3. HERMENÊUTICA
Ensina Friede (2002), que a hermenêutica não deve ser confundida com interpretação, pois esta é, essencialmente, a aplicação daquela. Para o autor, a hermenêutica pode ser entendida como “ a verdadeira teoria científica da denominada arte da interpretação.”
Para melhor entendimento da matéria Friede (2002) cita Ráo (1952):
“A hermenêutica tem por objeto investigar e coordenar, por modo sistemático, os princípios científicos e leis decorrentes que disciplinam a apuração do conteúdo, do sentido e dos fins das normas jurídicas e a restauração do conceito orgânico do Direito. Para efeito de sua aplicação e interpretação, por meio de regras e processos especiais, procurando realizar, praticamente, estes princípios e estas leis científicas.
A aplicação das normas jurídicas consiste na técnica de adaptação dos preceitos, nelas contidos e assim interpretados, às situações de fato que se lhes subordinam. (RÁO, 1952 apud FRIEDE, 2002).”
Sobre a hermenêutica, diz Falcão (2004), “Viver é estar condenado- grata condenação! – a interpretar constantemente. É estar jungido a tirar sentido de tudo, a cada instante. Captar sentido e, ao mesmo tempo, ensejar sentido, a ser captado pelos outros. Eis a teia da comunicação.”
E aduz Falcão (2004), “se a atividade ou o simples ato de captação do sentido é a interpretação, as regras pelas quais ela se opera e o entendimento de suas estruturas e do seu funcionamento, enfim, o entendimento dos seus labirintos é a Hermenêutica.”
Na interpretação[8] teleológica, o intérprete deve buscar no texto contido na norma um sentido que favoreça a espécie para quem ela regulou favoravelmente e não em prejuízo àquele a quem a norma intenta proteger.
O intérprete, em uma interpretação teleológica, não pode restringir a proteção legal, somente podendo ampliá-la.
Em um ordenamento jurídico há várias partes, tais como: normas, assuntos e dispositivos que não terão sentido se analisadas, de forma isolada. Para haver uma unificação destas partes, é feita a interpretação sistemática.
A interpretação sistemática, que também conta com a ajuda dos elementos lógica e gramática, é o verificar a intenção de uma determinada norma levando-se em consideração todo o corpo normativo como um grande sistema, unificar.
É enganoso pensar na existência de um só meio de interpretação como o principal. Os diferentes ângulos de interpretação não se excluem, mas completam-se, necessitando o intérprete utilizar-se daquele(s) que produza(m) o melhor alcance da intenção da lei, para aplicá-los ao caso concreto.
Sempre tentando encontrar justiça, aquele que diz o direito com prudência deve seguir os históricos preceitos, que alguns atribuem ao romano Ulpiano: “Viver honestamente, não lesar ninguém e dar a cada um o que é seu.”.
3.1. O DIREITO DAS SUCESSÕES COMO DIREITO FUNDAMENTAL: POR UMA HERMENÊUTICA CIVIL-CONSTITUCIONAL NECESSÁRIA
Nas palavras de Miranda (2000, p. 8-9), direito fundamental é “toda a posição jurídica subjetiva das pessoas enquanto consagrada na Lei Fundamental”. Aprofundando essa conceituação, Hesse (1998) estabelece um caráter duplo dos direitos fundamentais, constituindo autênticos direitos subjetivos na medida em que se revelam como direitos subjetivos básicos do cidadão, mas operando também como direito objetivo posto no sentido de garantir o cidadão perante a atuação do Estado, assim como aplicável igualmente às relações privadas com outros cidadãos.
Ferreira Filho (2008), ao lecionar sobre os direitos fundamentais, aponta que a sua evolução histórica inicia-se no século XVII com os chamados direitos fundamentais de primeira geração, este referente às liberdades públicas. Com o término da I Guerra Mundial e o advento da Constituição de Weimarer inauguram-se os direitos sociais e econômicos. Atualmente, no entendimento do citado autor, assiste-se a construção da terceira geração de direitos fundamentais, os direitos de solidariedade.
Poletto (2013) destaca que o direito sucessório é corolário do direito de propriedade, pois compõe um dos seus elementos essenciais: a liberdade de transmitir os bens que formam o seu patrimônio.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira que explicitamente versou sobre o direito de suceder causa mortis, em seu art. 5°, inciso XXX, depois de assegurar em seu caput, entre outros direitos, a inviolabilidade da propriedade.
Reconhecido o direito sucessório como autêntico direito fundamental, sua exclusão ou mesmo limitação não pode ser instituída ou aplicada ao arrepio dos princípios constitucionais.
Especificamente na seara sucessória as disposições legais atinentes à indignidade historicamente sempre foi encarada pela doutrina e pelos tribunais como normas restritivas de direito, que exigem, consoante às regras basilares de hermenêutica, interpretação restritiva do texto legal. Contudo, conforme aponta Poletto (2013), essa análise parte de uma premissa superada, tendo em vista que a privação do direito hereditário pelo Código Civil possui fundamento constitucional, possuindo, na realidade, função instrumentalizadora de proteção ao postulado da dignidade humana, este então nitidamente marcado como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1°, inciso III) e, nos dizeres de Nery (2002), supraprincípio de todo o sistema normativo.
A dignidade da pessoa humana, no entendimento de Azevedo (2002), abarca o reconhecimento da intangibilidade da vida como pressuposto absoluto de onde se retiram três consequências diretas: exigência ao respeito da integridade psico-física, às condições materiais mínimas e a liberdade e igualdade entre os homens.
No que tange à relação entre o direito privado e direito constitucional, pode-se afirmar que a Constituição, enquanto tábua axiológica, concede à legislação ordinária tarefa de instrumentalizá-los. Nesse viés, oportunas são as palavras de Lorenzetti (1998, p. 253) ao afirmar que “o Direito Privado é Direito Constitucional aplicado, pois nele se detecta o projeto de vida em comum que a Constituição tenta impor; o Direito Privado representa os valores sociais de vigência efetiva”. Desse modo, é possível afirmar que por meio do direito privado também se materializam preceitos básicos consolidados na Lei Fundamental, sendo esse fenômeno denominado eficácia civil dos direitos fundamentais (CANOTILHO, 2003).
Dentro dessa perspectiva é que o art. 5°, inciso XXX, da Constituição da República Federativa do Brasil representa nitidamente uma garantia institucional cujo âmbito de proteção é estritamente normativo, cabendo ao legislador ordinário determinar a amplitude, a conformação e os modos de exercício do Direito (MARTINS-COSTA, 2011).
Os direitos fundamentais também exercem um efeito de irradiação, conformando todo o espírito do ordenamento na busca da sua máxima efetivação. A expressão força normativa da constituição, cunhada por Hesse (1991), induz a elaboração e construção de um direito privado solidário. Essa importante alteração axiológica considerou a pessoa humana como valor prioritário e fundamental da nova ordem jurídica brasileira. (AMARAL, 2009).
Ao analisar a relação dignidade humana e direito sucessório, sob este aspecto civil-constitucional, interessante se torna a conclusão de Poletto (2013) ao registrar que a privação hereditária, exposta pela legislação ordinária, representa autêntica prestação normativa, ou seja, normas infra-constitucionais que tutelam e efetivam direitos fundamentais, pois o resultado legislativo seria um sopesamento de conflitos entre dois direitos fundamentais (dignidade humana versus direito sucessório), tendo sido dado maior relevância valores relativos á pessoa, sobretudo quanto à pessoa humana do de cujus e de seus familiares.
O direito sucessório à herança não pode ser entendido como um mero direito subjetivo, ou seja, não se trata apenas de um poder reconhecido pelo ordenamento a um sujeito para realização de um interesse próprio. Conforme destaca Perlingieri (2002, p. 120) “no ordenamento moderno, o interesse é tutelado se e enquanto for conforme não apenas ao interesse do titular, mas também àquele da coletividade”.
Uma nova ordem hermenêutica está configurada com a vigência do Código Civil de 2002, com pretensão de conferir ao juiz a atribuição de pautar as suas decisões com uma carga maior de valores éticos tendo "o valor da pessoa humana como fonte de todos os valores” (REALE, 1999, p.9)
4. A ETICIDADE NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
Aristóteles considera as virtudes éticas como mediania (meio-justo), onde as condições subjetivas são a vontade, a deliberação, a escolha e responsabilidade. Para este grande filósofo, a justiça é a principal virtude ética. (SOARES, 2012).
Ainda segundo Soares (2012), “Aristóteles entendia que o ato conforme a lei era justo porquanto esta conduta ia ao encontro do fim a que se destinava a lei, qual seja, o bem comum de todas as pessoas, a eudaimonia[9].”
“Justo, então, é aquilo que é conforme a lei e correto; e o injusto é o ilegal e iníquo”. (ARISTÓTELES, 2006).
O termo “ética”[10] ou “ético”, não consta na Lei 10.406 de 2002 (Código Civil Brasileiro), mas a palavra boa-fé aparece diversas vezes.
Como ensina Delgado (2003) sobre o novo código civil: “sua preocupação com a aplicação de princípios éticos nas relações jurídicas de direito privado é revelada em vários dos seus artigos.” e acrescenta que, ao se examinar seus 2.046 artigos nota-se que ele está apoiado em “quatro pilares básicos: eticidade, sociabilidade, operosidade e sistematicidade.”
“É expressiva, nesses aspectos de identificação das diretrizes teóricas do Novo Código Civil, a afirmação de Miguel Reale no sentido de se compreender 'l..] que a nova Lei Civil se distingue da anterior pela freqüente referência de seus dispositivos aos princípios de eqüidade, de boa-fé, de equilíbrio contratual, de correção, de lealdade, de respeito aos usos e costumes do lugar das convenções, de interpretação da vontade tal como é consubstanciada etc., sempre levando em conta a ética da situação, sob cuja luz a igualdade deixa de ser vista in abstrato, para se concretizar em uma relação de proporcionalidade". (MARTINS COSTA, 2002 apud DELGADO, 2003).”
Lembrando que Miguel Reale foi o supervisor da comissão elaboradora do Código Civil Brasileiro de 2002.
Não bastasse isto, Delgado (2003) traz em seu texto A Ética no Novo Código Civil, artigos que revelam conteúdo ético, tais como: 113, 164, 422, 765, 766, 879, 906,1. 201, 1.202, 1.203, 1.214, 1.215, 1.216, 1.217,1. 218, 1.219, 1.238, 1.239, 1.268, 1.561, dentre outros.
Sem falar dos tão propalados, justamente por sua falta de ética, pacta corvina[11] e enriquecimento sem causa (art. 884).
Resta claro que a eticidade, está presente na natureza, na essência ao longo de todo o corpo do atual código civil.
5. EXCLUSÃO POR INDIGNIDADE NO DIREITO ITALIANO E O PROJETO DE LEI SENADO – PLS N° 118/2010
No direito civil italiano, tal como no Direito Civil brasileiro, assim como reconhece o direito sucessório, também prevê normas para exclusão por ato de indignidade. Desta forma, o Codice Civile estipula no art. 463 as hipóteses de exclusão por indignidade.
“Art. 463- Casi d'indegnità
E' escluso dalla successione come indegno:
l) chi ha volontariamente ucciso o tentato di uccidere la persona della cui successione si tratta, o il coniuge, o un discendente, o un ascendente della medesima, purché non ricorra alcuna delle cause che escludono la punibilità a norma della legge penale;
2) chi ha commesso, in danno di una di tali persone, un fatto al quale la legge penale dichiara applicabili le disposizioni sull'omicidio;
3) chi ha denunziato una di tali persone per reato punibile con l'ergastolo o con la reclusione per un tempo non inferiore nel minimo a tre anni, se la denunzia è stata dichiarata calunniosa in giudizio penale; ovvero ha testimoniato contro le persone medesime imputate dei predetti reati, se la testimonianza è stata dichiarata, nei confronti di lui, falsa in giudizio penale;
4) chi ha indotto con dolo o violenza la persona, della cui successione si tratta, a fare, revocare o mutare il testamento, o ne l'ha impedita;
5) chi ha soppresso, celato o alterato il testamento dal quale la successione sarebbe stata regolata;
6) chi ha formato un testamento falso o ne ha fatto scientemente uso.[12]”.
Nota-se que a regra do item 1 do art. 463 do Codice Civile é semelhante a do art. 1.814, inciso I, do Código Civil brasileiro, mas a norma brasileira restringiu a hipótese de incidência ao prescrever que somente o homicídio doloso, tentado ou consumado, irá excluir o herdeiro, ao passo que a legislação italiana ao utilizar a expressão ucciso o tentato di uccidere (matou ou tentou matar) ampliou a possibilidade de incidência para os crimes contra a pessoa previstas no Codice Penale italiano.
“Titolo XII - Dei delitti contro la persona
Capo I - Dei delitti contro la vita e l'incolumità individuale(...)
Art. 578. Infanticidio in condizioni di abbandono materiale e morale.
La madre che cagiona la morte del proprio neonato immediatamente dopo il parto, o del feto durante il parto, quando il fatto è determinato da condizioni di abbandono materiale e morale connesse al parto, è punita con la reclusione da quattro a dodici anni.(...)
Art. 579. Omicidio del consenziente.
Chiunque cagiona la morte di un uomo, col consenso di lui, è punito con la reclusione da sei a quindici anni.(...)
Art. 580. Istigazione o aiuto al suicidio.
Chiunque determina altrui al suicidio o rafforza l'altrui proposito di suicidio, ovvero ne agevola in qualsiasi modo l'esecuzione, è punito, se il suicidio avviene, con la reclusione da cinque a dodici anni. Se il suicidio non avviene, è punito con la reclusione da uno a cinque anni sempre che dal tentativo di suicidio derivi una lesione personale grave o gravissima.[13]”.
Denota-se a preocupação da legislação civil italiana com a conduta de que uma pessoa que atente contra a vida do de cujus não poderia receber a herança, pois, aos olhos da sociedade, ter-se-ia um sentimento de reprovação, não sendo ético participar de um ato onde se retira a vida de alguém e beneficiar-se com este evento.
Assim sendo, Cicu (1954) conclui que no direito italiano qualquer ato atentatório a vida do de cujus enseja a exclusão por indignidade, uma vez que as disposições do art. 463 do Codice Civile remetem-se aos dispositivos dos arts. 578 a 580 do Codice Penale.
Atenta às incongruências da atual redação do art. 1814, inciso I, do Código Civil brasileiro, a Senadora Maria do Carmo Alves (DEM/SE), no dia 04 de maio de 2010 propôs no Senado Federal o PLS n° 118/2010 com o intuito de alterar os dispositivos contidos no art. 1.814 de forma a adequar a lei civil brasileira à contemporânea realidade jurídica e social, procurando fortalecer e proteger a ética nas relações parentais, sancionando aqueles que agem de forma ilícita e criminosa contra os membros da própria família.
Desta forma, segundo o referido projeto de lei, a redação do art. 1.814 passaria a ter a seguinte redação:
“CAPÍTULO V
Dos Impedidos de Suceder por Indignidade
Art. 1.814. São impedidos de suceder, direta ou indiretamente, por indignidade:
I – aquele que houver provocado, ou tentado provocar, dolosa e antijuridicamente, a morte do autor da herança, ou de pessoa a ele intimamente ligada; (SENADO FEDERAL, 2010, online)”
Após o processo legislativo interno do Senado Federal, texto final aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do PLS n° 118/2010 ficou consolidado em 22 de março de 2011 da seguinte forma:
“CAPÍTULO V
DOS IMPEDIDOS DE SUCEDER POR INDIGNIDADE
Art. 1.814. Fica impedido de suceder, direta ou indiretamente, por indignidade, aquele que:
I – na condição de autor, coautor ou partícipe, tenha praticado ou tentado praticar, dolosamente, qualquer ato que importe em ofensa à vida ou à dignidade sexual do autor da herança ou de seu cônjuge, companheiro ou parente, por consanguinidade ou afinidade, até o segundo grau; (SENADO FEDERAL, 2011, online)”.
No dia 04de abril de 2011 o PLS n° 118/2010 foi recebido na Câmara dos Deputados e, até a presente data, o PL n°867/2011 (número de tramitação na Câmara dos Deputados), encontra-se na Comissão de Seguridade Social e Família (CCSF) sob a relatoria do Deputado Willian Dib (PSDB/SP), sendo que o seu parecer é favorável ao novo texto do art. 1.814 do Código Civil (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2012, ONLINE).
O PLS n° 118/2010 e o PL n°867/2011 se aproximam do Codice Civile italiano, o que se encontra coerente com a eticidade exigida nas relações privadas e fundamentadas nos princípios constitucionais vigentes.