Nas discussões públicas das compras governamentais, nas matérias jornalísticas, nas produções científicas sobre o assunto, enfim, na temática de aquisições pelo governo, figura sempre, com grande destaque, a questão do preço praticado e do direcionamento de fornecedores. Superfaturamentos e cartelizações dominam a cena nesse assunto.
Em uma boa compra pública, a discussão da entrega, da qualidade do bem ou serviço prestado, associado a sua efetiva utilização em uma política pública, é uma discussão um tanto esquecida, e que é objeto da liquidação da despesa pública, tema desse breve artigo.
A detecção de problemas na liquidação é mais complexa, por estarem essas falcatruas embutidas no cotidiano, longe da batalha entre interesses de um certame licitatório. As casuísticas do comprado e não entregue, do entregue diferente do desejado e do entregue e não utilizado, ainda que apareçam de forma acanhada nas páginas de política, causam prejuízos volumosos aos serviços públicos, por impactarem diretamente na execução destes.
Prevista no Art.63 da Lei nº 4.320/64 e ratificada no Art. 36 do Decreto nº 93.872/86, a liquidação é uma das fases de execução da despesa pública, definida como a verificação do direito adquirido pelo credor ou entidade beneficiaria, tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito ou da habilitação ao benefício.
A liquidação é um poder-dever, derivada do poder de império, do desequilíbrio do contrato administrativo, caracterizando-se como faculdade de verificar o serviço/produto avençado, defendendo o interesse público e prevenindo a materialização de riscos, com a cautela necessária antes da quase irreversível fase do pagamento.
A sua discussão na literatura predomina nos aspectos contábeis, de seus efeitos nos sistemas da contabilidade pública e pouco no aspecto do controle da qualidade, da atuação no campo físico, de periciamento adequado dos itens recebidos. A Lei nº 8.666/93, o estatuto das licitações, abarca de forma mais generosa estes aspectos, como por exemplo no seu Art. 15. que diz que: “ (...) § 8o O recebimento de material de valor superior ao limite estabelecido no art. 23 desta Lei, para a modalidade de convite, deverá ser confiado a uma comissão de, no mínimo, 3 (três) membros”, em uma prática salutar, mas que pouco se observa na dinâmica cotidiana da administração pública.
A mesma legislação, em um enfoque voltado para obras e serviços de engenharia, trata nos seus artigos 73 a 76 a conceituação de recebimento provisório e definitivo, como mecanismos de controle interno administrativo que possibilitam a avaliação amiúde de objetos complexos, resguardando a administração de dissabores futuros, estabelecendo um rito razoável.
Causa preocupação a adoção de contratos do tipo “chave na mão”, ou “turn key”, no qual a empresa contratada fica obrigada a entregar a obra em condições de pleno funcionamento, dada a complexidade na liquidação de determinados objetos, de alto grau de complexidade e que mesmo com apurada verificação contínua, por meio da fiscalização, ficamos à mercê de vícios redibitórios e ainda, da onerosa e lenta busca de reparo e ressarcimento junto a instância judiciária.
Por essas e outras, não conseguimos apartar uma boa fiscalização, prevista no Art. 67 da Lei de licitações, de um bom processo de liquidação. Mais do que subsidiar punições e renovações, as ações pari-passu do fiscal permitem uma segura liquidação, em especial em obras e serviços de engenharia, no acompanhamento concomitante, durante a formação do serviço, emitindo alertas e atuando de forma corretiva.
A função da liquidação da despesa necessita ser valorizada, sopesada dentro da visão da gestão de riscos, como mecanismo de controle que não pode ser excessivo, mas adequado diante dos riscos percebidos e do valor envolvido. Boa liquidação é a chave de uma boa despesa, coerente com o empenhado e adequada para ser paga!
Tem-se então como boa prática que o recebimento de objetos avençados deve ser documentado, com o detalhamento adequado a cada caso. Não liquidamos despesas de alfinetes igual a foguetes, devendo-se avaliar os meios de verificação diante dos riscos detectados.
Também carecem de designação formal com atribuições e responsabilidades, genéricas e específicas, os responsáveis pelo recebimento, rezando a boa prática ainda a criação de manuais de procedimentos, que prevejam além dos ritos, medidas salutares como rotatividade entre servidores que liquidam despesas, segregação de funções, impedimentos de terceirizados de efetuar o recebimento de material/serviços, além da necessidade fundamental de comparação da especificação do objeto e a observância da legislação relativa ao que está sendo entregue, fazendo testagens e registrando os dados pertinentes.
As recomendações contidas em Acórdãos do TCU focam muito na tipologia de pagamentos antecipados, ocorridos antes da liquidação, situação que expõe a Administração a riscos desnecessários. Mas, ressalta-se também a necessidade de adoção de práticas de verificação do pagamento na ordem cronológica da liquidação e ainda, se o mesmo título de crédito não foi pago duas vezes.
Nas recentes discussões de transparência, a liquidação de despesas se enriquece, na publicidade do item recebido, seu destino e quem o periciou, além da publicação das designações de servidores e comissões de recebimentos em boletim interno, recebimentos realizados em local amplo e de circulação e a criação de canal de reclamações sobre despesas liquidadas.
UMA VISÃO DESLIZANTE
Para valorizar e transcender a liquidação da despesa pública, “patinho feio” das produções acadêmicas e esquecida nas causas dos escândalos de corrupção, necessitamos emprestar a ela uma visão deslizante. Entretanto, o que chamamos aqui de uma visão deslizante da liquidação da despesa?
Simples: a liquidação deve guardar um aspecto “deslizante”, ou seja, ela não se esgota ali no momento da conferência, devendo ter elementos para aferições futuras e deve ter uma dimensão de utilização do item! A liquidação tem efeitos futuros, não se bastando apenas aquele momento de perícia... Ela deve lembrar do auditor, do pagador, do beneficiário das políticas públicas e de denúncias que podem surgir a frente em relação aquele item ou serviço.
Então, na composição de um processo de liquidação, fotografias, filmagens, documentos de registros, medições, devem ser acostadas, como mecanismo de sustentação daquele processo em um momento futuro. Um seminário de educação custeado com recursos públicos deve ter em sua liquidação, por exemplo, listas de presenças com e-mails, fotos, reportagens e documentos que realmente comprovem, a qualquer leitor futuro, que aquele serviço foi prestado de acordo com o contratado.
Da mesma forma, o item ou obra não existe descontextualizado, ele existe dentro de uma política pública e a liquidação deve verificar o seu direcionamento para o atendimento daquela população beneficiária, dentro de uma ótica de viabilidade. Assim, recebemos os computadores, mas necessitamos verificar se o local de instalação está adequado, e apesar desse fato não impedir o pagamento, deve gerar os alertas necessários ao sistema, para que se evitem itens ociosos recém adquiridos.
A liquidação é muito mais do que um ato contábil. É um ato gerencial e que possibilita grande qualidade ao processo de compras, garantindo, de forma razoável, uma adequada prestação de serviços públicos pela existência e qualidade de seus insumos.
Entretanto, no seu aspecto estratégico, ela deve ser mais estudada e discutida, no reino das boas práticas, que incorporem recentes discussões no campo da transparência e da gestão de riscos. O artigo propõe, dentro de suas limitações, que a liquidação se expanda também em uma nova categoria, uma visão deslizante, que atrele a esta um pensamento futuro, de comprovação de seu atendimento em outros tempos, no plano documental e a utilização do item no contexto das políticas, no plano concreto.
Sem deslizar do paradigma de uma mera atuação contábil, não teremos nesse procedimento uma ferramenta que possibilite inibir práticas odiosas, das compras fantasmas e de produtos em qualidade/quantidade inferior e que por vezes dormitam em depósitos e almoxarifados, alguns perdendo valor pela depreciação. Além do preço e do fornecedor, necessitamos incluir essa pauta na nossa discussão de compras governamentais.