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As finalidades do inquérito policial diante das novas demandas midiáticas

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4.    O POPULISMO PENAL MIDIÁTICO E SUA INFLUÊNCIA NO SISTEMA DE  JUSTIÇA CRIMINAL

O vocábulo democracia é dotado de forte intensidade, mas não é somente disposição de espírito que pode conduzir um país ao estado democrático. A Constituição Federal de 1988 traz em seu bojo conteúdo democrático. É um fato. Mas não podemos nos fazer democráticos, renascermos sob este título de um momento para outro.  Nas lições do mestre Ferreira Filho, referindo-se a promulgação da Constituição de 1988: "O mundo hoje é unanimemente democrático. Todos os governos e todos os povos pretendem ser democráticos. Todos se declaram pela democracia e, não raro, se entredevoram pela democracia".[11]

A promoção da justiça criminal, circunscrita ao trabalho desenvolvido pela Polícia Civil, especificamente, focado no inquérito policial como meio de apuração das infrações penais, consiste em conciliar os direitos e garantias constitucionais da pessoa investigada, respeitando os princípios adotados na Carta Magna com o direito da população de viver em uma sociedade com segurança pública.

E, tendo este como ponto máxime de nosso estudo, consideramos que o inquérito policial possui um aspecto muito mais abrangente do que os clássicos o pretendem e deveras intenso quando retiramos o véu que lhe é atirado pelos reticentes, a fim de encobrir-lhe sua real finalidade, vale dizer, o inquérito não se restringe a satisfação do jus puniendi, nem a servir ao órgão acusatório, seu valor é muito mais nobre.

As âncoras que nos atrelam ao posicionamento clássico que nega aplicação dos princípios do contraditório e ampla defesa ao inquérito são as mesmas que nos proporcionam o afogamento nas profundezas da descrença, do menosprezo ao inquérito e a Polícia Civil, afinal, este é o principal trabalho, a apuração das infrações penais.

De outro giro, na raiz, não podemos esquecer a liturgia do populismo penal. Estamos na era da Justiça televisiva, de teleaudiências, tele julgamentos, de acompanhamentos online de investigações policiais, inúmeras as tentativas da impressa em se imiscuir nas investigações policiais.

A Justiça populista arroga-se num conhecimento que não dispõe e apresenta como num passe de mágica, entabulada por discursos moralistas, quase bíblicos, a solução para as dores que assolam a população. A retórica rasa, desprovida de razão, é sempre a mesma consubstanciada em jargões “o sistema penal brasileiro é frouxo”, “a segurança pública está falida”, “as leis são brandas”, “precisamos da pena de morte”, reclama-se, ainda, pela diminuição da idade penal, por penas mais duras, pela maior criminalização seja lá de que ato for ainda que à mercê de não preencher os mínimos e clássicos requisitos para se entabular um fato como crime, enfim redundam em estereótipos sensacionalistas, pautados numa visão messiânica do assunto.

E neste diapasão, numa briga diabólica pela audiência é, a onda de crimes, a menina dos olhos da imprensa. E neste mesmo patamar encontram-se “soluções”, parecidas com revelações milagrosas, deparamo-nos com a nova figura de Moisés que, com seu cajado, abre o Mar Vermelho. Aqui, para nossos “salvadores” bastam microfones, sejam em palanques políticos, nas tribunas das Câmaras ou Senado Federal ou nos auditórios.

Não sabemos se se trata da opinião pública ou da opinião publicada.

Neste panorama, Luis Flávio Gomes, citando Wisehart, revelou “(...) aqui há o que os lógicos chamam de reciprocidade de causa e efeito, a imprensa faz a “opinião pública” e a “opinião pública” faz a imprensa. Como em outros aspectos de nossa vida social, somos confrontados por um círculo vicioso”. No entanto, este círculo de retroalimentação deve ser rompido, como advertia.” [12]

E é neste passo que a opinião pública constrói seu juízo sobre políticas de segurança pública e criminal e são estes juízos que, por sua vez, conferem apoio às políticas do Executivo e a gama inusitada de novel  legislações que pairam no ar. Um mingau de “políticas sociais e criminais” e demandas midiáticas se faz presente. Difícil de deglutir.

Para o ilustre prof. Paulo Sumariva, “A ciência da criminologia possui um papel decisivo para o ensino do direito, auxiliando na compreensão do poder e do controle social e penal, estudando o crime, a criminalidade, a pena, a vitimização, a impunidade e a cifra negra. O saber criminológico é a formação de uma consciência jurídica crítica e responsável, capaz de tirar o jurista de sua zona de conforto, adormecido no seu ponto de partida, que é a norma válida, e traçar novas diretrizes, visando o enfrentamento da violência individual, institucional e estrutural.”[13]

Há quase 250 anos em sua obra Dei Delitti e Delle Pene, Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, asseverava que a sensação de impunidade que é passada para a sociedade decorre do tempo que é demandado desde o momento em que o crime é cometido até a aplicação da pena, considerando-se que o intervalo é muito grande. Relata que a sociedade deve ser acostumada a pensar que o castigo é uma consequência do crime.

Mas isto não importa! Primam por medidas salvadoras. Já dizia um poeta “pobre do povo que precisa de heróis”. 

Mas, em nenhuma outra seara a epopeia do populismo se faz tão intensa e presente quanto nas investigações. É ali o palco para os mais intensos delírios midiáticos, o povo tal qual na Copa do Mundo que se traveste de  técnico, aqui se irroga nas funções do Delegado de Polícia.

Deleitam-se os rapazes das 18:00 horas em seus noticiários, passo a passo tentando acompanhar e inovar com dados inéditos nas investigações. O povo vai ao delírio!

Peço vênia para citar “que a liturgia do populismo penal evoca, antes de tudo, a expressão de uma festa (alegria, júbilo, satisfação), visto que, como dizia Niestzsche, o sofrimento do inimigo ou do desviado (do devedor), que perturbou a ordem social ou institucional, sobretudo quando veiculado por meio de algo aproximativo da vingança, traz em seu bojo um incomensurável prazer. O gozo e a satisfação gerados pelo sacrifício de um potente “bode expiatório”, agora exposto ao moderno pelourinho dos telejulgamentos midiáticos, equivalem às grandes conquistas patrióticas nacionais. É uma catarse que o povo, freudiana e psicanaliticamente, deseja para a purificação dos seus pecados.”[14]

 Até o STF sucumbiu ao espetáculo.

Concluímos, então, que não há se falar em inquérito policial sem desmistificar velhos conceitos, desacreditar teorias que não mais se coadunam com a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito e, uma vez questionando as argumentações de inaplicabilidade de princípios constitucionais ao inquérito policial ou conceituações medíocres que se tornaram jargão no meio acadêmico evidenciadas pelo conceito de  "mero procedimento informativo" só assim, evidenciando teorias hoje falhas, é que podemos discutir o papel do inquérito como meio de apuração das infrações penais.

E, desta feita, fazer frente ao populismo que toma viés imperial.

Somente nesta seara é que o investigado deixa de ser considerado mero objeto de investigação e conquista o status de pessoa, com o respeito a sua dignidade humana.

 O que era tido como certo, antes da promulgação da nossa Constituição, hoje tem de ser revisto, amoldado a seus princípios, submetendo-se a seus preceitos. E isto tem de ser feito, sem reservas, sem preconceitos, sem empecilhos vulgares e, principalmente, sem acreditarmos que, por ser o inquérito policial um instrumento centenário, devamos nos acomodar.

Citando o Mestre Bismael B. Morais "no atual estágio do conhecimento humano, não é compreensível que se deva olhar para frente, caminhando-se de costas (...)[15] e no esteio desta assertiva esposamos nosso entendimento de alçar o inquérito policial ao seu verdadeiro patamar, considerando-o como instrumento de Justiça social, afinal um dos ideais de nossa sociedade.

O papel do inquérito policial restou evidenciado de fundamental importância na promoção da defesa dos direitos fundamentais, previstos na Constituição, considerando o investigado em sua qualidade de sujeito de direitos. De nada adiantam as tentativas de suprimi-lo, pois ele subsistirá. Não adiantam as tentativas de entregá-lo em outras mãos, elegendo o órgão acusatório como o pertinente a presidi-lo, pois este é parte. E parte não possui a isenção necessária à sua condução.

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Nele (inquérito policial) não se defende tese. Busca-se a verdade! Aqui não se busca a promoção da Instituição. Cumpre-se a lei. O acesso é permitido. Não há procedimento outro que lhe faça sombra. E as autoridade policiais que os presidem cuidam para o desabrochar de um flor de lótus, extremamente branca, nascida das águas turvas e lodosas que permeiam os fatos trágicos de uma investigação criminal.

É nossa obrigação repensar seu posicionamento em nosso ordenamento jurídico, valorando-o como instrumento centenário, conhecendo-o de forma límpida, analisando-o sob o prisma de seus valores e finalidades e adequando-o aos nossos princípios constitucionais, sobretudo considerando a dignidade da pessoa humana como bem fundamental assegurado como espeque de nossa sociedade.

O caminho a ser traçado para análise do inquérito policial é somente o da sua interpretação conforme os parâmetros traçados pela Constituição. Afinal, não há que se falar em uma leitura da atual Constituição sob as premissas de textos envelhecidos ou doutrinas equivocadas.

A realidade exige uma visão mais estratégica dos modelos adotados, incluindo-se o inquérito policial. Isto implicaria num diferencial competitivo a médio e longo prazo, importando na valorização da Polícia Civil.

O inquérito policial, em seus 171 anos de existência, repercute hoje como instrumento de fundamental importância para a concretização de um patamar mínimo civilizatório.

Centenário sim, contudo, é o inquérito policial democrático, peça fundamental para a promoção da Justiça social, incólume ao populismo penal que permeia nossa sociedade corroendo a razão e mascarando a realidade.


Notas

[1] TORRONEN, Jukka. Zero Tolerance, the media, and a local community. Journal of Scandinavian Studies um Criminoloogy and Crime Prevention. Vol. 5, 2004, p. 29

[2] Código  Processo Penal, Exposição de Motivos, Decreto-Lei 3.689, de 1941.

[3] QUEIROZ FILHO, Dilermando. Inquérito Policial. Rio de Janeiro: Ed. Esplanada, 2000,  p.46.

[4] LEAL, Antonio Luiz da Câmara. Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Ed. Freitas Bastos, 1942, p. 76.

[5] MONDIN, Augusto. Op. cit., p. 45.

[6] ROVEGNO, André. Op. cit., p. 91.                                                                                            

[7] ALMEIDA, João Canuto Mendes de. Princípios Fundamentais do Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.

[8] MARQUES, Tarcísio. Inquérito Policial. Revista ADPESP nº 29. v.1, São Paulo: ADPESP: julho 2000. p. 62.

[9]Investigação preliminar, Polícia Judiciária e autonomia. Artigo escrito com base nas ideias desenvolvidas por ocasião da palestra proferida pelo Prof. Luis Flávio Gomes, no Colóquio sobre inquérito policial promovida em parceria pela Academia da Polícia Civil/SP e Academia Nacional de Polícia/PF.

[10] ROVEGNO, André. Op. cit., p. 135.

[11] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 24ª edição. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 96. Vale aqui a máxima “faça o que eu falo e não o que eu faço”. Sob a premissa de Estado Democrático, a República Democrática Alemã fuzilava a todos que tentavam exercitar seu direito de ir e vir, dirigindo-se à Berlim Ocidental. Portanto, vale a lição da composição da ética e Direito.

[12] Tradução livre de trecho contido em WISEHART, M.K.. Newspaper and criminal justice. In: POUND, Roscoe; FRANKFURTER Criminal Justice in Cleveland. Reports of the Cleveland Foundation survey of the administration of criminal justice in Cleveland, Ohio. Philadelphia- WM. Fell Co. Printers, 1922, p. 526.

[13] SUMARIVA, Paulo. Criminologia, Teoria e Prática. Rio de Janeiro. Editora Impetus, 2013. P. 02.

[14] GOMES, Luis Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. Saraiva, 2013, p.20.

[15] MORAES, Bismael Batista. Direito e Polícia: uma introdução à Policia Judiciária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.

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Sobre a autora
Patricia Rosana Magalhães Gonçalves Fernandes Tarcha

Delegada de Polícia. Professora da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professora conteudista do Portal Atualidades do Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TARCHA, Patricia Rosana Magalhães Gonçalves Fernandes. As finalidades do inquérito policial diante das novas demandas midiáticas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4067, 20 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31161. Acesso em: 18 nov. 2024.

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