9. USO DE ANIMAIS EM SACRIFÍCIOS RITUAIS NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS
Após o exame das questões que envolvem o tema proposto, analisar-se-á, a seguir, os sacrifícios de animais nas religiões afro-brasileiras, posto que apenas estas são objeto de estudo desta pesquisa, com o fim de compreender as motivações para sua prática, sua essência e o modo como são realizados, a fim de se discutir os possíveis argumentos para sua legitimação. Destaque-se as dificuldades em obter esses dados, tendo sido encontrado referências, em sua maioria, ao que ocorre no Candomblé, que será aqui utilizado como um paradigma
9.1. Finalidade dos sacrifícios
Inicialmente, deve-se esclarecer que o sacrifício ritual de animais não é uma prática exclusiva das religiões brasileiras de matriz africana, prática essa adotada por, por exemplo, parte dos muçulmanos quando termina o período chamado de Ramadã, em que um cordeiro é degolado, e na religião judaica existe o abate kosher, um ritual de abate para a preparação de alimentos. Encontram-se ainda noticias de sacrifício de animais por toda a Bíblia, embora os cristãos não se utilizem mais dessa prática, depois da morte de Jesus Cristo (ROBERT, p. 02). Os incas e os astecas, em honra ao Deus sol, sacrificavam humanos no topo de pirâmides, como forma de oferendas, pois pensavam que, assim, aplacariam sua ira e evitariam calamidades. Atualmente, encontra-se o sacrifício de animais no Hinduísmo, no Islamismo, como já dito, e nas religiões afro-brasileiras, como o Candomblé, Xangô, Batuque e Umbanda, que interessam a este estudo (ISILIANE, p. 06-07).
A prática de sacrifícios tem fundamentos milenares e mágicos, representando, para estas religiões, um dogma e são realizados em diferentes situações. Nas religiões afro-brasileiras, o sacrifício de animal é entendido como uma troca de energias entre o fiel e o animal imolado, quando este tem a finalidade de tirar as energias negativas do adepto (chamado descarrego). Existe outro tipo de sacrifício, em que o animal é sacrificado para o Orixá (divindade), como uma oferenda. Cada Orixá tem um animal específico de sua preferência, e é este que lhe é ofertado. Esta oferenda, em geral, é realizada uma vez por ano na festa do Orixá, que costuma receber também outros tipos de oferenda, composta por flores e frutos, assim como existem outros meios de descarregar uma pessoa. Dessa forma, o sacrifício pode ser substituído por uma outra prática, se não for confortável ao fiel, mas existem situações em que o sacrifício se faz necessário e insubstituível, caso em que cabe ao fiel, se entender preciso, recusar-se, aceitando que não obterá os favores do orixá (ROBERT, p. 02).
Através dos sacrifícios, os espíritos são fortificados e alimentados, e como resultado, os pedidos e desejos dos fiéis podem ser atendidos, como a cura de doenças, solução de problemas financeiros e pessoais. Dessa forma, a energia conduzida em forma de sacrifício, volta como um presente para quem realiza o sacrifício (LÉO NETO, 2009, p. 04).
Existe uma noção de manutenção do equilíbrio das forças, que permeia toda a relação dos adeptos com a natureza. Nesse sentido, ao se realizar uma oferenda, entende-se como um pagamento a algo que o orixá deu e precisa ser devolvida (BRAGA, 2000, p.195).
Cumpre esclarecer que o animal não é sacrificado por qualquer pessoa. Apenas quem pode sacrificar um animal é o sacerdote que tem o que chamam a “mão de faca”, que é a permissão que os Orixás dão para sacrificar um animal. Em alguns casos, outra pessoa pertencente ao terreiro, pode auxiliar o sacerdote. Ao imolar um animal, o sacerdote não está matando-o mais entregando uma oferenda ao sagrado, à divindade (ROBERT, p. 03).
É utilizada a expressão "comer" para dizer que uma entidade espiritual irá alimentar-se da oferenda, como um simbolismo. Obviamente, os Orixás não irão sair do plano espiritual para comer, literalmente, o animal que está sendo oferecido, mas se alimentam da energia da oferta, energia que os adeptos do Candomblé denominam 'Axé', uma palavra nagô. Axé é caracterizado como uma força mística que está presente em alguns lugares, objetos ou determinadas partes do corpo do animal, como o coração, o fígado, os pulmões, os órgãos genitais, leitos de rios, pedras, sementes e frutos sagrados. O sangue é um componente vital, por ser considerado o transportador do Axé presente nos animais. É, por isso, coletado e utilizado separadamente para renovar os objetos rituais de Axé (LÉO NETO, 2009, p. 04).
As partes dos animais, uma vez preparados, são colocadas em recipientes de madeira ou cerâmica e, posteriormente, envolvidas com o tecido do estômago da cabra, o que chamam Axó, que significa Axé de roupas. O Axó impede que energia negativa de outras entidades indesejáveis entrem na oferta e drenem sua vitalidade. A oferta é depois colocada no “pé do santo", que significa dizer o lugar dedicado a cada orixá, chamado “assentamento” ou “iba”.
Poucos dias após o ritual de sacrifício, ocorre uma festa comunitária onde as outras partes do animal, que não são oferecidas, são usadas ??para preparar vários pratos, dados às pessoas presentes no festival. O consumo da carne de um animal que foi oferecido tem Axé, e é uma maneira de começar uma comunhão com os deuses, em que os seguidores estariam compartilhando a mesma comida que seus próprios deuses gostam. No entanto, a carne de alguns animais não pode ser consumida, como a de porco, que tem o que chamam de “quizila”, uma energia negativa, razão pela qual o seguidor é proibido de comer a carne, que é então doado a comunidades carentes (LÉO NETO, 2009, p. 05).
O tipo de animal usado depende do orixá a quem a oferta é feita. Enquanto algumas espécies podem ser sacrificadas em honra de mais de um orixá, outras espécies são de preferência de orixás específicos, e considerados grandes guloseimas. Algumas espécies têm funções específicas, como de limpeza, quando são oferecidas aos orixás como parte de um ritual de cura, ou são usados ??para executar o Bori, um tipo de ritual de iniciação (LÉO NETO, 2009, p. 05).
Cada orixá tem uma morada específica, um reino que ele ou ela governa e em que ele ou ela reside. Oxossi, por exemplo, é considerado um caçador que reina sobre as florestas selvagens. Como este orixá é considerado como um protetor dos animais selvagens, animais silvestres não são usados ??em rituais de sacrifício em sua honra. Quando solicitado pela divindade um animal que é difícil de encontrar, o sacerdote ou a sacerdotisa estabelece um canal de comunicação com a divindade que fez a solicitação. Esta consulta consiste em explicações para não fornecer determinadas ofertas e negociações sobre alternativas. É realizado por meio de quatro búzios, que são jogados ao chão pelo sacerdote ou sacerdotisa, que então interpreta a vontade das divindades pela forma como os búzios caem.
Animais que são usados ??como oferendas em sacrifícios devem ser necessariamente saudáveis, justos, fortes e sem problemas físicos. O sexo do animal também é relevante e é relacionado ao gênero dos orixás. Orixás femininos (IABAS) "comem" os animais do sexo feminino, enquanto Orixás masculinos (Boros) "comem" os animais machos.
A cor é também um critério importante para oferenda aos orixás. Cada orixá tem uma cor que o simboliza, e essa cor está presente nos colares, conhecidos como guias, usados ??pelo "povo-de-santo". A cor de preferência do orixá determina a cor do animal que vai ser sacrificado em sua honra.
Características comportamentais do animal a ser sacrificado também estão, muitas vezes, relacionados com a personalidade do orixá a quem são oferecidos. Exemplos são o estilo de natação graciosa do pato que é oferecido a Oxum, que é considerado justo e sedutor, e da força e resistência da tartaruga, que é oferecido a Xangô, que é considerado de ser forte e potente. Os animais oferecidos, assim, transportam a simbologia da deidade sobrenatural a quem são oferecidos, permitindo a recuperação da energia, elementos e função representada por cada Orixá (LÉO NETO, 2009, p. 06).
9.2. Modo de realização
Antes de o animal ser sacrificado, ele entra em uma espécie de transe (pode-se dizer que é uma espécie de hipnose), de modo que, quando é imolado, o animal não agoniza gritando. Atualmente, se utiliza apenas animais domésticos ou domesticados criados em cativeiros para este fim e, enquanto o animal permanece vivo na casa de santo, não pode ser mal tratado, pois é considerado sagrado, já que servirá de oferenda ao Orixá (ROBERT, p. 03).
A pessoa responsável pelo sacrifício de animais, como já dito anteriormente, que tem a permissão dos Orixás para realizar os sacrifícios, é conhecida por Axogum, e está sempre em uma posição específica dentro do terreiro. Ele deve ser um homem e ser iniciado ao culto de Ogum, o orixá patrono do aço, ferro e minérios. Só os homens podem exercer a função de sacrifício, já que as mulheres são as doadoras, e não as tomadoras de vida (LÉO NETO, 2009, p. 07).
Segundo Carneiro (1977, p. 59), as festas de Candomblé geralmente começam com o sacrifício dos animais, ao som de cânticos e em meio a danças sagradas, em que ficam presentes apenas o sacrificador (Axogum), assistido pela mãe de santo e por algumas filhas mais velhas, coadministradoras da comunidade. O sangue dos animais é utilizado para regar as pedras (itas) dos orixás, em uma cerimônia secreta.
Da obra de Braga (2000, p. 154-156), pode-se inferir, ao explicitar outro uso do termo Axé, que os animais sacrificados tem seu corpo separado em diferentes porções, que são preparadas e cozidas para serem ofertadas aos orixás, junto com parte das vísceras. Ao Axogum cabe apresentar a carne do animal, sendo o oficiante exclusivo, e é ele quem sabe qual técnica sacrificial adotada para cada caso e quais partes devem ser separadas. As outras partes do animal, que também são sagradas, apenas não devem compor o alimento dos deuses e por isso não são oferecidas, são preparadas para ser servidas numa refeição aos membros da comunidade, durante as cerimônias.
Os métodos de abate dependem tanto do tipo de animal que é utilizado quanto do orixá ao qual o animal é oferecido. Animais considerados sagrados, como pombos (um mensageiro dos deuses) não são mortos pela faca. Neste caso, as folhas de saião são usadas para estrangular e decapitar a ave. Esses animais também são utilizados nas cerimônias de iniciação no Candomblé conhecidas como Bori, que ocorre quando um indivíduo aceita a religião e se compromete a seguir as tradições associadas, tais como participar de rituais de sacrifício, de acordo com as preferências do orixá escolhido.
Com relação ao Bori, Lody (1987, p. 28-29) conta que o noviço se submete a rituais, em que, em um certo momento, é oferecida comida à sua cabeça, em que os alimentos a tangem e o sangue de animais imolados é derramado, para selar a aliança. O iniciado recebe, ainda, parte do sacrifício, relacionando o seu corpo com os símbolos do orixá, o que une os elementos dessa realidade. O iniciado deve ainda beber o sangue do animal sacrificado para concluir a primeira etapa do ritual de iniciação.
No âmbito das práticas de sacrifício, como já citado, existem certos rituais que são utilizadas para curar doenças, onde se acredita que a doença do ser humano é trocada pela saúde do animal, geralmente um galo ou uma galinha. O animal vivo é passado sobre o corpo do doente, permitindo que a doença humana possa passar para o animal. O animal é posteriormente morto para exterminar o mal causado ao ser humano. Há entendimento diverso, no sentido de que a doença não é transmitida para o animal, mas que o sacrifício é uma oferenda ao orixá conhecido como Omulu, que é responsável por curas e que, em troca, iria cumprir com os pedidos de cura feitos durante o ritual (LÉO NETO, 2009, p. 08).
Há grande consumo de alimentos durante os rituais religiosos do terreiro. Os iniciados de Ògún, que levam os ritos da puberdade masculina, tomam um papel ativo na preparação da refeição cerimonial. Apesar das imagens negativas associadas ao sacrifício animal, os adeptos acreditam que aqueles que preparam a carne para consumo humano estão executando um rito sagrado. Dessa forma, cada vez que um animal é abatido como alimento torna-se uma oferta ao Orixá, considerada uma aliança entre ele o ser humano. O acordo é uma oração de gratidão pelas bênçãos de nutrição, e uma oração de respeito para as forças da natureza, que continuam a fornecer alimentos para a saúde e bem-estar da comunidade (FATUNMBI, p. 81).
Assim, os sacrifícios de animais para os praticantes de religiões afro-brasileiras são considerados práticas sagradas e são realizadas com muito respeito ao animal alvo do sacrifício, nunca de forma a causar sofrimento aos animais e apenas quando consideram ser necessário para que os Orixás atendam as necessidades dos fiéis.
9.3. Possibilidade legal de realização dos sacrifícios
Sem dúvida há dificuldade em sopesar os interesses conflitantes no caso em questão, havendo grande divergência entre os doutrinadores a respeito, em que alguns rejeitam fortemente a possibilidade de que os sacrifícios ocorram de acordo com as normas enquanto outros não enxergam qualquer impedimento legal para sua realização.
Martel (2007, p. 05) sustenta que, embora o sacrifício de animais não humanos seja considerado parte essencial do culto às divindades, a crescente proteção dos animais não humanos, especialmente com a proibição de atos cruéis e de maus-tratos, inclusive prevista na Constituição Federal brasileira restringe o direito fundamental à liberdade de culto, pois a legislação proíbe atos cruéis e abate desnecessário de animais.
Oliveira (2008, p. 04) afirma a impossibilidade legal do sacrifício de animais em ritos religiosos, por se considerar que a liberdade religiosa não inclui a lesão ou a matança de animais, o que afrontaria o disposto na Carta Magna. Dessa forma, o direito do animal de permanecer vivo, tendo a sua integridade corporal a salvo, superaria o direito à praticar os ritos de uma religião. Pensar o contrário significaria a adoção de um posicionamento especista, o que explicaria a não se admissão de realização de sacrifício de seres humanos, mas sim de animais. Acrescenta-se a isso que o direito da minoria não pode ser invocado, primeiramente porque nem toda minoria tem direito, estes interesses devem ser amparados pela legislação, o que não se entende acontece neste caso e, segundo o direito da minoria visa proteger os mais fracos, que, neste são os animais, não os humanos adeptos destas religiões. Este autor aduz, ainda, não ser crível pensar que a morte ou a dor de um animal, inocente, possa de algum modo contribuir para a felicidade humana ou para a ligação com Deus, de modo que não é um ato tolerável, considerando o sentimento ou a razão. Deve-se discordar deste posicionamento do autor, pois este invoca suas crenças pessoais acerca dos dogmas religiosos discutidos. Os adeptos destas religiões acreditam que estão realizando uma prática necessária para obter seus objetivos, e não cabe discutir se a religião tem preceitos corretos ou não, uma vez que não existem parâmetros objetivos para avaliação, reduzindo-se sempre esta análise a convicções pessoais dos envolvidos.
Neste contexto, urge destacar o pensamento de Perelman (1996, p. 315), para quem, numa sociedade pluralista deve haver uma tolerância recíproca a fim de garantir a liberdade de religião, assegurando aos membros da comunidade uma coexistência pacífica, quaisquer que sejam suas concepções religiosas.
A Constituição de 1988 protege a liberdade de crença e culto, bem como às organizações religiosas, como já explorado anteriormente, cabendo a cada um decidir a religião que mais satisfaz suas necessidades espirituais. A liberdade de culto é a exteriorização da liberdade de crença e a sua manifestação também está assegurada, todavia, Silva Junior (p. 15) coloca que a externação dessa liberdade não é absoluta, pois a prática de suas liturgias não pode afrontar valores e regras sociais já impostas pela sociedade. Dessa forma, entende que o culto deve ser exercido em harmonia com os demais direitos fundamentais, evitando-se a colisão com outros direitos fundamentais, não se podendo sobrepor a liberdade de culto a outros valores também protegidos pelo Sistema Constitucional, como a proteção à vida e à dignidade da pessoa humana.
Já Catana (2006, p. 03), enfrenta a questão considerando as concepções éticas envolvidas. Observando uma concepção biocêntrica, que não distingue os direitos humanos e direitos animais, os animais como seres integrantes da natureza, assim como o homem, deveriam ter o seu direito à vida preservado, mesmo sob o pretexto de proteção da religião ou da cultura do homem, uma vez que seu direito seria intrínseco e independente da finalidade de se atender as necessidades ou a cultura humana, pois o homem não é o centro do universo ou senhor absoluto do ambiente (ISILIANE, p. 07).
Considerando a visão antropocêntrica, no entanto, o homem poderia realizar os sacrifícios, pois assim ele preservaria sua religião e cultura, considerando ainda que o sacrifício deve ser feito com o consentimento da vítima, como afirmam os praticantes destas religiões, este não se constituiria um ato de crueldade, que Machado (2009, p. 807) conceitua como insensibilidade que faz com que se tenha indiferença ou prazer com o sofrimento alheio. Para Cadavez (2008, p. 113), a crueldade a que se refere a constituição deve ser entendida como um mal que ultrapasse o absolutamente necessário para garantir ao homem qualidade de vida, segurança e bem-estar.
Ainda a respeito da crueldade, Milaré (2009, p. 177-178) afirma que não há crueldade sem a imposição de sofrimento ao animal, de forma que os animais merecem respeito contra molestações ou ameaças físicas. Por outro lado, aponta que é possível sua utilização, devendo o homem assumir o papel de gestor meio ambiente, mas sem que, com isso, acoberte perversidades ou violência em prol de valores culturais ou recreativos, como touradas e brigas de galo.
Sob a visão antropocêntrica, portanto, o homem é um ser diferenciado dentro da natureza, portando direitos e deveres não conferidos aos animais. E é sob essa visão que se encontra moldado o nosso ordenamento jurídico (CATANA, 2006, p. 03), de modo que é sob esse aspecto que deve ser encarado as questões envolvendo os animais.
A expressão da religiosidade, manifestada através de sacrifícios de animais, não violaria o direito ambiental. Admitida essa visão doutrinária, não haveria colisão de direitos. Prevaleceria a preservação da cultura, em detrimento do direito dos animais (ISILIANE, p. 07).
Poder-se-ia considerar que o sacrifício de animais se adequaria à conduta tipificada no artigo 29, da Lei nº 9.605/98, que prevê uma pena para quem matar animais silvestres ou ainda no artigo 32, que incrimina a prática de quem pratica ato de abuso, maus tratos, mutilação ou morte de animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Deve-se destacar que não há, no artigo 37 da lei, que trata das causas de exclusão da ilicitude, menção ao sacrifício ritual de animais (ROBERT, p. 03).
Embora os animais tenham seus direitos, como já visto, o sacrifício é um sacramento essencial das religiões afro-brasileiras e há casos em que não pode ser substituído. Não pode o Estado, sob pena de ferir o preceito constitucional que assegura a liberdade de culto, interferindo nos dogmas religiosos, querer extinguir essas práticas. Destaque-se que vários animais morrem para o consumo diário dos seres humanos, o que é permitido pela legislação pátria e os animais sacrificados são mortos com a preocupação de que eles não sofram, não se podendo dizer que são vítimas de crueldade ou maus-tratos, sendo que estes, com muita frequência, são também consumidos, não havendo grande diferenciação entre sua morte e aquela destinada ao abate para consumo. Portanto, deve prevalecer o direito de livre culto (CATANA, 2006, p. 04).
Machado (2009, p. 807) afirma que os animais devem ter sua vida respeitada e, mesmo o texto da constituição não dizendo, expressamente, que eles tenham direito à vida, considera lógico que os animais protegidos da crueldade devem estar vivos, não mortos, devendo sua morte ocorrer diante de uma justificativa aceitável. Obviamente, para os adeptos das religiões analisadas, o sacrifício dos animais é justificativa aceitável, ultrapassando a mera questão cultura, mas alçado ao sagrado, uma vez que consideram essencial para obter os favores das entidades.
Rachel (2012, p. 31), de modo diverso do exposto anteriormente, entende que, havendo ausência de exceção na regra ambiental, o sacrifício de animais em cultos religiosos enquadra-se na descrição legal do artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais. Todavia, em razão da proteção constitucional à liberdade de culto, há uma exclusão da tipicidade da conduta, não havendo prática de crime e conclui, citando Teraoka, afirmando não ser razoável impedir o sacrifício de animais, pois isto significaria impedir a própria prática da religião.
Uma vez que não há norma expressa que proíba a morte de animais em sacrifícios e, considerando uma interpretação das normas que protegem os animais pela concepção ética que norteia o ordenamento jurídico nacional não há qualquer impedimento legal para que estas práticas sejam realizadas, de acordo com o artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988, pois “ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (ROBERT, p. 06).
Silva Neto (2009, p. 670) complementa este entendimento, afirmando que não se pode opor restrição à liberdade de culto com aparo apenas na ideia de bons costumes, estando condicionada à existência de lei, ou seja, enquanto não houver lei restringindo este direito, ele deve ser exercido de forma plena.
Por fim, cabe citar que foi publicada a Instrução Normativa nº 3, de 17 de janeiro de 2000, visando:
padronizar os Métodos de Insensibilização para o Abate Humanitário estabelecer os requisitos mínimos para a proteção dos animais de açougue e aves domésticas, bem como os animais silvestres criados em cativeiro, antes e durante o abate, a fim de evitar a dor e o sofrimento (...)
Esta Instrução Normativa, que procurou atender aos critérios de bem-estar animal, aprovou o Regulamento Técnico de Métodos de Insensibilização para o Abate Humanitário de Animais de Açougue (Anexo B), que, em seu item 11.3, prevê que:
é facultado o sacrifício de animais de acordo com preceitos religiosos, desde que sejam destinados ao consumo por comunidade religiosa que os requeira ou ao comércio internacional com países que façam essa exigência, sempre atendidos os métodos de contenção dos animais.
Há, portanto, um permissivo normativo ao sacrifício de animais segundo preceitos religiosos. Embora o legislador não tenha sido claro em suas disposições sobre a questão, percebe-se que, considerando o sistema normativo como um todo, a prática não é tida, no ordenamento jurídico brasileiro, como uma afronta aos dispositivos constitucionais que vedam a crueldade com os animais.