4. A NECESSIDADE DO PRÉVIO EXAURIMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA PARA O EXERCÍCIO DA AÇÃO PENAL NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA
A respeito da necessidade do prévio exaurimento do procedimento administrativo para a instauração da ação penal nos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90 e 337-A do Código Penal, devem-se esclarecer as questões que estavam postas até a decisão do STF proferida nos autos do Habeas Corpus n. 81.611-8/DF[28]. A primeira questão se relacionava à necessidade ou não da prévia instauração de inquérito policial para o esclarecimento da conduta de cada acusado, sendo a opinião prevalente que, estando a peça acusatória arrimada em processo administrativo realizado pela Receita Federal, o inquérito policial é desnecessário, bastando para o oferecimento da denúncia a identificação da legitimidade passiva, com a juntada do contrato social, sem necessidade de discriminação pormenorizada da participação de cada sócio.
Em segundo lugar, se discutia se o procedimento administrativo constituía ou não questão prejudicial. De acordo com posição adotada no julgamento do Habeas Corpus n. 2004.03.00.041350-4 pelo TRF da 3ª Região[29], o art. 92 do CPP estava descartado, pois se relaciona com a controvérsia sobre o estado civil das pessoas. O art. 93 do CPP disciplina sobre a existência de questão prejudicial diversa de competência do juízo cível e se neste houver sido proposta ação para resolvê-la, sendo facultativa a suspensão do processo penal pelo juízo criminal, desde que a questão seja de difícil solução e não verse sobre direito cuja prova a lei civil limite.
O terceiro argumento se referia à atribuição constitucional do Ministério Público para propor a ação penal pública. Sendo princípio institucional do MP a independência funcional, do qual se desdobra o entendimento de que seus membros não estão atrelados aos atos, decisões ou posicionamentos de quaisquer órgãos do Poder Executivo, deveria ser privativo do órgão ministerial a elaboração do juízo acusatório.
Na órbita do Direito tributário, a posição era de que sendo o crédito tributário decorrente de lei, dever-se-ia atentar se houve ou não em tese redução ou supressão dele, para fins de tipificação penal. Nessa ótica, o que se chama de constituição do crédito tributário é sua declaração na órbita administrativa, portanto, os recursos interpostos no âmbito da Fazenda Pública teriam somente o efeito de suspender a exigibilidade do crédito respectivo.
Nessa linha, afirmava-se que o lançamento é pressuposto para a cobrança do crédito tributário, formando o título executivo fiscal. O juízo penal, por sua vez, determinaria a realização do tipo penal e o autor do crime, sendo a infração penal fiscal revelada judicialmente pela subsunção do fato ou conduta à descrição legal do crime. Em conseqüência, analisando o caso concreto, poder-se-ia extrair se um tributo era devido e se o contribuinte mediante as condutas tipificadas na lei, atuou criminosamente para a redução ou supressão tributárias.
Afirmava-se que, sendo o tipo penal da sonegação fiscal material, qualquer das condutas tipificadas no art. 1º da Lei 8.137/90 atingem o resultado supressão ou redução do tributo, tornando desnecessário o término do procedimento administrativo para se configurar a materialidade.[30]
Toda essa problemática foi pela primeira vez submetida à análise do STF no HC 77.002/RJ[31], cujo julgamento pelo Plenário acabou prejudicado pela superveniência da absolvição do paciente, porém, dois votos (Jobim e Sepúlveda Pertence) a favor da necessidade do prévio exaurimento da instância administrativa para o exercício da ação penal foram proferidos.
Fonteles[32], ao proceder à análise crítica ao voto de Sepúlveda Pertence naquele julgamento, se disse inicialmente de acordo com a opinião do ministro no que se relacionava à natureza jurídica da ação penal se incondicionada ou condicionada à representação da autoridade fazendária, a teor do art. 83 da Lei 9.430/96[33], pois tanto Sepúlveda Pertence quanto Fonteles convergem para o entendimento de que o art. 83 da Lei 9.430/96 não condicionou a legitimação do Ministério Público para a ação penal pública por crimes contra a ordem tributária, ao que chamou de “representação fiscal para fins penais relativos a tais delitos”.
Em sendo a atividade administrativa plenamente vinculada, ou seja, o agente fazendário não teria a opção entre enviar ou não a representação fiscal, não faria sentido dar-lhe a discrição da decisão a respeito da persecução penal. Efetivamente, o Ministério Público pode propor a ação penal independentemente de qualquer iniciativa condicionante da administração tributária, a qual, pelo contrário, está obrigada ao atendimento da requisição de documentos e informações.
A respeito da natureza dos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90, se material ou formal, Fonteles[34] vai além do que entendeu Sepúlveda Pertence ao considerar ambos de resultado ou material, enquanto o ministro compreendia que o do art. 1º era material e o do art. 2º era formal.
Sustenta o autor citado que o art. 2º faz expressa remissão ao art. 1º, afirmando serem os tipos penais da mesma natureza. Assim, se ambos os tipos penais, tanto o do art. 1º, quanto o do art. 2º, têm a mesma natureza, a melhor exegese é a de são crimes materiais ou de resultado, argumentando mais o autor que as infrações contemplam comportamentos de sonegação fiscal com efetivo dano à Fazenda Pública.
Posição diametralmente oposta à adotada por Sepúlveda Pertence no Habeas Corpus n. 81.611-8/DF[35], emitiu Fonteles a respeito da necessidade do prévio exaurimento do procedimento administrativo como condição objetiva de punibilidade. Fonteles[36] começa a argumentação definindo o que seja condição objetiva de punibilidade, que, segundo Bettiol e Fragoso[37], é conseqüência do crime e indispensável à existência do delito.
Não haveria crime antes que a condição objetiva de punibilidade se verificasse, havendo então a condição objetiva de punibilidade, que pelo entendimento do autor citado, seria um acontecimento futuro ou concomitante e incerto ao fato acontecido.
Ainda sob a influência de Fragoso, Fonteles[38] afirma que não há como autorizar persecução penal sobre fato juridicamente inexistente, uma vez que sendo as condições objetivas de punibilidade elementos constitutivos do crime. Assim para Fonteles[39], a constituição do crédito tributário jamais pode ser condição objetiva de punibilidade, mas questão prejudicial heterogênea, até porque a questão posta sobre a constituição ou não do crédito tributário, se não o afirma, obviamente impede a afirmação de que houve supressão ou redução, do tributo, daí que se constitui em questão prejudicial, atingindo a pretensão posta no juízo penal, heterogênea porque a decisão está em autoridade diversa do juiz da ação penal, abrindo campo à incidência do art. 93 do CPP[40], tudo dentro da organicidade do devido processo legal.
Sepúlveda Pertence[41] procurou no seu voto analisar as principais questões em debate, começando pelo art. 83 da Lei 9.430/96. Entendeu o relator que esse artigo não condicionou a legitimação do Ministério Público para a ação penal pública por crime contra a ordem tributária, porque os requisitos de procedibilidade não se presumem, mas reclamam expressa determinação legal, que não contém naquele preceito.
Disse mais nesse aspecto que, mesmo se possível essa interpretação, seria absurda, porque as hipóteses até hoje previstas para a implementação ou não da condição de procedibilidade é sempre um ato de vontade, porém, no caso da representação fiscal, seria uma agressão ao sistema igualá-la a uma condição para o exercício da ação penal. É que confiaria à burocracia fazendária – cuja ação a lei exige seja “plenamente vinculada” (CTN, art. 3º, 141 e 142) – mais que a discricionariedade, a arbitrariedade para decidir da persecução ou não dos crimes contra a ordem tributária.
Já em relação à necessidade de prévio exaurimento das vias administrativas para o exercício da ação penal, o ministro adotou posição contrária a de Fonteles. Sepúlveda Pertence[42] começa a argumentação pelo entendimento de que os crimes definidos no art. 1º da Lei 8.137/90 são materiais ou de resultado, pois, para ele qualquer uma das condutas comissivas ou omissivas descritas nos diversos incisos se caracteriza o crime, mas não basta à sua consumação, para a qual é imprescindível que, de uma ou mais delas, resulte a supressão ou redução do tributo devido.
Sepúlveda Pertence reporta à divergência existente na doutrina a respeito da natureza jurídica do lançamento tributário, se declaratória, constitutiva, preclusiva, processual ou procedimental, entre outras[43]. Para ele, o que importa e é relevante para a solução da controvérsia é que há um ponto de convergência entre os doutrinadores declarativistas e constitutivistas – é que a decisão final do procedimento administrativo desempenha função de acertamento da existência e do conteúdo da obrigação. A partir de uma citação de Xavier[44], declara que o lançamento é uma forma de remoção ou eliminação da incerteza objetiva que impende sobre a obrigação tributária.
Para Sepúlveda Pertence, resolvida que estivesse a necessidade de se aguardar a decisão administrativa final, poderia parecer necessário o esclarecimento se o acertamento do crédito tributário, na estrutura do crime, constituiria elemento essencial do tipo ou condição objetiva de punibilidade e, em qualquer hipótese, se a pendência de processo administrativo ou judicial sobre a matéria configuraria, ou não, questão prejudicial obrigatória. Conforme o ministro a pendência não diz de tal necessidade.
Segundo Borges[45], antes do lançamento não há débito, obrigação individualizada e concreta, mas tão-somente uma relação entre o dever jurídico do sujeito passivo (contribuinte ou responsável) e o dever do fisco, que se define como um poder-dever, de realizar o lançamento. Da necessidade de acertamento ou concretização da existência e extensão dessa relação é que faz surgir a distinção feita pelo Código Tributário entre a obrigação tributária, prevista no art. 113, § 1º, e o crédito tributário, previsto no art. 142.
Outro ponto de consenso entre os tributaristas é o efeito preclusivo do lançamento no âmbito administrativo, para realizar seu objetivo de acertamento definitivo da existência, individualização e quantificação do crédito tributário. Esse efeito preclusivo impede que a administração proceda à sua revisão em desfavor do contribuinte, com exceção das hipóteses legais expressamente previstas nos arts. 145, III e 149 do CTN.
Sendo a decisão administrativa definitiva no âmbito da Administração, não é mais possível sua alteração ou contra ou a favor do contribuinte, de sorte que o lançamento faz coisa julgada administrativa tanto no que se relaciona ao conteúdo do lançamento quanto em relação à inexistência da relação tributária.
Para os declarativistas, se é contra o contribuinte, confirmando a evasão fiscal, com a retroatividade do lançamento, estaria caracterizado o crime, com a ocorrência do elemento essencial do tipo, porém se a seu favor, no dizer de Sepúlveda Pertence[46], ilide o juízo positivo de tipicidade, quando se cogita de crime de dano, dada a eficácia preclusiva da decisão administrativa favorável ao contribuinte. É que no âmbito administrativo, está afirmado que não suprimiu nem reduziu tributo devido, não se podendo imputar ou condenar alguém por crime que tem, na supressão ou redução do mesmo tributo, elemento essencial do tipo.
Diz Sepúlveda Pertence que, mesmo não se admitindo a decisão final administrativa como elemento do tipo, não é possível aceitar-se o argumento de que antes dela se possa instaurar o processo por crime de dano contra a ordem tributária. Se a Administração é a única com atribuição para constituir o crédito tributário e se o crime definido no art. 1º da Lei 8.137/90 pressupõe a existência de tributo suprimido ou reduzido, não se pode afirmar, mesmo para a denúncia, a ocorrência desse pressuposto, enquanto a respeito não opere, pelo menos, o efeito preclusivo da decisão final do processo administrativo.
Sepúlveda Pertence[47] então afirma que, se não a tipicidade, a punibilidade da conduta do agente, mesmo típica, estará subordinada à decisão de autoridade diversa do juiz da ação penal. Por essa razão, defende que, para fugir de polêmica desnecessária, qual seja a de inserir a decisão definitiva do processo administrativo de lançamento entre os elementos do tipo do crime contra a ordem tributária, desloca a questão da esfera da tipicidade para a das condições objetivas da punibilidade.
Diz ele que a solução para o impasse é semelhante à adotada nos crimes falimentares. Embora o crime falimentar tenha ocorrido em data anterior, a ação penal somente poderá ser proposta após a sentença de falência proferida pelo juiz cível, o mesmo se dando nos delitos contra a ordem tributária, na qual a punibilidade do agente se subordina à superveniência da decisão definitiva do processo administrativo de revisão do lançamento, instaurado de ofício ou impugnação do contribuinte ou responsável tributário.
Apesar de semelhante a solução, a diferença está em que nos crimes falimentares a questão se confia a uma autoridade do Poder Judiciário – o juiz de falência, enquanto que nos delitos contra a ordem tributária a propositura da ação penal se subordina a uma decisão do Poder Executivo. Um outro argumento ainda foi utilizado para a concessão do HC 81.611/DF: a possibilidade da extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária mediante o pagamento do tributo devido, porém essa problemática será discutida, a seguir em tópico à parte.
Uma questão, contudo, avultou na Suprema Corte brasileira durante a discussão do Habeas Corpus referido. É que o processo administrativo poderia demorar demasiadamente e o fato sofrer a prescrição, sendo encontrada a solução pela aplicação analógica do art. 116, I, do Código Penal[48], de modo que enquanto a definitividade do tributo estiver obstada por iniciativa ou recursos administrativos do contribuinte, a prescrição ficará suspensa.