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O novo entendimento do STJ sobre a renovação de registro de arma de fogo

18/09/2014 às 10:05

Resumo:


  • O STJ decidiu que a falta de renovação do registro de uma arma de fogo originalmente registrada não deve ser tratada como crime, mas sim como uma questão administrativa, distinguindo posse irregular intencional de mera inobservância burocrática.

  • A decisão destaca a aplicação do princípio da fragmentariedade do Direito Penal, que busca limitar a intervenção penal às condutas que atingem de forma relevante o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.

  • A mudança de entendimento abre caminho para alterações legislativas, como as propostas no Projeto de Lei nº 3722/12, que poderiam tornar a anistia para regularização de armas de fogo uma medida permanente.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça afastou a configuração do crime de posse irregular de arma de fogo nas hipóteses de registro com validade expirada.

O Superior Tribunal de Justiça lançou nova luz sobre o tratamento penal da posse irregular de arma de fogo. No julgamento do habeas corpus nº 294.078, originário de São Paulo, a corte, por sua Quinta Turma, pela primeira vez afastou a configuração de crime por alguém manter em seu poder uma arma de fogo com registro vencido. Um importantíssimo precedente que, embora ainda não refletindo a maioria do entendimento sobre o tema - inclusive naquele próprio tribunal -, pode indicar uma significativa evolução, não só na aplicação do vigente estatuto do desarmamento, mas na própria alteração das leis que regulamentam o acesso a armas.

Previsto no artigo 12 do atual estatuto, o crime de posse irregular de arma de fogo de uso permitido permaneceu sem aplicação prática até 31 de dezembro de 2009, época até a qual foi possibilitado aos possuidores de tais artefatos promover seu recadastramento ou registro inicial junto à Polícia Federal, num procedimento popularmente conhecido como “anistia”.

A matéria foi regulamentada nos artigos 5º, § 3º, e 30 da Lei 10.826/03, com a prorrogação estabelecida no artigo 20 da Lei nº 11.922/09:

Lei 10.826/03 |  Art. 5º (...)

§ 3º  O proprietário de arma de fogo com certificados de registro de propriedade expedido por órgão estadual ou do Distrito Federal até a data da publicação desta Lei que não optar pela entrega espontânea prevista no art. 32 desta Lei deverá renová-lo mediante o pertinente registro federal, até o dia 31 de dezembro de 2008, ante a apresentação de documento de identificação pessoal e comprovante de residência fixa, ficando dispensado do pagamento de taxas e do cumprimento das demais exigências constantes dos incisos I a III do caput do art. 4º desta Lei.

[...]

Art. 30.  Os possuidores e proprietários de arma de fogo de uso permitido ainda não registrada deverão solicitar seu registro até o dia 31 de dezembro de 2008, mediante apresentação de documento de identificação pessoal e comprovante de residência fixa, acompanhados de nota fiscal de compra ou comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova admitidos em direito, ou declaração firmada na qual constem as características da arma e a sua condição de proprietário, ficando este dispensado do pagamento de taxas e do cumprimento das demais exigências constantes dos incisos I a III do caput do art. 4º desta Lei.”

Lei 11922/09 | “Art. 20.  Ficam prorrogados para 31 de dezembro de 2009 os prazos de que tratam o § 3º do art. 5º e o art. 30, ambos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003”.

Encerrado o prazo, todas as armas passaram a exigir a renovação de seus registros a cada três anos (Lei 10.826/03, art. 5º, §2º) e o tipo penal adquiriu sua plena eficácia. Desde então, vem sendo responsável por boa parte das condenações derivadas do próprio estatuto do desarmamento e é graças a ele, inclusive, que os ideólogos antiarmas conseguem, capciosamente, sustentar até hoje a alegação de que boa parte das armas envolvidas em crimes um dia tiveram origem lícita.

Isso porque, até a recente decisão do STJ, a irregularidade na posse da arma para a configuração do delito era tomada em sentido amplo, sendo equiparadas as armas jamais registradas e aquelas cujo registro teve sua validade expirada. Assim, se alguém que um dia comprou legalmente uma arma simplesmente deixou de renovar seu registro, já estava praticando um crime, ainda que exclusivamente restrito à própria posse daquela, ou seja, bastava que uma arma de origem lícita tivesse seu registro vencido para já ser considerada uma “arma do crime”.

O entendimento agora alcançado, contudo, estabeleceu nítida distinção entre a posse intencionalmente irregular e aquela decorrente da mera inobservância de um procedimento burocrático. Conforme entenderam os ministros do STJ, acompanhando o voto do relator Marco Aurélio Bellizze, se uma arma foi originalmente registrada, a ausência de renovação do respectivo registro “não pode extrapolar a esfera administrativa”, não se prestando, portanto, à configuração de crime, uma vez que, para o Direito Penal, a mera falta daquela renovação não apresenta relevância capaz de automaticamente transformar o proprietário da arma em criminoso. Com isso, a ele podem ser aplicadas, tão somente, sanções de âmbito administrativo, mas não penais.

O voto condutor segue a linha intelectiva que reconhece a necessidade de observância, na aplicação das leis penais, do princípio da fragmentariedade, sedimentando, num desdobramento do próprio princípio da insignificância, a tendência da intervenção penal mínima. O entendimento é assim elucidativamente delineado pelo Relator:

"Todavia, no meu entender, estando registro vencido, a questão não pode extrapolar a esfera administrativa, uma vez que ausente a tipicidade imprescindível para a caracterização de ilícito penal, e aqui me refiro à tipicidade material, a qual surgiu de construção doutrinária na busca pela observância da natureza fragmentária e subsidiária do Direto Penal, aplicável àquelas condutas que não atingem de forma socialmente relevante o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora."

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Além da inédita análise técnica sob o prisma penal, a decisão também pode ser considerada um marco crítico à já desgastada legislação vigente. Ao proferir o voto, acompanhado à unanimidade pela turma julgadora, o relator rotulou de “absurda e desnecessária” a exigência de renovação de registros de arma de fogo a cada três anos, ao tempo em que ilustrou a possibilidade de adequada evolução legislativa com o Projeto de Lei nº 3722/12, que, revogando o estatuto do desarmamento e estabelecendo novo conjunto de regras sobre a circulação de armas no país, “somente prevê como típica a conduta de possuir arma de fogo sem registro”.

Definitivamente, é uma decisão de extrema relevância e digna de ser comemorada, não só no meio jurídico, mas em toda a sociedade. Não se desconhece o fato de, conforme registrado nela própria, subsistir entendimento diverso sobre o assunto; porém, a hegemonia deste foi quebrada e, com isso, abrem-se as portas para mudanças ainda mais profundas.

Afinal, ao se reconhecer que um mero registro de arma vencido não autoriza a caracterização de um crime, não mais se justifica impedir que a exigência burocrática para a sua posse seja regularizada a qualquer tempo, tornando permanente aquela anistia vigente até 2009. Esta, aliás, é outra evolução contida no mesmo PL 3722 citado no voto, cuja análise, como se vê, já extrapolou o Poder Legislativo e alcançou o Judiciário, só restando esperar que, concretizando o avanço ali sinalizado, tenha seu ato final no Executivo, com a sanção necessária a que entre em vigor.

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Sobre o autor
Fabricio Rebelo

Pesquisador nas áreas Jurídica e de Segurança Pública, Coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (CEPEDES), Professor (cursos livres), Autor de "Articulando em Segurança: contrapontos ao desarmamento civil", Assessor Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBELO, Fabricio. O novo entendimento do STJ sobre a renovação de registro de arma de fogo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4096, 18 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32068. Acesso em: 22 dez. 2024.

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