem como dos principais meandros que envolvem o delito de lavagem de dinheiro, tendo por antecedente o crime praticado por organização criminosa, além de ter-se concluído que a expressão “organização criminosa” é um dos elementos normativos do tipo, que, nessa qualidade, depende da atividade interpretativa, com aplicação de valores jurídicos e éticos, para sua correta compreensão, no presente capítulo dedicar-se-á justamente à problemática questão conceitual que revolve as organizações criminosas e expressões correlatas, tais como crime organizado e criminalidade organizada.

Nesse sentido, com esse propósito, buscar-se-á, tanto no ordenamento quanto na doutrina, elementos balizadores de conceituação, a fim de perquirir se, de fato, há uma suficiente definição de organização criminosa em nosso sistema penal que permita a correta aplicação do dispositivo constante do art. 1º, inciso VII, da Lei n.º 9.613/98.

Na doutrina, parece unânime a dificuldade que se impõe para atribuir um conceito preciso do que seja uma organização criminosa, o crime organizado e a criminalidade organizada, expressões que são inúmeras vezes utilizadas como sinônimos, haja vista a interligação evidente que mantêm.

Contudo, tais expressões são dignas de serem entendidas como institutos autônomos, impendendo-se a sua devida distinção, conforme assenta Luiz Regis Prado[38], nos seguintes termos:

Indubitavelmente, são conceitos interligados, que não se separam, porém distinguem-se uns dos outros. [...] Conceitua-se a criminalidade organizada como um ‘fenômeno social, econômico, político, cultural, fruto da sociedade contemporânea’ análogo ou relacionado a outros fenômenos, tais como o terrorismo, a criminalidade política e econômico-financeira.

[...]

Enquanto conceito jurídico-penal, a criminalidade organizada deve ligar-se ao delito de organização criminosa, pois, embora com ele não se confunda ou a ele não se limite, representa uma exigência ‘determinante das conseqüências jurídicas [...] de particular intensidade e gravidade. Trata-se de um conceito ‘instrumental’ ou ‘conceito-meio’ ligado à prática ou propósito de praticar delitos já existentes no ordenamento jurídico.

[...]

As organizações ou associações criminosas, como já se afirmou, não apresentam uma definição ou conceituação pacifica, tampouco de fácil apreensão. Em linhas gerais, costuma-se conceitua-las a partir dos elementos que as caracterizam. Assim, são apontadas como as principais características da criminalidade organizada: a) acumulação de poder econômico; b) alto poder de corrupção; c) alto poder de intimidação; d) estrutura piramidal.

[...] o crime organizado, entendido como a conduta praticada por indivíduos que se associam de forma organizada (o que remeteria ao conceito de organização criminosa) para o cometimento de atividades ilícitas não é uma estrutura criminosa. Nota-se, portanto, que criminalidade organizada, organização criminosa e crime organizado são expressões interligadas e muitas vezes utilizadas de forma incorreta, quando uma é empregada, por exemplo, para designar uma realidade correspondente a outra expressão.

Essa longa citação se justifica, pois, concessa vênia, nenhum outro autor parece ter conseguido, como Luiz Regis Prado, conferir abordagem tão objetiva e elucidativa sobre a questão, sendo despiciendas, até mesmo, quaisquer outras observações na tentativa de distinguir os fenômenos da criminalidade organizada, das organizações criminosas e do crime organizado, tendo em vista que importariam em meras e desnecessárias repetições, em prejuízo aos limites do presente estudo.

No entanto, feito o registro, voltamos nossos esforços, especificamente, à busca por elementos de definição das organizações criminosas, aptos a viabilizarem a aplicação do crime previsto no art. 1º, inciso VII, da Lei n.º 9.613/98.

Com efeito, verifica-se que a expressão organização criminosa foi utilizada pela primeira vez, em nosso ordenamento, na Lei n.º 9.034/95, que ficou conhecida como “Lei de Combate ao Crime Organizado”, dispondo sobre meios operacionais para prevenção e repressão do crime organizado.

Todos os meandros que envolveram a edição de referenciado diploma, permeados de discussões e emendas, são muito bem relatados por Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo[39], o qual faz um excelente apanhado histórico, desde a proposição do Projeto de Lei n.º 3.516[40] de 19.09.1989, pelo Deputado Federal Michel Temer, até sua conversão em lei, com aprovação do projeto no dia 06.04.1995 e entrada em vigor em 03.05.1995.

Contudo, em que pesem os esforços do diploma em tela de estabelecer mecanismos de investigação e combate aos crimes praticados por organizações criminosas, não se definiu o que seria esse fenômeno, muito embora tenha constado do projeto de lei que lhe deu origem um dispositivo destinado a esse fim, senão vejamos sua redação:

Art. 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa aquela que, por suas características, demonstre a existência de estrutura criminal, operando de forma sintetizada, com atuação regional, nacional e/ou internacional.[41]

Há de se reconhecer que em tal dispositivo não havia uma definição propriamente dita, tendo em vista a utilização de termos tão vagos quanto inócuos e descarregados das principais características que poderiam auxiliar na tarefa de identificar uma organização criminosa. Não por outro motivo, quando submetido à votação no Senado, o projeto de lei em tela teve extirpado o mencionado art. 2º.

No entanto, aprovada a Lei n.º 9.034/95, foi mantida a expressão organização criminosa em seu texto, sem que qualquer conceito tenha-lhe sido emprestado.

A expressão, então, foi utilizada novamente somente na Lei n.º 9.613/98, com a inclusão, conforme visto, do crime praticado por organização criminosa como antecedente ao de lavagem de dinheiro e também com a previsão de uma causa de aumento de pena pela prática do crime em tela por intermédio de organização criminosa.

Em seguida, a Lei n.º 10.217/2001, que alterou a Lei n.º 9.034/95, manteve a indefinição, bem como a já revogada Lei n.º 10.409/2002, que tratou do uso e tráfico de entorpecentes, mencionando diversas vezes as organizações criminosas e a Lei n.º 10.792/2003, que instituiu o regime disciplinar diferenciado para os integrantes de organizações criminosas, alterando a Lei de Execução Penal.

Somente em 12.03.2004, com a promulgação da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), através do Decreto n.º 5.015, é que se inseriu em nosso ordenamento definições suficientemente precisas acerca da criminalidade organizada e, mais especificamente, do que seja uma organização criminosa[42].

A Convenção de Palermo, em seu art. 2º, assim define, verbis:

a) "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material;

Parte da doutrina insiste, contudo, em afirmar que os problemas conceituais que envolvem o fenômeno da organização criminosa não foram solucionados pela ratificação da Convenção de Palermo. É o que sustenta Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo[43], para, alfim, concluir que

[...] a profusão de leis de caráter processual e o descaso do legislador penal na criação do tipo legal ocasionaram absoluta perda do referencial, pois a ordenação jurídica brasileira contém diversas disposições que regulam as investigações de uma figura delitiva, sem definição legal, muito embora dela se fale a todo momento.

Data máxima vênia, o equívoco do renomado autor e da corrente em que se insere está, em primeiro lugar, na afirmação de que os diplomas legais anteriormente mencionados fazem alusão a uma figura delitiva, pois, como afirmado em linhas pretéritas, não se verifica em nosso ordenamento qualquer dispositivo que tenha se prestado a tipificar o crime de organização criminosa, de forma que, sendo sempre citado como um elemento normativo, não há qualquer óbice à aplicabilidade dessas normas, em que pese haver de se reconhecer a existência de dificuldades práticas para tanto, tendo em vista as barreiras da transindividualidade, sobretudo dos bens protegidos, que envolvem o fenômeno em exame.

Tais barreiras, contudo, não implicam total embuste a esse intento, uma vez que há sim suficientes elementos de definição, alcançados no decorrer das discussões doutrinárias acerca da matéria e da evolução da legislação pátria, com a internalização da Convenção de Palermo, pondo fim a essas celeumas.

Nesse mesmo sentido, destaca-se Rodrigo Carneiro Gomes[44], quando assevera que

[...] encerrando debates no sentido de que a Lei n.º 9.034/95 seria um corpo legislativo sem alma (pela ausência de definição legal de “crime organizado”), a Convenção de Palermo (Decreto n. 5.015 /2004) preceitua a definição de grupo criminoso organizado e criminaliza, de forma mandatária para todos os 147 países que a subscreveram e a ratificaram, a participação individual ou coletiva nessa manifestação delitiva.

[...]

O Direito Internacional pôs fim a entendimentos doutrinários internos colidentes não apenas porque complementa a Lei n. 9.034/95 ao estabelecer definição de crime organizado, mas porque encerra debates antes incessantes que procuravam “demonizar” e desacreditar a real existência de organizações criminosas.

Bem verdade, a busca em instrumentos jurídico-internacionais por conceitos referentes a fenômenos criminológicos com notas flagrantemente transnacionais, como o ora tratado, consubstancia-se em verdadeira demanda de tais espécies.

É que, bem refletindo o tema, observa-se que para viabilizar a repressão e combate do crime organizado, sobretudo a punição dos responsáveis, torna-se premente a uniformização, tanto quanto possível, no trato legal da matéria, de forma a permitir a adequada e harmoniosa criminalização, em todo o mundo, de atividades que ultrapassam as barreiras territoriais e dependem, para sua coibição, da cooperação internacional entre os países envolvidos, evitando-se, com isso, que, por falta ou deficiência de previsão legal por parte de uma das partes, redes criminosas da mais alta periculosidade consigam se perpetuar, através de brechas legais existentes em diplomas esparsos e inócuos.

Nesse sentido, vejamos o exemplo de um agente que, em território brasileiro, integrando organização criminosa internacional, promova a dissimulação da origem dos produtos dos crimes por ele praticados e, em seguida, evada-se para outro país, no qual continua suas atividades, mas que não criminaliza a conduta de dissimular e tão somente de ocultar bens. Nessa hipótese, pelo princípio da dupla incriminação do fato, não se faria possível eventual pedido de extradição, em razão de uma simples incompatibilidade de diplomas, que, a despeito de possuírem um mesmo espírito, distanciam-se no plano da tipificação do delito.

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A respeito do princípio da dupla incriminação do fato, Paulo Henrique Gonçalves Portela[45] conceitua:

A extradição deve apoiar-se também no princípio da identidade, também conhecido como princípio da 'dupla tipicidade' ou da 'dúplice tipicidade', segundo o qual o ato delituoso em que se baseia o pedido extraordinário deve ser considerado ilícito no Estado solicitante ou no solicitado.

É evidente que, no exemplo acima citado, a existência de normas internacionais integralizadas aos ordenamentos internos dos dois países, oferecendo conceitos harmonizados dos principais elementos do tipo em tela, permitiria a eliminação das pequenas barreiras terminológicas para uma eficiente repressão do crime, satisfazendo-se, assim, a demanda de determinados fenômenos criminológicos marcados pela característica da transnacionalidade.

Com efeito, tomando por base sobretudo as diretrizes ofertadas pela Convenção de Palermo, pode-se afirmar que as principais notas definidoras da organização criminosa são: a) a pluralidade de agentes criminosos (mínimo três); b) a ilicitude da conduta (atividade necessariamente ilícita); c) a existência de uma cadeia de comando com divisão de tarefas e atuação combinada (divisão piramidal, hierarquizada, com unidade de desígnios); d) estabilidade e permanência (organização e coesão em sua estrutura); e) natureza regional, nacional ou transnacional (o âmbito de atuação pode ser variado, não sendo necessária transnacionalidade); e f) finalidade de obtenção de vantagem financeira, econômica ou material (os lucros auferidos pelas organizações promovem seu autofinanciamento e a expansão de suas atividades, no entanto, o intuito lucrativo pode ser secundário, sendo alguma vantagem material, como o sexo, o primário)[46].

Há, ainda, outras características que poderiam ser acrescentadas, como “alto poder de corrupção” (PRADO, 2009, pág. 375), “alto poder de intimidação” (PRADO, 2009, pág. 375), “uso de lógica empresarial“ (SOBRINHO, 2009, pág. 32) e “busca da máxima lucratividade no exercício de atividades licitas e ilícitas, inclusive mediante a realização de operações de lavagem de capitais” (SOBRINHO, 2009, pág. 32).

Conforme visto, é comumente utilizada a técnica de caracterizar para definir o que seja uma organização criminosa, mas, do que se extrai da Convenção de Palermo, haveria em essência três requisitos para a identificação de um grupo criminoso organizado, sendo eles, a saber, o requisito estrutural (grupo criminoso organizado, consubstanciado na reunião de três ou mais pessoas), o requisito temporal (forma estável de reunião) e o requisito finalístico (finalidade de cometer crimes graves, assim considerados aqueles punidos com pena igual ou superior a quatro anos, com intuito de auferir lucro)[47].

Registramos, por fim, que, na tarefa de conceituar as organizações criminosas, o estudioso do direito deverá isentar-se dos mitos criados em torno da questão que fizeram surgir, conforme ressaltado por Antônio Pitombo, alguns modelos que distorceram completamente a apreciação correta do fenômeno, sendo eles, o mafioso, o de conspiração étnica, o empresarial e o da transnacionalidade[48] bem como deverá buscar distinguir tal fenômeno do já conhecido instituto das quadrilhas ou bandos, não incorrendo no deslize de confundi-los, dada sua flagrante autonomia, com assunção de características próprias e bastante particulares[49].

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Sobre a autora
Katherine Bezerra Carvalho de Melo

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera/Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Katherine Bezerra Carvalho. A crise de eficácia do tipo penal de lavagem de dinheiro promovida por “organizações criminosas”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4258, 27 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30970. Acesso em: 22 dez. 2024.

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