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Sistemas de responsabilidade civil objetiva e os acidentes de trabalho

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10/09/2014 às 15:19
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5. Revisão crítica da jurisprudência trabalhista

O estudo profundo da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho acerca da responsabilidade civil objetiva e os acidentes de trabalho revela a existência de sincretismo equivocado, mormente porque muitos dos julgados confundem os requisitos de um microssistema com outro. Também observamos que os julgados derivam da simples atividade de risco a certeza da condenação, sem perquirir quanto às excludentes de nexo causal que a legislação admite, transformando, por interpretação inadvertida, responsabilidade objetiva comum em responsabilidade por risco integral, a qual, recordemos, não tem incidência nas relações de trabalho.

Um julgado paradigmático reconheceu que a atividade de motoboy é de risco, fazendo incidir nessa hipótese a cláusula geral codificada do art. 927, parágrafo único, do Código Civil.[82] Até aqui não dissentimos da conclusão do julgado.[83] Os equívocos tiveram início quando o julgado derivou desse enquadramento a certeza da indenização, desconsiderando a excludente de nexo causal presente no caso, qual seja o assalto seguido de morte. Se o motoboy transportasse valores, cargas preciosas etc., até poder-se-ia assentir com a teoria de que os assaltos não são imprevisíveis e externos à atividade, antes seriam riscos conexos a ela. Contudo, no caso dos autos, a hipótese fática passou ao largo dessa especificidade, na medida em que se tratava de motoboy entregador de encomendas comuns. Outro equívoco do acórdão foi invocar disposições da legislação previdenciária especial (Lei n. 8.213 de 1991) para o fim de caracterização de acidente de trabalho, misturando as consequências de natureza jurídica previdenciária com as de natureza civil.[84]

Em outra situação, analisando acidente de trabalho em que se discutia a responsabilidade do dono da obra e do empregador do trabalhador vitimado, asseverou com acerto que a irresponsabilidade do dono da obra, prevista na OJ n. 191 da SDI-1, é restrita às verbas de natureza jurídica trabalhista, nada dizendo quanto à responsabilidade civil. Contudo, em nosso sentir, equivocou-se a decisão ao manter a responsabilidade solidária entre o dono da obra e a empregadora no caso concreto ao argumento de que ambas concorreram para o acidente. A atuação concorrente do dono da obra teria se dado porque se “esquivou de fiscalizar o cumprimento das obrigações” quanto à segurança e saúde do trabalhador, assim “agiu com culpa e deve ser responsabilizada solidariamente”.[85] A questão central é saber se o contratante de uma empreiteira tem a obrigação legal de fiscalizar e exigir que essa última adote as medidas de prevenção de acidentes de trabalho, como o uso de EPI. Inobstante o senso comum direcione a conclusão da existência dessa obrigação, na verdade ela não existe, ressalvados os casos de contratações pelo Poder Público mediante procedimento formal de licitação. Por outras palavras, não há obrigação legal alguma – daí porque não se cogita de omissão culposa do dono da obra – de fiscalização quanto às medidas de prevenção de acidentes de trabalho inseridas na relação jurídica entre o trabalhador e o empregador. Não havendo obrigação de fiscalização, decorre que não há omissão e muito menos participação ilícita na ocorrência do dano, requisito indispensável à imposição da condenação solidária, na forma do art. 942 do Código Civil, incorretamente invocado pela decisão.

Noutro caso idêntico[86], a decisão também perfilhou a distinção entre a responsabilidade do dono da obra quanto às verbas trabalhistas e civis, admitindo a responsabilidade no último caso. Entretanto, também avançou para condenar, desta feita subsidiariamente, o dono da obra pelas indenizações civis. Sequer o acórdão debateu o fundamento da responsabilidade do dono da obra; não investigou se era objetiva ou subjetiva no caso dos autos, para discutir sua eventual culpa. Invocou, como meros topos argumentativos, que houve atuação culposa do dono da obra, sem apontar qual, bem como enunciou alguns princípios para concluir que condenava “como forma de tornar efetivos os princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho em ordem a afastar o uso abusivo do direito daquele em benefício do qual o serviço fora prestado (dono da obra).”[87]

Também é divergente a posição no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho quanto à atividade de motorista ser de risco ou não, havendo decisões recentes em ambos os sentidos.[88] Embora em nossa opinião não consideremos a atividade de motorista como de risco, essa não é a questão principal, na medida em que a correto enquadramento é um problema interpretativo judicial. O decisivo é, mesmo para aqueles que entendem que a atividade de motorista seja de risco, enquadrando-a no microssistema do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, compreender que a modalidade é objetiva comum, ou seja, a legislação admite que o réu prove uma das quatro excludentes de nexo causal (fortuito externo, força maior, fato de terceiro e fato exclusivo da vítima), o que tem ficado fora de debate nas decisões da Corte; para os acórdãos, têm bastado dizer que a atividade é de risco, inserindo-a na cláusula geral codificada, para, em “salto heróico”, derivar a condenação, sem a necessária investigação do requisito do nexo causal e da hipóteses de seu rompimento.

A Corte Superior também reconheceu corretamente que a atividade de vigilante transportador de valores é de risco, incidindo a cláusula geral codificada[89], mas não avançou na hipótese para debater se o dano causado por assaltantes importa no rompimento do nexo causal. Admite-se a defesa, com refinada argumentação jurídica, que o risco de assalto nessa atividade específica não é considerado externo e inevitável, mas integra, por relação de conexidade, os riscos normais do empreendimento; também é defensável a posição, como faz o Superior Tribunal de Justiça, que os assaltos e roubos, mesmo nas atividades de risco em que a ocorrência desses eventos sejam mais comuns, ainda assim são inevitáveis, classificados como força maior. A grande questão é a necessidade de as decisões do Tribunal Superior do Trabalho e, por conseguinte, dos tribunais especializados, estarem analiticamente fundamentadas em relação a qual macrossistema o acidente se insere – se no subjetivo ou objetivo –, depois avançar para identificar qual dos microssistemas objetivos é incidente, se da espécie comum ou agravada, uma vez mais avançar para verificar as modalidades de excludentes de nexo causal admitidas pela legislação, jamais esquecendo que não há microssistema algum que preveja responsabilidade por risco integral.

Na prova de sentença do XIII concurso público para juiz do trabalho do TRT da 18º Região, que foi realizada em 21.04.2013, a questão de mérito principal a ser discutida envolvia a morte de um trabalhador e o tema dos acidentes de trabalho. Tratava-se de um motorista empregado de empresa de transporte coletivo urbano municipal que morreu em razão de incêndio provocado no veículo pelos colegas motoristas que integravam o movimento grevista. Alguns motoristas, entre os quais o sinistrado, resolveram trabalhar durante o período de greve e, após o início das atividades e no itinerário, o motorista foi interceptado por piquete dos grevistas, os passageiros foram retirados do veículo, mas o motorista recusou-se a tanto, quando foi provocado o incêndio e o motorista faleceu. Havia alegação de que o motorista trabalhou com medo de perder o emprego e por coação indireta do diretor da empresa, além de alegações de responsabilidade civil objetiva.

Para resolver a questão o primeiro passo é verificar em qual microssistema de responsabilidade a relação fática se insere, tendo início pelos da espécie objetiva, enquanto excepcionais. Não houve acidente de natureza ambiental, nuclear, por objetos candentes, ruína de edifício, com animais e na atividade de mineração. Resta a possibilidade de incidência nos microssistemas do acidente de transporte, da cláusula geral codificada e da responsabilidade administrativa das pessoas jurídicas privadas prestadoras de serviços públicos. Não houve também acidente de transporte, ao contrário do que possa parecer em uma análise descuidada, na medida em que apenas os passageiros, empregados ou clientes, podem ser vítimas dessa modalidade de acidente, mas o próprio motorista não (vide tópico 4.3. supra). Também não se insere na cláusula geral codificada, pois a atividade de motorista de ônibus municipal não é atividade que o submeta à risco potencial maior que os demais membros da coletividade. Por fim, há enquadramento no microssistema por risco administrativo, na forma do art. 37, § 6°, da Constituição, na medida em que a atividade de transporte público municipal é considerada serviço público e a responsabilidade das pessoas jurídicas privadas é objetiva, na modalidade do risco administrativo. Para resolver a questão submetida à análise, poder-se-ia argumentar fundamentadamente que a atividade é de risco acentuado, até porque há jurisprudência do TST nesse sentido, mas ainda assim tratar-se-ia, como na modalidade por risco administrativo, de responsabilidade civil objetiva normal.[90] Significa dizer que dispensa a prova de ato ilícito e culpa, mas exige-se prova de dano e nexo, inclusive quanto ao nexo admite-se a prova dos quatro excludentes. E é exatamente o caso prático do concurso, em que o nexo causal foi rompido pelo fato dos terceiros que, em evento inevitável, imprevisível e irresistível, não se inserindo nos riscos normais da atividade, provocaram o incêndio criminoso que gerou a morte. Enfim, por qualquer ângulo do enquadramento, seja inserindo a relação fática no macrossistema objetivo, tanto da cláusula geral codificada como nos acidentes por risco administrativo, ou mesmo considerando a responsabilidade subjetiva genérica, o nexo causal é indispensável para estabelecer a relação jurídica indenizatória e, no caso concreto, foi rompido pelo fato de terceiro, fortuito externo, inevitável, imprevisível e irresistível. Sequer por interpretação relaxada poderia dizer que o empregador responderia então pelos atos dos grevistas que causaram o incêndio, invocando-se o art. 932, III, do Código Civil, na medida em que a responsabilidade objetiva indireta do empregador nesses casos dar-se-á apenas quando os danos causados pelos empregados ou prepostos se dar no exercício do trabalho ou em razão dele, o que não se verificou também.

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A mesma relação fática será recolhida nas malhas da responsabilidade previdenciária, que adota a teoria do risco integral, onde mesmo a atitude criminosa dos causadores do incêndio não isentará o INSS da sua obrigação de pagar os benefícios aos dependentes do motorista vitimado, amoldando-se a situação no conceito de acidente de trabalho previdenciário, cujos requisitos são muito diferentes dos da responsabilidade civil.


6. Conclusões

·      O ordenamento jurídico revela dois grandes sistemas de responsabilidade civil: o subjetivo e o objetivo, conforme a lei dispense o elemento da culpa do agente para estabelecimento da relação indenizatória, havendo algumas espécies dentro dos dois grandes conjuntos, formando-se microssistemas, os quais convivem harmonicamente, sem preferência de um sobre o outro; são as situações fáticas que serão, indistintamente, enquadradas em um ou outro sistema, conforme os requisitos específicos estejam atendidos.

·      Na espécie subjetiva há três microssistemas: responsabilidade civil subjetiva comum, da restrita à dolo ou culpa grave e a com presunção relativa de culpa. Do grupo objetivo fazem parte a responsabilidade normal e a agravada. É a legislação que indicará expressamente quais são as relações sujeitas às quatro últimas espécies, de modo que não havendo indicação legislativa, estaremos diante da subjetiva comum. Segue que a responsabilidade civil subjetiva é residual, ou seja, primeiro o intérprete deve analisar se a situação fática se enquadra em algumas das situações que a lei especial previu como de responsabilidade objetiva, comum ou agravada; se não, depois avançar para verificar se ela se enquadra na cláusula geral pelo risco da atividade do art. 927, parágrafo único, do Código Civil; havendo nova negativa, avançar para verificar se há alguma presunção legal de culpa ou a exigência de dolo ou culpa grave; apenas havendo negativa quanto às três primeiras tentativas de enquadramento é que se concluirá que no caso o sistema de responsabilidade civil incidente é o subjetivo comum ou clássico, com os requisitos do dano, nexo causal, ato ilícito e culpa.

·      As hipóteses fáticas acidentárias ou de doenças ocupacionais poderão amoldar-se a dois ou mais microssistemas de responsabilidade objetiva, quando a aparente antinomia será resolvida em favor da norma mais favorável ao trabalhador, globalmente analisada (teoria do conglobamento). É exemplo da sobreposição de microssistemas o acidente generalizado ocorrido em mina de exploração de minerais radioativos, cujo acidente amoldar-se-á nos microssistemas por acidentes nucleares, acidentes ambientais, acidentes nas atividades de mineração e na responsabilidade administrativa das pessoas jurídicas de direito público ou das de direito privado prestadoras de serviços públicos, optando-se, no caso concreto, pelo microssistema nuclear, mais benéfico, pois não se admite excludente de nexo causal mesmo que haja fato de terceiro ou caso fortuito, além de o sistema específico admitir a responsabilização subsidiária do Estado, caso o devedor principal não tenha recursos.

·      Os requisitos gerais do sistema de responsabilidade objetiva são dano e nexo causal, dispensando prova de culpa e do ato ilícito. Porém, os diversos microssistemas do gênero objetivo irão prever especificidades, como a possibilidade de demonstração das excludentes de nexo causal, nas modalidades de responsabilidade objetiva normal, ou a vedação legal expressa de se invocar uma delas, na modalidade objetiva agravada, bem como em cada sistema especial há eleição legislativa de um prazo de prescrição para o exercício da pretensão. Os prazos prescricionais para pretensão de responsabilidade decorrente de acidente de trabalho são diversos e especiais, não se confundindo com o prazo trabalhista genérico previsto no art. 7°, XXIX, da Constituição, aplicável apenas às verbas de natureza jurídica trabalhista em sentido estrito e não de natureza jurídica civil.

·      É indispensável que as decisões judiciais fundamentem analiticamente em qual macrossistema a relação acidentária se insere, depois avançar para identificar qual dos microssistemas objetivos é incidente, se da espécie comum ou agravada, analisando as modalidades de excludentes de nexo causal admitidas pela legislação, significando que só o fato de dizer que a responsabilidade é objetiva passa ao largo da correta fundamentação e não resolve a questão.

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Sobre o autor
André Araújo Molina

Doutorando em Filosofia do Direito (PUC-SP), Mestre em Direito do Trabalho (PUC-SP), Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual Civil (UCB-RJ), Bacharel em Direito (UFMT), Professor da Escola Superior da Magistratura Trabalhista de Mato Grosso e Juiz do Trabalho Titular na 23ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOLINA, André Araújo. Sistemas de responsabilidade civil objetiva e os acidentes de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4088, 10 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31800. Acesso em: 26 abr. 2024.

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