Capa da publicação Sacrifícios rituais de animais em religiões afro-brasileiras
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Sacrifícios rituais em religiões afro-brasileiras.

A proteção jurídica aos animais não humanos frente a valores religiosos e culturais

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04/09/2014 às 10:36
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6. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AO PATRIMÔNIO CULTURAL E ÀS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS AFRO-BRASILEIRAS

Tratando-se de religiões cujas origens e formação compõem importante passagem da história do país e constituição da identidade de um povo, necessário analisar a legislação no sentido de verificar a proteção dada às manifestações culturais afro-brasileiras.

6.1. Manifestações culturais

O direito a manifestações culturais está ligado ao resguardo do patrimônio cultural, que expressa a identidade de um povo e revela o modo de ser de uma sociedade, sendo sua proteção imprescindível à medida que tem profunda relevância para a preservação dos valores históricos. É necessária a conscientização da sociedade sobre seu significado e a finalidade de conservar os bens que contam a sua história, já que contar com a participação da coletividade na tutela dos bens é vital para a efetividade da lei (GUERRA, p. 01-03).

A Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 216, aponta que o patrimônio cultural é o constituído dos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, desde que portadores de referência à identidade. A proteção dos valores culturais de um dado grupamento étnico assegura o direito à diferença e à diversidade cultural (ABREU, p. 04).

Piancó (p. 01-02) afirma que o legislador não expressou quais são os princípios constitucionais culturais, mas, citando Santos, classifica-os como princípio do pluralismo cultural, da participação popular na concepção e gestão das políticas culturais, do suporte logístico estatal na atuação no setor cultural, do respeito à memória coletiva e da universalidade.

Santana (2005, p. 02-04), por sua vez, aponta que a palavra cultura possui vários significados, o que contribui para que os diversos campos do conhecimento tenham dificuldade para conceituá-la, destacando duas dimensões que interferem em sua conceituação, que são a histórico-etimológica e a cognitiva.

No que se refere à dimensão histórico-etimológica, a palavra cultura tem origem com o verbo latino colere, que significa cultivar, cuidar, semear a terra, que remete ao trabalho agrícola, associação que foi enfraquecendo, quando o termo passou a ser relacionado à habitação da terra onde o homem cultiva seu sustento ou ao hábito de prestar honras e homenagens aos deuses e aos amigos, até que se desvirtuou, quando o senador romano Cícero, através da locução cultura animi (cultivo do espírito), emprega a palavra no sentido de "trato e aprimoramento do espírito", ligada à ideia de refinamento pessoal, orientação que repercutiu, junto com a ideia de civilização, posteriormente, na própria definição de patrimônio cultural como objeto de tutela pelo Direito.

Quanto à dimensão cognitiva, o conceito de cultura varia de acordo com o campo do saber que a define. Não se pode obter um conceito homogêneo, para todos os ramos do conhecimento humano, sem que haja distorções. Desse modo, o autor se ampara no conceito antropológico de cultura – por entender que, para o Direito, interessa o conceito de bem cultural e não o conceito de cultura em si –, que fornece esse embasamento para que determinado bem adquira um valor cultural e, assim, possa receber especial proteção. Citando Edward Tylor, o autor apresenta cultura, em seu conceito antropológico, como "todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade".

Para Abreu (p. 04), “a expansão do termo patrimônio cultural acolhe as diversas formas de manifestações culturais pertencentes ao acervo remanescente dos diversos grupos formadores do processo civilizatório nacional”, o que elimina as restrições à terminologia tradicional, que se limitava a patrimônio histórico, artístico e paisagístico.

Assim, seguindo as ideias apresentada pelos autores, o que tornaria uma comunidade portadora de um patrimônio cultural que necessita, como a cultura afro-brasileira, ser protegida é o fato de que possuiriam um conjunto de regras sociais, decorrentes de seu passado histórico, que particularizam o grupo e os distinguem das características gerais portadas pelos demais membros da sociedade.

6.2. Tutela jurídica das manifestações culturais afro-brasileiras

Os Direitos Culturais estão previstos expressamente na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, enquanto direitos fundamentais, e, no Brasil, encontram-se devidamente protegidos pela Constituição Federal de 1988, diante de sua relevância como fator de singularizarão da pessoa humana (PIANCÓ, p. 01).

Segundo ABREU (p. 05), “a eficácia social dos direitos culturais deve ser entendida como instrumento de conservação dos grupos formadores da sociedade, bem como instrumento de transformação social”. A concretização dos direitos culturais, assim, é direito de todos os cidadãos e um dever do Estado, sendo a cultura um valor filosófico, político e, por isso, transformado em valor jurídico protegido pela ordem constitucional brasileira. Interessa-nos aqui particularmente a cultura afro-brasileira que, conforme já dito anteriormente, se reveste de importância que necessita de proteção legal.

Neste contexto, a Constituição Federal brasileira defende, em seu artigo 215, parágrafo 1º, o patrimônio cultural e as manifestações das culturas afro-brasileiras (além de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional), garantindo os direitos culturais como direitos inerentes à pessoa humana. (ABREU, p. 04).

Silva (2001, p. 51-52) explicita quais são os direitos culturais reconhecidos na Constituição Federal de 1988, quais sejam:

(a) liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica; (b) direito de criação cultural, compreendidas as criações artísticas, científicas e tecnológicas; (c) direito de acesso às fontes de da cultura nacional; (d) direito de difusão das manifestações culturais; (e) direito de proteção às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional; (f) direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura.

Segundo Santana (2005, p. 11), apesar de a Constituição Federal ter um amplo conceito de patrimônio cultural, este rol não está esgotado, pois a própria Constituição possibilita que sejam inseridos novos elementos na seara da tutela jurídica do ambiente cultural.

Tais direito contemplam os bens materiais e imateriais, conforme previsto no artigo 216 da Constituição. Embora de mais difícil promoção, a proteção constitucional dos bens imateriais evidencia a importância que os legisladores, e a sociedade, tem feito acerca desse patrimônio e a necessidade que a mesma tem de querer assegurar que esses bens culturais imateriais sejam transmitidos para as presentes e futuras gerações (SANTANA, 2005, p. 08).

A dimensão material é, sem dúvida, a parte mais notória do patrimônio cultural, protegido por meio de instrumentos como o tombamento e a desapropriação. Com relação à proteção dos bens imateriais, cuja dificuldade de sua proteção reside em uma de suas características, a intangibilidade (TELLES, 2007, p. 07), o Decreto Federal nº 3.551/2000 é um marco no Direito Ambiental, por tornar aplicável o artigo 216 da Constituição Federal de 1988 no que se refere ao patrimônio cultural imaterial brasileiro, por meio de registro dos bens culturais imateriais pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), autarquia ligada ao Ministério de Estado da Cultura, os quais serão considerados Patrimônio Cultural do Brasil (SANTANA, 2005, p. 13-14).

O citado decreto regulamenta o registro dos bens, sendo o único instrumento previsto no parágrafo 1º, do artigo 216, da CF a ter regulamentação (TELLES, 2007, p. 08). De acordo com o artigo 1º do decreto, o registro do patrimônio imaterial poderá ser efetuado em quatro livros de registro: o dos saberes, o das celebrações, o das formas de expressão e o dos lugares.

Dos livros de registro previstos, o que mais tem relevância, dado o tema desta pesquisa, é o Livro das Celebrações, que visa assegurar o registro dos rituais e festejos que promovem a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras manifestações coletivas existentes na vida em sociedade. Para as comunidades tradicionais este livro se reveste de grande importância, pois boa parte de suas práticas ainda são coletivas, havendo uma forte interação dos membros da comunidade nesses eventos, como é o caso, por exemplo, do candomblé nos quilombos ou das festas em homenagem a Iemanjá, praticadas pelas populações pesqueiras tradicionais da Bahia (SANTANA, 2005, p. 14). Houve grande acerto ao utilizar-se o termo “celebrações, pois se podem incluir nesse livro as manifestações religiosas que integram o patrimônio cultural imaterial e que não poderiam se enquadrar em outros termos considerados profanos como, por exemplo, “festas” (TELLES, 2007, p. 25).

6.3. Religiões afro-brasileiras enquanto parte integrante do patrimônio e manifestações culturais

Ao incluir rituais e festejos que promovam a religiosidade como integrantes do patrimônio cultural imaterial passíveis de registro, o legislador pátrio quis, claramente, indicar que as manifestações religiosas fazem parte do patrimônio cultural a ser protegido.

Machado Neto (2008, p. 06), argumenta que identidade cultural significa a capacidade de reconhecer a si próprio ou de construir sua própria realidade autônoma e única, baseada em uma tradição cultural herdada de seus antepassados; nesse caso em estudo, a herança cultural dos povos africanos trazidos pela escravidão, que aqui firmaram raízes e influenciaram a formação da cultura nacional com a disseminação e mescla de sua cultura com a de outros povos, embora existam núcleos culturais de forte predomínio africano. Cidadania, nesse contexto, significa o direito da coletividade de partilhar de distintas opiniões e posturas culturais, dadas as particularidades de cada região e povo.

Citando Guimaraens, Machado Neto (2008, p. 07) aponta que devido à existência de um verdadeiro apartheid cultural no Brasil:

a visualidade das camadas populares, dos indígenas e dos afrodescendentes não é devidamente enfatizada nas escolas nem nas universidades, já que ocorre uma rejeição, pelas camadas dominantes da sociedade nas quais se inclui a maioria dos professores, de códigos da cultura popular identificados com o candomblé, a cultura indígena, os rituais e as danças como o bumba-meu-boi e o carnaval, todos estes constituindo importantes elementos de identificação étnico-cultural brasileiros.

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Desse modo, conclui-se que a cultura refletindo o modo de vida de uma sociedade, além de interferir em seu modo de pensar e agir, é um fator de fortalecimento da identidade de um povo e de desenvolvimento humano (PIANCÓ, p. 01), podendo-se e devendo-se incluir as práticas religiosas, aqui analisadas apenas as brasileiras de matriz africana, na medida em que estas são a exteriorização pública da liberdade de crença, bem como são o suporte para manifestação da liberdade de cultuar a religião escolhida, anteriormente, pela pessoa humana (SILVA JUNIOR, p. 15), transmitindo todo um conjunto de valores espirituais, sociais e históricos de fundamental importância para a formação da identidade nacional.


7. PROTEÇÃO À LIBERDADE DE CULTO

Tratando-se de práticas que envolvem religião, necessário se faz uma análise dos preceitos legais a respeito da liberdade religiosa e sua extensão, de forma a verificar se o ordenamento jurídico pátrio confere proteção a estas práticas e seus limites de exercício.

7.1. Regulamentação constitucional

A noção de religiosidade acompanha a história da humanidade, na medida em que a crença em divindades é um fenômeno observado em culturas que viveram em tempos remotos e em diferentes localidades ao redor de todo o mundo. É, dessa forma, um direito inerente à condição humana, ganhando importância jurídica, graças aos princípios constitucionais de liberdade. Pode-se dizer, dessa forma, que "a Liberdade Religiosa é o direito que tem o homem de adorar a seu Deus, de acordo com sua crença e seu culto" (PINTO FERREIRA apud OLIVEIRA, 2011, p. 01).

A liberdade de religião é consagrada pela Constituição Federal como direito fundamental, prescrevendo que o Brasil é um país laico. Dessa forma, o Estado deve se preocupar em proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa, prestando proteção e garantia ao livre exercício de todas as religiões, devendo, contudo, existir uma divisão muito acentuada entre o Estado e as religiões em geral, não podendo existir nenhuma religião oficial, nem permissividade a intolerância e a fanatismos (SCHERKERKEWITZ, p. 01).

SILVA JUNIOR (p. 02) destaca que a liberdade de crença foi introduzida na esfera jurídica através da Declaração de Direitos da Virgínia (1776), que ditava que “todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, segundo os ditames da consciência”.

Através do Decreto nº 119-A, de 07/01/1890, de autoria de Ruy Barbosa, o Brasil tornou-se um Estado laico. Até então havia liberdade de crença no Brasil, mas não havia liberdade de culto, ou seja, da prática das religiões, haja vista só ser permitido o culto da religião adotada como oficial. Os cultos das outras religiões só podiam ser realizados no âmbito doméstico, dentro dos lares. Com o Decreto nº 119-A, o Brasil deixou de ter uma religião oficial, instituindo a separação Estado-Igreja, o que acabou por ampliar a extensão do direito à liberdade religiosa (RACHEL, 2012, p. 05). Santos (p. 08), porém, afirma que somente com a entrada em vigor da nossa atual Constituição Federal de 1988, foi que houve uma efetiva ampliação do direito de Liberdade Religiosa no Brasil, abrangendo todos aqueles que possuem uma religião e até mesmo aqueles que preferem abster-se de qualquer forma de exteriorização da fé ou não crerem, como os ateus. Isiliane (p. 03) aduz que a liberdade de crença diz respeito a possibilidade de escolher uma crença ou religião e de mudar de crença ou religião, sendo o culto resultado da exteriorização dessa crença, que pode manifestar-se através de ritos, cerimônias, reuniões, variando de acordo o credo escolhido. O direito à liberdade de crença possibilita, inclusive, a formação de novos grupos religiosos, de forma que o indivíduo tem o direito assegurado de construir sua identidade religiosa como entender melhor, questão importante para que se entenda o sincretismo religioso no Brasil (OLIVEIRA, 2011, p. 07).

O Estado tem o dever, portanto, de proteger o pluralismo religioso dentro de seu território, criar as condições materiais para um bom exercício dos atos religiosos das diferentes religiões e zelar pela efetividade do princípio de igualdade religiosa, mas devendo manter-se à margem do fato religioso, sem incorporá-lo em sua ideologia (SORIANO apud SCHERKERKEWITZ, p. 01).

Tavares (2010, p. 630) afirma que essa proteção à liberdade religiosa abrange vários aspectos, quais sejam:

i) de opção em valores transcedentais (ou não); ii) de crença nesse sistema de valores; iii) de seguir dogmas baseados na fé e não na racionalidade estrita; iv) da liturgia (cerimonial), o que pressupõe a dimensão coletiva da liberdade; v) do culto propriamente dito, o que inclui um aspecto individual; vi) dos locais de prática do culto; vii) de não ser o indivíduo inquirido pelo Estado sobre suas convicções; viii) de não ser o indivíduo prejudicado, de qualquer forma, nas suas relações com o Estado, em virtude de sua crença declarada.

Conforme já anteriormente afirmado, o Estado deve adotar uma postura de neutralidade na escolha da religião, permitindo que o indivíduo possa livremente escolher ou não, rejeitar, mudar ou aderir à religião que lhe for mais conveniente (SILVA JUNIOR, p. 04).

O direito a liberdade religiosa está em consonância com os valores supremos e os objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil dispostos em seus artigos 1º e 3º, ao consagrar a dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade livre, justa e sem qualquer forma de discriminação. As vedações constitucionais do art. 19, inciso I, refletem o caráter laico do Estado brasileiro e seus contornos, de modo que o Estado não pode favorecer uma religião em detrimento de outras, repita-se. O Estado também deve se abster de legislar sobre matéria religiosa. Todavia, isto não impede que a Igreja e o Estado possam estabelecer parcerias em obras sociais e de interesse público (ISILIANE, p. 05).

Verifica-se, dessa forma, que a separação entre o Estado e a Igreja não é absoluta. Ela é limitada pelo exercício do poder de polícia do Estado e outros poderes que lhe são constitucionalmente atribuídos, bem como pelas práticas amplamente aceitas como símbolos ou tradições nacionais e que não seriam abolidas pela população mesmo que não gozassem de apoio estatal (SCHERKERKEWITZ, p. 08).

Ao tratar da proteção da liberdade religiosa, BREGA FILHO (p. 08) aponta que existe “uma união indissociável entre consciência e crença, crença e conduta, conduta e culto, e culto e consciência”. Assim, a liberdade religiosa é composta por fatores que se implicam de forma dialética e se pressupõem de modo que, quando qualquer deles deixa de ser protegido, vê-se violado o preceito constitucional. O autor afirma ainda que alguns tribunais têm realizado uma verdadeira redução do direito à liberdade religiosa ao restringir a proteção constitucional apenas ao que chama de culto objetivo ou aos lugares de culto, que devem organizar-se conforme as normas legais aplicáveis, sem considerarem a existência de práticas de culto que transcendem materialmente o espaço físico dos templos, principalmente as normas de conduta e a moral fundamental, que são próprias a todas as organizações religiosas.

No Brasil, as liberdades de crença e de culto são qualificadas como cláusulas pétreas, o que significa dizer que tornaram-se dispositivos imutáveis na atual Constituição, onde somente o advento de uma nova Constituição poderá modificar tal condição de liberdade, o que demonstra o grau de importância de tais direitos para a sociedade.

O direito à liberdade religiosa está presente também em diversas Convenções e Tratados internacionais, alguns dos quais o Brasil ratificou, como a Declaração Universal dos Direitos dos Homens e o Pacto de São José da Costa Rica, em que há uma ampla proteção às liberdades do homem, incluindo a religiosa (OLIVEIRA, 2011, p. 05).

7.2. Implicações na legislação infraconstitucional

Além da previsão constitucional, outras leis tratam da liberdade religiosa. Oliveira (2011, p. 07-08) afirma que “sejam as leis antiblasfêmia, produto de um resquício e de uma valorização da religião, ou uma espécie de compensação diante de medidas secularizantes” se pode identificar dois tipos de normas que tenham relação com a religião, que são, primeiramente, as que possibilitam ao Estado a regulamentação das relações dos grupos religiosos entre si e da sociedade para com eles, e, segundo, as que delimitam e estipulam o que seria definido por religioso, ao considerá-lo como elemento capaz de discriminar disposições jurídicas e tratando-o, desse modo, como uma esfera específica da sociedade.

O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 44, ao tratar das pessoas jurídicos de direito privado, disciplina a criação de associações religiosas em seu parágrafo 1º, que dispõe:

§1° - São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.

Da leitura do preceito legal citado acima, Oliveira (2011, p. 08) observa tratar de preocupação do legislador em “explicitar os lineamentos gerais da liberdade de organização religiosa”, pelo que deflui da redação do dispositivo, a seu ver, o entendimento de que a liberdade de organização religiosa engloba, portanto, a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas.

Pode-se concluir, desse modo, que é livre a organização religiosa na forma da lei, e que essa organização depende da aprovação estatal, que, além disso, estimula a atividade religiosa com a existência das imunidades tributarias previstas em lei (ISILIANE, p. 04).

Na esfera penal o direito de liberdade religiosa também repercute e vários artigos podem ser citados em que esta é o bem jurídico protegido. O artigo 208 do Código Penal tipifica o ato de escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso (OLIVEIRA, 2011, p. 07). Este dispositivo legal protege o sentimento religioso em si, qualquer que seja a religião, e assegura a própria liberdade de culto, abrangendo três figuras típicas em seu bojo (JESUS apud RACHEL, 2012, p. 43).

Rachel (2012, p. 41-42) cita ainda o artigo 140, §3º, que trata da injúria e coloca o motivo religioso como qualificador do crime ao dispor que “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”; e o artigo 149, §2º, inciso II, em que o crime de redução à condição análoga de escravo tem a pena aumentada se o crime é cometido “por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”.

Rachel, citando Teraoka (2012, p. 43-44), aponta ainda dispositivos na legislação penal especial que se referem à proteção da liberdade religiosa, como a Lei 4.898/65, que considera abuso de autoridade qualquer atentado ao “livre exercício de culto religioso”; a Lei nº 7.716/89, que criminaliza condutas que manifestem preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; a Lei nº 2.889/56, que tipifica como genocídio algumas condutas praticadas com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso; a Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio), em seu artigo 58, I, que tipifica penalmente a conduta de quem escarneça de ritos religiosos indígenas; e a Lei nº 11.343/2006, que dispõe acerca da proibição da plantação, cultivo e comercialização de plantas que podem ser utilizadas na produção de plantas psicotrópicas, mas que estabelece como exceção as plantas de uso ritualístico-religioso, protegendo o exercício das práticas religiosas que as utilizam.

7.3. Abrangência do direito à liberdade religiosa

Mattos, citado por Scherkerkewitz (p. 03), define religião como a "crença na (ou sentimento de) dependência em relação a um ser superior que influi no nosso ser — ou ainda — a instituição social de uma comunidade unida pela crença e pelos ritos". Ao falar-se em liberdade de religião, necessário que se analise o conceito do termo, haja vista tratar-se de uma noção relativa para as pessoas. Todavia, não existe definição legal do que vem a ser religião. Desse modo, a proteção à liberdade de religião não se restringe às religiões tradicionais, já que a Constituição não faz qualquer diferença entre religiões e seitas.

Como consequência da proteção conferida, a liberdade de culto prevê que a exteriorização da crença espiritual necessita de um local físico para sua manifestação, de modo que, a exteriorização da liberdade de crença e a proteção quanto à realização do culto, assegura os locais destinados a essa finalidade, que são os templos (SILVA JUNIOR, p. 15).

Conclui-se, desse modo, que a liberdade de crença abrange não apenas o direito de escolher a religião que mais interessa ao indivíduo – ou não escolher nenhuma, mas também externar essa crença, seja na manutenção de locais apropriados para essas práticas, seja praticando os ritos e cerimônias típicos ao culto, com suas particularidades, não devendo o Estado intervir, inadvertidamente, nas questões religiosas.

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Sobre a autora
Malú Flávia Pôrto Amorim

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Pós-graduanda em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Malú Flávia Pôrto. Sacrifícios rituais em religiões afro-brasileiras.: A proteção jurídica aos animais não humanos frente a valores religiosos e culturais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4082, 4 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31559. Acesso em: 25 abr. 2024.

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