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As minorias sociais e o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal

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Analisa-se o papel do Supremo como arena de lutas identitárias dos grupos sociais excluídos da tomada de decisões.

Introdução

Considerada a política nacional, tem-se percebido que questões polêmicas e controversas da política nacional têm sido decididas no Poder Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal, articuladas como arranjos constitucionais, em que se formalizam as intenções através de ações específicas de controle de constitucionalidade (controle abstrato/concentrado). Dentro dessa lógica, observa-se um Supremo atuante e que tem decidido questões originariamente de competência dos poderes representativos, fato este que causa inconformidades nesses mesmos poderes, argumentando-se pela invasão de competências.

Essa ampliação na atuação do Supremo Tribunal Federal não se trata de um movimento endógeno, ou seja, partindo de si próprio. Foram conferidas competências a partir da Constituição Federal de 1988 (CF), possibilitadoras de ser ele um solucionador de conflitos políticos e sociais. Essa decisão, de conferir-lhe competências e poderes, partiu dos próprios poderes representativos, que hoje esbravejam contra as decisões tomadas pelo STF. Ainda, o movimento de “substituição” do Executivo e Legislativo pelo Judiciário, parte da premissa de lacunas e desinteresses deixados por aqueles, sendo que resta ao Judiciário o papel de via alternativa para a realização de direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

O que se pretende analisar é a crescente utilização do Supremo Tribunal Federal por grupos minoritários para a consecução de seus direitos, uma vez que eles não têm sido decididos ou respeitados nos demais poderes. Dentro dessa ideia de consecução de direitos e garantias se encontra a função limitadora do poder público da Constituição, bem como de proclamação de direitos e garantias fundamentais individuais. 

Há de se estabelecer um debate contrário ao fato de as Constituições Federais servirem apenas para a consecução de interesses pessoais dos detentores do poder e grupos de pressão, afastando-se assim do povo e, principalmente das minorias sociais.


O caso da união estável homoafetiva

Caso emblemático a retratar a essência do presente objeto de estudo se dá no tocante à questão dos homoafetivos e a possibilidade de igualar seus direitos que vem sendo discutida há um longo tempo no cenário político e jurídico nacional, senão vejamos.

Foram propostos na Câmara dos Deputados dois projetos de lei a tratarem da possibilidade de adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos. O projeto de lei 2153/2011 foi apensado ao 7018/2010, de forma que ainda não houve nenhuma decisão pela Casa, sendo que os projetos continuam a tramitar.

Entretanto, o projeto de lei de maior relevância no que tange a essa temática é o de número 1151/1995, que visava disciplinar a união civil entre pessoas do mesmo sexo, dentre outras providências. O projeto foi retirado de pauta em 2001 em sessão deliberativa, em face de acordo entre os líderes. Posteriormente, em 2007, o parlamentar Celso Russomano requereu a inclusão do projeto de lei na ordem do dia, justificando pela necessidade de aprovação do projeto em razão dos direitos civis ali constantes. Restou decidido pela presidência da Câmara no ano de 2011 o arquivamento do requerimento de inclusão na ordem do dia, tendo em vista o fim da legislatura vigente àquela época.

O que se percebe com o acima relatado é a falta de interesse dos parlamentares em tratarem desse tema em específico, pela controvérsia existente em seu âmago, o que poderia acarretar em um indesejado desgaste político, ocasionando, inclusive, a perda de votos para os políticos.

Diante de tal cenário e da necessidade de regulamentação dos direitos, levou-se a questão ao Poder Judiciário, através da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 132, proposta pelo Governador do estado do Rio de Janeiro, e da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 4.277, proposta pelo Procurador-Geral da República, a almejarem, portanto, o reconhecimento, como entidade familiar, das uniões entre casais de gênero igual. O objeto das ações de controle abstrato de constitucionalidade era conferir interpretação conforme a Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil, para que as uniões públicas, contínuas e duradouras de casais do mesmo sexo fossem reconhecidas como entidade familiar.

Na ADPF restou demonstrada a inconformidade quanto ao modo com que são tratados os direitos e garantias fundamentais dos homoafetivos, com violação de preceitos fundamentais da igualdade, da segurança jurídica (artigo 5º, caput, CF), da liberdade (artigo 5º, II, CF) e da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, IV, CF).

A ADI, com idêntico objeto, desejava a declaração pela Suprema Corte do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, bem como a extensão de direitos e deveres já previstos nas uniões estáveis.

A manifestação pela improcedência das ações consubstanciava-se no entendimento literal do disposto no artigo 1.723 do Código Civil, enquanto reprodução do artigo 226, § 3º, da Constituição da República.

Em momento posterior, diante de alguma discussão no Supremo, reconheceu-se a ADPF como ADI. Ambas as ações foram julgadas procedentes, conferindo ao artigo 1.723 do Código Civil interpretação conforme a Constituição e reconhecendo-se à união entre pessoas do mesmo sexo os direitos e regras adotados para as uniões heteroafetivas.

O que se percebe aqui é que, ao desenvolver a sua função constitucional, enquanto “guardião da constituição”, o STF pode garantir a extensão de direitos a um grupo minoritário, que sofria, e ainda sofre, com a intolerância, preconceito, discriminação, situação esta causadora de diversos tipos de insegurança, como social, cultural, política e jurídica, respeitando assim preceitos dispostos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pacto de San Jose da Costa Rica, dentre diversos outros.

Assim, de extrema relevância a discussão sobre o papel contramajoritário do Supremo, situado no fato de ele tomar decisões em contraposição à vontade dos poderes representativos, portanto, representantes da vontade popular, quando da não deliberação sobre determinados temas. Esse contramajoritarismo exerce a função de proteção dos direitos fundamentais de determinado grupo da sociedade, que não obteve êxito na consecução dos direitos dentro do sistema político.


A discussão sobre o Judiciário e seu papel contramajoritário

A primeira ideia que se tinha sobre interpretação jurídica era da adoção de uma situação estritamente legalista em que havia a supremacia da lei formal escrita, reduzindo assim as possibilidades de interpretação e criação do Direito para além do texto positivado. 

Nesse sentido, Montesquieu (2005, p. 168-169) adota uma ideia do judiciário quase nulo, sem nenhuma abertura a ponto de modificar ou ser relevante para o cenário político de determinado Estado. Para ele, os julgamentos devem ser fixos para que “nunca sejam mais que um texto fixo da lei. Se representassem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente quais os compromissos que nela são assumidos”. Disserta ainda sobre a nulidade do judiciário, ao entender que

Poderia acontecer que a lei, que é ao mesmo tempo clarividente e cega, fosse em certos casos muito rigorosa. Porém, os juízes da nação não são, conforme já dissemos, mais que a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que desta lei não podem moderar nem a força e nem o rigor (2005, p. 172).

Fica claro que a reivindicação judicial deve existir para Montesquieu. Entretanto, a posição assumida por ele é de um judiciário estritamente normativista, legalista, em que há tão somente a consideração do texto da lei para determinado julgamento. 

Contemporaneamente, busca-se a superação da situação acima descrita a partir da constatação de que não há um sentido único para a realidade social e, assim, dá-se ao intérprete certo grau de subjetividade na criação do entendimento jurídico, político e social, especialmente no tocante às normas constitucionais, que têm como característica fundamental o conteúdo aberto, com estabelecimento de princípios e diretrizes ao Estado.

Completamente legítima a ideia de participação mais ampla do povo nesse processo, uma vez que a ele são direcionadas as normas previstas no ordenamento jurídico nacional, ampliando a função dele na elaboração do texto, através da representatividade e algumas possibilidades diretas, para abarcar também o processo de interpretação das normas, especialmente constitucionais.

O que se pretende efetivar, portanto, é uma ampliação no rol de intérpretes da Constituição, em que variados entendimentos sobre a essência das normas colaborará para maior efetivação dos direitos e garantias fundamentais individuais e sociais, daí a necessidade de uma Constituição aberta, que possibilite a adequação às mudanças sociais e consequentemente, a satisfação das necessidades e anseios da sociedade, gradativamente mais complexa.

Para Häberle (1997, p. 37)

“Povo” não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional: como partido político, como opinião científica, como grupo de interesse, como cidadão. (...) Dessa forma, os Direitos Fundamentais são parte da base de legitimação democrática para a interpretação aberta tanto no que se refere ao resultado, quanto no que diz respeito ao círculo de participante. Na democracia liberal, o cidadão é intérprete da Constituição!.

O que se pretendeu com o acima exposto foi discutir a possibilidade de ampliação da interpretação das normas, especificamente constitucionais, bem como a maior inserção dos cidadãos no processo de construção dessas normas, através de extensão da interpretação a eles.

Superada a noção de democracia enquanto governo da maioria, o fato de os representantes terem sido escolhidos pelo povo dentro de um processo eleitoral, não quer dizer que restará efetivo o princípio democrático, da mesma forma que as decisões tomadas por esses representantes não serão completamente legítimas apenas pelo fato de terem sido escolhidos pelo povo. O que se pretende é a satisfação dos direitos e garantias individuais de cada um, que será realizada através de maior participação e reivindicação popular no tocante às decisões políticas tomadas.

Uma das formas possibilitadas à população para satisfação de seus interesses, e contraposição ao poder público, se dá no âmbito judicial, em que será levada à decisão do Judiciário a interpretação de determinado grupo em busca de seus direitos. Esta forma está mais bem exposta no controle de constitucionalidade abstrato, especificamente nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, em que o legitimado para ingressar com a ação o fará para contrapor-se à determinada decisão, contrária aos interesses e direitos próprios e de terceiros.

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 Sendo assim, para um melhor dimensionamento dos direitos das minorias, de extrema relevância uma análise do papel do Poder Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal, enquanto competente para julgar ADI’s, na consecução dos direitos e garantias individuais de determinado grupo.

A partir do momento em que algum grupo de interesse leva à decisão do Judiciário determinado tema polêmico e controverso na política nacional, em que não houve uma tomada de decisão pelos poderes representativos, Executivo e Legislativo, pode-se dizer que há, nesse momento, uma ampliação no processo interpretativista. Almeja-se a satisfação dos direitos e garantias individuais de cada um, que será realizada através de maior reivindicação popular no tocante às decisões políticas tomadas.

Insta mencionar que a atuação não suficiente dos atores políticos, ao tratar de determinados temas, em muitas vezes é proposital, em que há a preferência pela transferência da responsabilidade decisória, a reduzir assim os riscos para os políticos e instituições nas quais estão inseridos. Evita-se, dentre outras consequências, colisões com o governo que gerariam custos políticos altos.

Inegável que uma das explicações para o aumento na atividade do Judiciário, é a nítida “incapacidade do Estado ao assegurar a todos os cidadãos os direitos que lhe são genericamente reconhecidos” (O’Donnel, 1993 apud Castro, 1997). O autor aqui se refere à crise de representação existente nas modernas democracias, nas quais os detentores do poder e “violência” estatal não correspondem aos anseios e necessidades da sociedade. Neste momento emerge a premência de uma instituição em que os desejos dos indivíduos possam ser atendidos, em contraposição às lacunas, propositais como acima referido, deixadas pelos poderes representativos.

Neste ponto, a judicialização é justificada não somente pela atuação dos poderes representativos, mas também por sua ineficácia e não efetividade ao assegurar direitos e atender às reivindicações da população.

A mera existência de direitos e garantias fundamentais no ordenamento jurídico, mesmo que na Constituição Federal, não é suficiente, de forma que, se faz necessária a efetivação/implementação destes direitos e garantias, através das políticas públicas, principalmente, políticas sociais, ou seja, cabe ao Judiciário a concretização da expectativa de direitos, a envolver tanto a defesa dos já estabelecidos, quanto eventuais conquistas a serem realizadas.

Em resumo da questão abordada anteriormente, “o dever de ação por parte do Estado associa-se à necessidade de pôr fim à omissão. Controlar as omissões do Poder Público, Legislativo e Executivo, é a maneira pela qual se garante o dever de prestação” (Cittadino, 2002, p. 34). Neste ponto, extrai-se a necessidade de um Judiciário interventor, para que a sociedade não seja prejudicada pelas arbitrariedades e lacunas apresentadas pelos demais poderes.

Parte-se da premissa que a política pública implementada pelo governo será contestada judicialmente por determinados grupos de interesse, que veem o Poder Judiciário como “local institucional mais favorável” para o exercício da oposição (Taylor, 2007, p. 234).

Outro ponto a ser destacado, diz respeito ao que Taylor (2007, p. 232) entendeu como forte controle do presidente sobre a agenda política, bem como o poder do colégio de líderes na Câmara dos Deputados (estende-se aqui a assertiva ao Senado Federal), que permite controle sobre a agenda legislativa. Então, é estreita a proximidade entre o Executivo e o Legislativo.

No que se refere à relação entre os poderes e eventual predominância do Executivo frente aos demais, Boaventura Santos et alii (1996, p. 4-5) entendem que:

(...) a teoria da separação dos poderes colapsa, sobretudo em vista da predominância assumida pelo Poder Executivo (...) o desempenho judicial passou a ter uma relevância social e um impacto mediático que naturalmente o tornou num objeto de controvérsia pública e jurídica.

Diante de efusiva dominação dos debates políticos pelos atores acima expostos, não possuem as minorias qualquer possibilidade de participação quando da formulação de políticas públicas, circunstância esta que acarreta na constante manutenção do poder (de formulação e implementação de políticas públicas) pelos mesmos atores.

Não haverá no presente trabalho uma larga discussão sobre o conceito e outros aspectos de minorias, uma vez que o debate é amplo, de forma que não se pretende uma abordagem rasa e insuficiente do assunto. Sendo assim, considerar-se-á como minorias grupos sociais presentes em determinado Estado, mesmo que maioria em termos numéricos, mas que em razão de suas características, sejam elas étnicas, sexuais, culturais, religiosas etc., sofrem violações e restrições de direitos, diante de uma situação de inexistência de tolerância para com eles em razão de determinadas características pessoais e sinalizadoras das diferenças tão importantes dentro de uma sociedade complexa e multifacetada como a atual. 

Constata-se a subalternidade quanto aos grupos minoritários, em que há de se conviver com uma situação diuturna de violência e opressão às suas pessoas e aos seus direitos, com constantes atentados às identidades étnicas, sexuais, culturais, religiosas etc.

Pelo quadro exposto, a única possibilidade das referidas minorias é acionar o Judiciário, para que este exerça a sua função contramajoritária (neste momento, parte-se do pressuposto de que os membros do Poder Judiciário não são eleitos pelo povo e que agem em contraposição às práticas dos representantes Executivo e Legislativo, estes sim, escolhidos e legitimados pela sociedade) e para que elas tenham, mesmo que minimamente, voz na elaboração das políticas públicas. Satisfazem-se as vontades das minorias, através das decisões judiciais, fato este impactante no cenário político, social e econômico.

Pode-se dizer que o contramajoritarismo está situado no fato de os magistrados, especificamente os ministros do STF, não serem escolhidos de uma forma democrática, em que pese no Brasil serem selecionados pelo Presidente da República, cujo processo de seleção deva ser sancionado pelo Senado Federal, apesar do poder que possuem de invalidação de normas advindas dos poderes representativos.

Ainda, de acordo com Corrêa Pinto (2006), a jurisdição constitucional possui duas vertentes. Na primeira delas, de natureza técnico-jurídica, exerce-se quase uma função de subsunção no tocante ao controle de constitucionalidade, ou seja, aplicação direta da norma ao caso concreto. Aqui não há que se discutir sobre o contramajoritarismo do Judiciário. Sob um segundo ponto de vista, a natureza da norma constitucional não pode ser definida objetivamente, fato que corrobora uma atuação subjetiva pelos juízes. Neste ponto exsurge a dúvida sobre a legitimidade do Judiciário, em razão de sua característica não democrática, explicada acima, uma vez que se estará fazendo uma opção política dentre um rol de possibilidades de interpretação oferecidas pelo texto legal. Daí o autor citar a variação de decisões a depender da composição da Corte.

Passa-se à análise das duas visões completamente antagônicas quanto ao papel do Judiciário na decisão de determinadas questões.

Pode-se enxergar a atuação do Judiciário sob dois vértices. O primeiro a apoiar a ampliação na atuação do Judiciário, pela necessidade para a consecução dos direitos fundamentais no nosso país, bem como para o cumprimento do que disposto na Constituição Federal, justamente por ser o Supremo Tribunal Federal o seu guardião.

Dentro da perspectiva favorável à atuação do Judiciário, Tocqueville desenvolve a sua teoria sobre a participação do Poder Judiciário no Estado e como ele se tornou um grande poder político, ou seja, o autor reconhecia o importante papel desse poder para o desenvolvimento do Estado.

Logo ao início da sua exposição sobre o Judiciário reconhece a importância política e a necessidade de discorrer melhor sobre essa temática, ao julgar relevante o estudo uma vez que, aos olhos dele, não havia nenhuma nação no mundo que tivesse constituído o Judiciário da mesma forma que os americanos.

Assume a dificuldade em se entender a organização judiciária nos Estados Unidos, mas salienta o Judiciário, através de seus representantes, os juízes, como uma das primeiras forças políticas presentes no Estado e menciona não haver algum acontecimento político em que não exista a autoridade do juiz.

Para tanto, invoca algumas características presentes no Poder Judiciário, podendo resumi-las no fato de os juízes servirem de árbitros, ou seja, para que haja decisão, se faz necessário haver processo. Neste sentido, percebe-se a noção de ator passivo incorporada ao Judiciário, uma vez que deve ser acionado para que haja a produção de decisões, e assim, efeito político para a sociedade e Estado. Portanto, só há ação pelo judiciário quando ele é chamado ou provocado.

Inclusive, elenca uma possível “invasão” de competências, a partir do momento em que o Judiciário, ao se pronunciar sobre uma lei, o faz sem partir de um processo, saindo completamente de sua esfera e penetrando, portanto, na do legislativo.

Emerge então a questão do judiciário ser o “guardião da Constituição”, dotado de imenso poder político e que fundamenta suas decisões não nas leis ordinárias, mas sim na Constituição vigente, ou seja, aos juízes é permitido deixar de aplicar determinada lei se lhe julgar inconstitucional.

 Quanto aos efeitos da decisão do juiz de afastar a aplicação de determinada lei, ao decidir por sua inconstitucionalidade, Tocqueville entende que

“a partir do dia em que o juiz se recusar a aplicar uma lei sem um processo, ela perderá instantaneamente parte de sua força moral” (Tocqueville, 2005, p. 115). Tal fato resulta na relevância política do juiz, pelo fato de poder ele alterar o ordenamento jurídico vigente, bem como as relações sociais existentes dentro da sociedade. “Podemos até dizer que suas atribuições são quase inteiramente políticas, muito embora sua constituição seja inteiramente judicial. Sua única finalidade é fazer cumprir as leis da União, e a União regula unicamente as relações do governo com os governados, e da nação com os estrangeiros” (Tocqueville, 2005, p. 169).

Em Tocqueville, a existência de uma Constituição, bem como de leis, colabora para a conciliação entre igualdade e liberdade, pois estabelece uma proteção das liberdades fundamentais. A Constituição há de prever um amplo rol de direitos e garantias fundamentais, dentre diversos outros dispositivos que visam à contenção do poder estatal, em prol dos direitos individuais, bem como estabilização do Estado Democrático e do sistema político nacional. Cabe ao judiciário, portanto, a interpretação e aplicação sobre a Constituição, enquanto norma superior dentro do ordenamento jurídico de determinado Estado.

Tocqueville reconhece à Suprema Corte o seu status de tribunal situado no local mais alto, tanto pela natureza de seus direitos, como pela espécie de seus jurisdicionados, assim como dá ao povo a constituição e atribuições do judiciário. 

Cumpre aos magistrados da suprema corte fazerem valer o que disposto na Constituição, bem como prezarem pelos interesses do povo, respeitados os direitos fundamentais. Objetiva-se, portanto, a realização e satisfação da questão democrática, enquanto possibilidade de os cidadãos terem seus direitos efetivados. 

A relevância da suprema corte reside no fato de as suas decisões versarem sobre questões de extrema importância para o Estado a valerem para todos. Não se trata de decisão proferida apenas para as partes, mas sim para toda a nação diretamente interessada nos assuntos constantes da pauta de julgamento da suprema corte. 

Pode-se dizer que há o reconhecimento em Tocqueville da relevância de existência de um controle entre os poderes, a fim de se efetivar a questão democrática, sendo que expõe sobre a importância de estar o juiz ligado às questões constitucionais e técnicas, e, por outro lado, se ele se desvincula dessas questões, torna-se um perigo à sociedade, uma vez que objetivaria unicamente seus interesses individuais.

Em uma visão diferente da apresentada acima, se pode ter em conta uma possível interferência e invasão nas competências dos poderes representativos, movimento este contrário ao pacto federativo e à relação entre os poderes.

 Mark Tushnet (1999) suscita a possibilidade de a interpretação constitucional dada pela Suprema Corte ser rejeitada por ampla maioria em ambas as casas do Congresso em legislação que expresse uma interpretação razoável do que disposto na Constituição. Continua ao dizer que, para tanto, há de ser mais bem desenvolvida a noção do “prudencialismo”, ao considerar o tomador de decisão consciente, em que se examinaria cuidadosamente toda a situação, localizando todas as considerações relevantes para então decidir pela ação em que melhor se produziria o bem estar da população.

A questão permeia a noção de que tanto os membros do Congresso quanto os do Judiciário são auto interessados, ou seja, prezam por seus interesses particulares e pelas suas esferas de poder e responsabilidade. Do mesmo jeito que há ceticismo pelo Judiciário em relação às decisões do Congresso, a recíproca é verdadeira. Ambos têm incentivo para maximizar sua própria esfera de atuação.

Diante do cenário de esquecimento dos poderes representativos quanto aos direitos e garantias fundamentais, aqueles interessados ingressam com ações no Supremo para suprirem as lacunas deixadas, de forma que restaria realizado o papel contramajoritário do Judiciário, ou seja, a contradizer as decisões políticas dos outros poderes, em que seus representantes foram escolhidos pelo povo.


Conclusões

Não há dúvida quanto ao relevante papel que o Judiciário, principalmente através do Supremo Tribunal Federal, tem no sistema político brasileiro, tendência essa que está em constante aumento. Diante desse cenário, necessários se fazem estudos pormenorizados sobre essa temática, de expansão da atuação do Poder Judiciário em detrimento dos demais poderes.

Pode-se dizer que não há um único posicionamento quanto ao tema proposto por ser ele extremamente controverso e que causa divergência a depender do sentido em que se empreende a análise.

No caso da união estável homoafetiva, como em diversas outras situações, o Supremo foi chamado a decidir, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, a respeito da não decisão legislativa que deixa de observar um fato social ao não contemplá-lo na previsão legal que cuida do reconhecimento das uniões estáveis. O texto legal, ao prever o reconhecimento como entidade familiar, a união contínua, pública e duradoura entre o homem e a mulher, não se manifesta quanto ao reconhecimento das uniões estáveis formadas por casais de gênero igual.

A (não) decisão do legislativo coloca à margem do amparo estatal um grupo de pessoas, negando-lhes direitos constitucionalmente consagrados, em razão da sua orientação sexual. A ausência de lei que preveja o reconhecimento das uniões entre casais de igual gênero, bem como em outros casos, acaba por lhes retirar outros direitos que são assegurados aos casais heterossexuais, como os de cunho previdenciário, de família, contratuais, dentre outros.

Sendo assim, cabe ao Supremo Tribunal Federal incorporar o seu papel contramajoritário, ou seja, tomando decisões contrárias àquelas decididas pelos poderes representativos, ou mesmo suprindo lacunas deixadas por eles, para que determinadas lutas identitárias possam ter os seus direitos fundamentais respeitados e realizados, para que, desta forma, se consiga uma proximidade não com a vontade da maioria, mas sim com a possibilidade de um maior número de cidadãos terem seus direitos e garantias efetivados.


Referências bibliográficas

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CITTADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de poderes. In: WERNECK VIANNA, Luiz (org.), A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

PINTO, José Guilherme Berman Corrêa. Repercussão geral e writ of certiorari. 2006. 161 f. Dissertação (Mestrado em Direito)-Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2006.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997.

MONTESQUIEU, Barão de. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Os tribunais nas sociedades contemporâneas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 30, ano 11, 1996.

TAYLOR, Matthew M. O judiciário e as políticas públicas no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 50, n. 2, 2007, p. 229-257.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Livro 1. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

TUSHNET, Mark. Taking the constitution away from the courts. Princeton: Princeton University Press, 1999.

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Sobre o autor
Hugo Henry Martins de Assis Soares

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Goiás. Especializado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Goiás. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Hugo Henry Martins Assis. As minorias sociais e o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4277, 18 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32053. Acesso em: 25 nov. 2024.

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