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Relativismo, universalismo e direito fundamental à vida:

Breves considerações sobre o infanticídio indígena no Brasil

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10/12/2014 às 10:25
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4. APLICAÇÃO DA PONDERAÇÃO DE VALORES

A par da celeuma que se instaura em torno do problema ora debatido, faz-se necessário lançar mão de uma técnica de ponderação de valores, tendo como pano de fundo o princípio da dignidade da pessoa humana (que é o principio informador na interpretação de todo e qualquer direito fundamental) e o do direito à diversidade cultural dos povos indígenas. Nesse diapasão, poderíamos investigar se o atual projeto legislativo, em substituição ao original PL 1057/2007, atende ao resultado obtido dessa ponderação de valores.

A premissa que se faz latente, para nós, demonstra a preponderância  do direito à vida em detrimento do direito à liberdade cultural no conflito entre direitos fundamentais na esfera judicante para o caso em estudo.

Porém, na tentativa de para a erradicação da prática de infanticídio por algumas etnias indígenas brasileiras, a ser proposta por qualquer operador do direito, deve ser considerado que a solução não pode se afastar da necessidade de, no momento da efetivação do projeto solucionador, não impor, arbitrariamente, a ideia dominante de uma cultura completamente diferente da dos ameríndios.

Nesse contexto, a solução do problema envolvendo a efetividade do quadro normativo brasileiro deverá ser alcançada a partir da consideração dessas premissas básicas: direito inalienável à vida; e direito à diversidade cultural.

Porém, não há como deixar de tomar partido por uma das correntes utilizadas como ponto de partida para análise do infanticídio, alhures citadas. Tomamos como fundamento, nessa situação específica, a perspectiva do universalismo como mais bem apropriada para a construção de uma solução, mas sem deixar de considerar os pontos pertinentes que envolvem o direito à proteção da identidade cultural dos povos indígenas – aspecto de certa forma tangenciado pelo relativismo e suas vertentes teóricas.

Isso porque o direito, e a própria história humana universal, devem ter em si, como elemento constitutivo e finalístico, um propósito a eles inerente, não explícito nem claro, mas que deve ser objeto de indagação de todo indivíduo que não se considera como mero fruto do acaso e por ele direcionado.

Norberto Bobbio, em sua obra “A Era dos Direitos”, acredita que existe um objetivo na história da humanidade, sob a ótica dos direitos do homem. E, para ele, esse objetivo, essa finalidade é o progresso moral da sociedade, que pode ser inferido, como um exemplo, das Declarações de Direitos que surgiram após as duas grandes guerras. Tais eventos históricos, e outros que evidenciaram a tentativa do homem em estabelecer direitos e garantias, podem ser considerados “indícios reveladores de um processo, não necessariamente intencional, no sentido de uma direção pre-estabelecida” [21]. Não obstante Bobbio não consiga definir com precisão científica sua tese[22], o Autor demonstra esperança e suplica, ao relacionar o atraso na colocação prática do progresso moral, para que “busquemos não aumentar esse atraso com nossa incredulidade, com nossa indolência, com nosso ceticismo. Não temos muito tempo a perder” [23].

A partir dessa perspectiva de progresso que, idealmente, deveria fazer parte da história humana e do direito, podemos também vislumbrar que a atual proteção à vida e à dignidade humana encontram patamar consideravelmente elevado. Nesse contexto, o direito à diversidade cultural, apesar de ser também um reflexo do progresso moral da sociedade sobre o mundo jurídico - Bobbio destaca que nos processos de conversão do direito positivo ativou-se, nos últimos anos, a tendência de especificação, pela qual categorias especiais de grupos tiveram o reconhecimento de direitos[24] –, não pode ser transposto ao mesmo nível do direito à vida, de forma a mitigar, no caso dos infanticídios, a sua natureza de indisponibilidade.

No caso em análise, a proposta de solução legislativa, notadamente aquela consubstanciado no substituto do PL original, poderia positivar uma ação estatal mais contundente no enfrentamento do problema, de forma a tutelar o direito à vida das crianças potencialmente vítimas. No atual estágio moral em que se encontra a humanidade – e, especificamente a sociedade brasileira -, não se pode admitir que a matança de crianças, ainda que no ambiente cultural diverso e propício, seja aceita com certa naturalidade.


5. CONCLUSÃO

Pelo conteúdo do substitutivo do PL 1057/2007, apresentado pela Deputada Janete, pode-se visualizar uma tendência de ação paulatina do Estado Brasileiro na solução do problema do infanticídio indígena.

Contudo, entendemos que a atual perspectiva que se pode retirar daquele parecer tem grandes chances de se mostrar insuficiente para proteger a vida das crianças potencialmente vítimas de morte.

A questão, analisada sob a ótica do relativismo, tende a ser solucionada da forma cogitada nessa nova diretriz sinalizada pelo Congresso Nacional; por outro lado, se analisarmos sob o foco do universalismo, toda medida mais contundente e efetiva em prol da proteção do direito fundamental à vida será bem vinda, não havendo que se criticar a imposição de sanções legais àqueles, não indígenas, que se omitam em impedir o extermínio de crianças.

Comungamos, em parte, com a posição defendida pelo Doutor Guilherme Scotti, no sentido de que a via criminalizadora proposta pelo PL original tenderia a dificultar o trabalho daqueles que atuam junto aos povos indígenas, além de poder causar o sentimento de marginalização das sociedades indígenas, negando-lhes o pleno direito à auto estima[25].

Porém, a via de solução definida no Parecer de Substitutivo ao PL original não trouxe qualquer orientação de ação efetiva e rápida estatal no sentido de, através do diálogo intercultural, levar esclarecimentos à comunidade indígena, sobre a atual visão da sociedade mundial (em sua maior parte) acerca do valor da vida, explicação e conscientização do conceito deste elemento, alternativas de enfrentamento dos conflitos internos dessas comunidades, etc.

Entendemos que, nesse aspecto, o PL original atuava com mais incisão e praticidade, pois, não apenas sugeria, mas induzia o Poder Estatal na adoção de medidas para a erradicação das práticas tradicionais nocivas, através da educação e do diálogo em direitos humanos entre às sociedades em que existem tais práticas e com os agentes públicos e profissionais que atuam nestas sociedades. Outra iniciativa que consideramos marcante, e que entendemos mereça ser repensada, é a previsão de apoio da sociedade civil no intuito daquele esclarecimento sobre o valor da vida humana, pois, como se sabe, existem diversas organizações, com caráter religioso ou não, que já atuam nas comunidades indígenas sem o apoio devido e, provavelmente, sem o esclarecimento e direcionamento necessário no sentido de uma atuação mais profissional em respeito à identidade cultural dos silvícolas.

Enfim, não perdemos a chance de tentar solucionar a questão da maneira mais efetiva possível, na medida em que o PL ainda não é Lei e que, ainda que aprovado nos termos atuais, não impede a atuação dos grupos sociais interessados na proteção das potenciais vítimas. Com efeito, admitir a prática do infanticídio, sem qualquer medida eficaz de erradicação rápida desta prática pelas etnias indígenas já citadas, seria complacência com práticas de desvalorização do ser humano – o qual, seja qual sociedade que pertença, merece, hoje mais do que nunca, respeito e valorização de sua condição humana.


Notas

[1]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,1998.

[2]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,1998.

[3]Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional.  - 24. e.d – São Paulo: Malheiros, 1999. p. 488.

[4]Infanticídio nas comunidades indígenas no Brasil, Disponível em http://www.hakani.org/pt/palavra_pais.asp. Acesso em 21/05/2013 .

[5]FEITOSA, Saulo Ferreira; TARDIVO, Carla Rúbia Florêncio; CARVALHO, Samuel José de. Bioética, cultura e infanticídio em comunidades indígenas brasileiras: o caso Suruahá [monografia]. CORNELLI, Gabriele e GARRAFA, Volnei (orientadores). UNB. Brasília, 2006.

[6]Infanticídio nas comunidades indígenas no Brasil, Disponível em http://www.hakani.org/pt/palavra_pais.asp. Acesso em 21/05/2013 .

[7]“Estu do contesta criminalização do infanticídio indígena”, disponível em: http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=5232&Itemid=2, acessado em 21 de maio de 2013.

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[8]É o que se extrai do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Consulta Disponível em:  http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php Acesso em 25/05/2013.

[9]LIDÓRIO, Ronaldo. Não há morte sem dor: uma visão antropológica sobre o infanticídio indígena no Brasil. Disponível em Disponível em:<http://www.ronaldo.lidorio.combr/index.php?option=com_content&task=view&id=81&Itemid=31>. Acesso em 25 de maio de 2013

[10]SANTOS, Natália de França. O infanticídio indígena no Brasil: O universalismo dos direitos humanos em face do Relativismo cultural. Disponível em: <http://www.derechoycambiosocial.com/revista025/infanticidio_y_derechos_humanos.pdf>. Acesso em 25 de maio de 2013

[11]ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>. Acesso em 25/05/2013.

[12]Declaração Universal dos Direitos Humanos. Consulta Disponível em:< http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/viena.html>. Acesso em 25/05/2013.

[13]REPA, Luiz. Reconhecimento e Justiça na Teoria Crítica da Sociedade em Axel Honneth. In: Nobre, Marcos (org.). Curso Livre de Teoria Crítica. Campinas: Papirus, 2008, p. 184.

[14]HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento – A gramática Moral dos Conflitos Sociais. São Paulo: Editora 34, 2003. P. 179.

[15]WIGGERSHAUS, Rolf. A escola de Frankfurt – História, desenvolvimento teórico, significação política. 2 ed. Trad. De Wolfgang Leo Maar. Rio de janeiro: Difel, 2006, p.70.

[16]BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

[17]Com efeito, tendo em vista que o ato praticado pelos indígenas está sendo, neste momento, analisado sob uma perspectiva diversa daquela em que se insere o próprio ato, além de o tipo penal conter outros elementos não necessariamente presentes nas práticas ora analisadas, não seria a melhor expressão a ser utilizada.

[18]SCOTTI, Gulherme; DUARTE, Evandro Piza. Infanticídio indígena no Brasil: desafio multicultural. (Artigo).

[19]PL 1057/2007. Consulta Disponível em:< http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=459157&filename=PL+1057/2007>. Acesso em 25/05/2013.

[20]Parecer substitutivo do PL 1057/2007. Consulta Disponível em:< http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=872647&filename=Tramitacao-PL+1057/2007>. Acesso em 25/05/2013.

[21]BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro. Campus. Pg. 47.

[22]Em determinado trecho da obra, Bobbio destaca que “enquanto parece indubitável que o progresso técnico e científico é efetivo, tendo mostrado até agora as duas características da continuidade e irreversibilidade, bem mais difícil – se não mais arriscado – é enfrentar o problema da efetividade do progresso moral...”.

[23]BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro. Campus. Pg. 61.

[24]BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro. Campus. Pg. 58-59.

[25]SCOTTI, Gulherme; DUARTE, Evandro Piza. Infanticídio indígena no Brasil: desafio multicultural. (Artigo).

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Lucas Souza. Relativismo, universalismo e direito fundamental à vida:: Breves considerações sobre o infanticídio indígena no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4179, 10 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31048. Acesso em: 22 dez. 2024.

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