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Participação das ME e EPP em licitações.

Princípios antagônicos envolvidos e as implicações práticas do tratamento diferenciado

20/03/2015 às 13:38
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Este texto analisa o choque de princípios que existe quando se fala da participação de microempresas e empresas de pequeno porte em licitações, uma vez que de um lado a Constituição prevê a igualdade de condições entre os licitantes, por outro faz o tratamento diferenciado.

Sumário: 1. Noções Introdutórias sobre Licitação 2. Choque de princípios na participação das MPEs em Licitações. 3. Instrumentos concretos do tratamento diferenciado na LC 123/06. 4. Implicações práticas dos benefícios da LC 123/06. 5. Da facilidade para o enquadramento.


NOÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE LICITAÇÃO

A licitação é procedimento administrativo regra na Administração Pública. A contratação de obras, serviços, compras e alienações, portanto, deverá, a priori, obedecer ao disposto no inciso XXI, do art. 37 da CF/88. Esse mesmo artigo constitucional que obriga a licitar traz em seu dispositivo um princípio basilar do tema, que o procedimento licitatório deve obedecer ao princípio da igualdade de condições a todos os concorrentes:

Art. 37. XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômicas indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.  

A norma constitucional apenas ratifica o conceito que já era defendido na doutrina, o qual sempre traz a ideia de procedimento administrativo para regular uma competição isonômica, meio de a Administração Pública adquirir bens e serviços que respeite a igualdade de condições para se chegar ao menor e melhor preço (e porque não “justo” também). A seguir algumas conceituações sobre o tema que corroboram com o texto constitucional e com a posterior Lei 8.666/93:   

“Licitação é o procedimento administrativo mediante o qual a Administração Publica seleciona a proposta, mais vantajosa para o contrato de seu interesse. Como procedimento, desenvolve-se através de uma sucessão ordenada de atos vinculantes para a Administração e para os licitantes, o que propicia igual oportunidade a todos os interessados e atua como fator de eficiência e moralidade nos negócios administrativos” [1] 

“Licitação consiste num conjunto de atos administrativos, isto é, um processo (ou procedimento) administrativo orientado à obtenção de propostas mais vantajosas, dentre aquelas ofertadas à Administração Pública, com vistas à celebração de vínculos jurídicos contratuais junto a terceiros, particulares ou não” [2] 


CHOQUE DE PRINCÍPIOS NA PARTICIPAÇÃO DAS MPE's EM LICITAÇÕES  

Essa ideia de que o menor preço ganha é fruto dos princípios acima mencionados. Mas ao contrário das leis, o que acontece na aplicação de princípios é a ponderação, ou seja, princípios antagônicos conseguem coabitar tranquilamente no Ordenamento brasileiro, cabendo a quem os aplica ponderar sua aplicação. E é por isso que por mais que exista o princípio da igualdade de condições entre os licitantes, há outro princípio constitucional que prevê tratamento diferenciado para micro e pequenas empresas

Quando se trata de leis antagônicas, fenômeno chamado de antinomia, o método aplicável é o de BOBBIO que se baseia em três critérios clássicos para resolver a tal antinomia: o cronológico (Lex posterior derogat priori), o hierárquico (lex superior derogat inferiori) ou o critério da especialidade (Lex specialis derogat generali). A solução da antinomia é obrigatória uma vez que duas regras em conflitos devem funcionar ao critério do tudo ou nada (no all or nothing, termo de DWORKIN)[3], em outras palavras, a antinomia entre duas leis gera uma ausência de coerência, e até de unidade do ordenamento jurídico. O próprio BOBBIO  (1995. pág 113) salienta em sua obra que a ausência de coerência não é condição de validade do ordenamento, mas sim de justiça: 

“(...)onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e portanto ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as consequências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria” [4]

Todavia, a colisão de princípios constitucionais objeto desse estudo não  obedece  a essa regra, até porque o princípio da igualdade de condições entre os licitantes existe concomitantemente ao do tratamento diferenciado das MPE, que abrange as licitações. E proceder diante de dicotomias como essas é desafio diário dos aplicadores do direito, principalmente, aqueles que compõem os Tribunais Superiores.

Tal problemática se deve muito ao fato de que não seria coerente afastar o princípio “axiologicamente menos importante” (haja vista ambos estarem no mesmo patamar hierárquico – o constitucional) até porque não existe mais ou menos importante, tudo depende do interesse jurídico de cada um. Para citar como exemplo, o sem terra acredita que o princípio constitucional da função social da propriedade é o mais importante, por sua vez o latifundiário terá como o mais precípuo o princípio da propriedade. 

Diante da controvérsia, o aplicador geralmente aplica duas técnicas desenvolvidas pela doutrina estrangeira e comumente utilizada pelos Tribunais. Primeiramente, a da concordância prática de HESSE[5], bastante importante por ter como axioma o princípio da proporcionalidade que diante da hipótese fática ponderará a aplicação mais justa dos princípios controversos. Corroborando com a técnica exposta da “praktische Konkordanz” de HESSE, a doutrina pátria majoritária não foge dessa linha de pensamento ao defender a aplicação ponderada, a saber trecho da obra de SARLET (1996. pág 191) [6]

“Em rigor, cuida-se de processo de ponderação no qual não se trata da atribuição de uma prevalência absoluta de um valor sobre outro, mas, sim, na tentativa de aplicação simultânea e compatibilizada de normas, ainda que no caso concreto se torne necessária a atenuação de uma delas”

A outra técnica estrangeira, geralmente aplicada quando a da concordância prática não cabe, é o critério da dimensão de peso e importância (dimensios of weights) desenvolvida por Ronald DWORKING que também defende que os princípios não possuem a mesma dimensão das regras, mas por sua vez afirma que quem os soluciona quando em conflito deve levar em conta o peso relativo de cada princípio em contraste. Em outras palavras, em uma espécie de balança, prevalecerá aquele em virtude de seu peso maior. 

Por hora, pode-se concluir que é plenamente possível princípios antagônicos simultaneamente existirem em um Ordenamento sem retirar-lhe a coerência, além do mais que os aplicadores do direito devem buscar nos casos de conflito acima de tudo a proporcionalidade, premissa a partir da qual deve se pautar toda análise do lastro fático de qualquer que seja a hipótese, no nosso caso, da participação de micro e pequenas empresas em licitações.  

À luz da técnica supramencionada da ponderação, tratar uma MPE distintamente de uma empresa de grande porte é justo, pois estimula a livre concorrência e o desenvolvimento da economia nacional, porém esse tratamento diferenciado apenas será equânime caso seja na medida que os desiguais se desigualam – face de outro conceito fundamental nesse caso: o princípio da Isonomia, ou da Igualdade Material. A proporcionalidade depende, então, da correta aplicação da isonomia: que a diferença dos pólos da relação jurídica seja na mesma medida do tratamento diferenciado. 

O princípio da isonomia é sem dúvida basilar de diversas normas constitucionais, e logicamente, justifica o tratamento diferenciado das Micro e Pequenas Empresas, por mais que obter a proposta mais vantajosa dada em igualdade de condições seja o âmago do procedimento licitatório. Existe a previsão de tratamento diferenciado às propostas de MPE, haja vista elas serem juridicamente hipossuficientes e por serem desiguais, devem ser tratadas desigualmente na medida em que se desigualam. Isto é fruto de um dos principais princípios do Ordenamento Brasileiro, o Princípio da Isonomia. Este princípio que predomina na doutrina nacional desde os escritos de RUI BARBOSA [7]:  

  "A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real"


INSTRUMENTOS CONCRETOS DO TRATAMENTO DIFERENCIADO NA LC 123/06

Racionalizando o que já foi visto de forma objetiva, o tratamento diferenciado das Micro e Pequenas Empresas previsto na Constituição, apesar de ser contrário ao princípio da igualdade entre os licitantes, é fruto do instituto da proporcionalidade que aliado à isonomia fundamentou o 170 inciso IX e o art. 179 da CF/88. Estes artigos constitucionais preveem a hipótese de que as MPE’s gozarão de prerrogativas nas licitações, com fito de incentivá-las economicamente, que será detalhado em lei. Essa norma complementar já foi editada em 2006, a saber a LC 123/06, a qual inovou o Ordenamento jurídico pátrio com diversas prerrogativas para micro e pequeno empreendedores, detalhando em procedimentos concretos a hipótese que fora prevista na Constituição de 1988. 

Um exemplo de instrumento concreto trazido pela LC 123/06 é sem dúvida o instituto do empate ficto. Este que consiste em considerar empatada proposta mesmo que menos vantajosa de micro ou pequena empresa, desde que dentro da margem de 10% ou 5% a maior (a depender da modalidade licitatória) em relação a menor proposta de empresa de grande porte. Ante o exposto, explana com propriedade MAZZA, indo além de comentar o estatuto da micro e pequena empresa, salientando que tal prerrogativa não precisa ser prevista no edital, invocando norma infralegal a saber:                                                                                                    

"entendem-se por empate aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% superiores à proposta mais bem classificada. Já no caso da modalidade pregão, o intervalo percentual é de até 5%. Ocorrendo o empate, a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado (art. 44, I). Importante salientar que, nos termos da Orientação Normativa n. 7 da AGU: 'O tratamento favorecido de que tratam os arts. 43 a 45 da Lei Complementar n. 123, de 2006, deverá ser concedido às microempresas e empresas de pequeno porte independentemente de previsão editalícia'” [8] 

Uma inovação como o instituto do empate ficto só corrobora com os princípios constitucionais explanados nesse estudo. Porém a LC 123/06 não se limita a esse instrumento como prerrogativa das microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações, trazendo como novidade também a possibilidade de habilitação diferida das empresas enquadradas nesse regime diferenciado. Logo, a comprovação da regularidade fiscal das Micro e Pequenas Empresas terá mais flexibilidade, uma vez que a MPE declarada vencedora tem 2 dias úteis para pagar ou parcelar o débito fiscal e emitir a respectiva CND ou CPD-EN (Certidão negativa de débito e Certidão positiva de débito, com efeitos de negativa). A saber os dois artigos da Lei 123/06: 

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Art. 42.  Nas licitações públicas, a comprovação de regularidade fiscal das microempresas e empresas de pequeno porte somente será exigida para efeito de assinatura do contrato. 

Art. 43.  As microempresas e empresas de pequeno porte, por ocasião da participação em certames licitatórios, deverão apresentar toda a documentação exigida para efeito de comprovação de regularidade fiscal, mesmo que esta apresente alguma restrição. § 1º  Havendo alguma restrição na comprovação da regularidade fiscal, será assegurado o prazo de 2 (dois) dias úteis, cujo termo inicial corresponderá ao momento em que o proponente for declarado o vencedor do certame, prorrogáveis por igual período, a critério da Administração Pública, para a regularização da documentação, pagamento ou parcelamento do débito, e emissão de eventuais certidões negativas ou positivas com efeito de certidão negativa. 

O art. 47 da LC 123/06 ainda utiliza da discricionariedade do órgão ao determinar que "poderá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte", trazendo o artigo subsequente outras hipóteses práticas para esse regime singularizado das MPE, a saber:  

a) licitação exclusiva para ME ou EPP para contratações até R$ 80.000,00 

b) subcontratação de ME ou EPP desde que o percentual máximo do objeto licitado não exceda 30% do total licitado 

c) cota de 25% do objeto para contratação de ME ou EPP em certames para aquisição de bens e serviços de natureza divisível 

Portanto, os aparatos criados pela LC 123/06 descritos acima, como o empate ficto, a habilitação diferida e a licitação de pequeno valor exclusiva para ME e EPP, sem sombra de dúvida, são formas que o Legislador encontrou para tratar de pôr em prática de maneira concreta o princípio do tratamento diferenciado. 

Resta saber, entretanto, se tal tratamento diferenciado foi aplicado de forma isonômica e proporcional, ou seja, se foi proporcional à medida em que as ME e EPP são desiguais juridicamente, além disso, é de se averiguar caso - a partir da vigência daquela Lei Complementar supramencionada - o escopo da promoção do desenvolvimento econômico e social foi alcançado. Em outras palavras, se os instrumentos legais após pouco menos de 10 anos da vigência da LC 123/06 vem sendo efetivos e equânimes na prática. 


IMPLICAÇÕES PRÁTICAS DOS BENEFÍCIOS DA LC 123/06

Durante esses 8 anos de vigência da Lei das ME e EPP, pode ser constatado que o microempreendedor ou o empreendedor de pequeno porte são quase que unanimidade no Brasil. E não se trata de especulação, próprios órgãos de pesquisa já apontam para a atual conjuntura de expansão das ME e EPP: 

As microempresas representam 99% das empresas do país e são responsáveis por 51% de todos empregos existentes. Os dados são do Ranking Municipal do Empreendedorismo no Brasil, elaborado com base no Censo pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e divulgado nesta terça-feira (7), juntamente com o Boletim Radar nº 25. [9] 

O crescimento a cada ano é justificado em muito nos benefícios que surgiram em 2006 com a LC 123 em comento, principalmente o regime simplificado de tributação (o SIMPLES nacional), bem como com as prerrogativas em licitação explanadas, uma vez que celebrar contrato com órgão da administração pública funciona como fonte secundária - porém segura - de capital para a empresa. A prova é tanta que basta analisar a quantidade de Microempresas antes e depois da edição da retro mencionada lei complementar, que em 2006 era de 1.873.241 e, em 2007, 5.313.753 [10].

Resta evidente então que a grande consequência da LC 123/06 foi o imediato aumento de mais de 150% do número de Micro e Pequenas Empresas que existiam em território nacional, restando saber se as prerrogativas surgidas em 2006 estimularam indivíduos que não participavam do mercado a empreender, ou se os próprios sócios de grandes e médias empresas resolveram criar pessoas jurídicas enquadráveis em micro e pequenas apenas para gozarem dos benefícios trazidos pela lei.  

Todavia, limitemo-nos às implicações práticas naquele procedimento que é objeto do presente estudo, a licitação. É evidente que se o número total de ME e EPP mais que duplicou após a LC 123/06, a participação dessas aumentou bastante nas compras governamentais. E a questão mais importante a ser suscitada neste momento é o que justifica uma ME - que no art. 3º da LC 123/06 tem como condição de sua existência auferir "em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais)" - celebrar contratos com a Administração Pública cujo valor por si só já ultrapassa a teto da receita anual da empresa?

Deparamo-nos com um grande problema, pois é evidente que um cidadão que nem empreendedor era antes da edição da LC 123/06, não teria condições de honrar de imediato vários contratos com a Administração, logo não faria sentido o mesmo o fazê-lo em tal valor. Não teria condições pelo simples fato que o comércio se desenvolve no "fiado", ou seja, a empresa que precisa fornecer 180.000 barrinhas de cereal para algum órgão do exército (e.g.), adquire o produto de um fornecedor para pagar à prazo e com o dinheiro que recebe do órgão, pagará esse tal fornecedor. Trocando em miúdos, um recente empreendedor não consegue crédito na praça com facilidade, muito menos acima do teto de renda bruta que sua empresa poderá atingir. 

O que leva a conclusão que os contratos que passaram a ser celebrados após a vigência da Lei Complementar da Micro e Pequena Empresa, acima do valor de R$ 360.000,00 para ME e R$ 3.600.000,00 para EPP são predominantemente realizados por Pessoas Jurídicas criadas pelos sócios de Empresas de Grande e Médio porte, que possuem todo um aparato e infraestrutura financeiros para honrar esses contratos celebrados. Os exemplos estão espalhados diariamente pelos Diários Oficiais, a saber: Termo aditivo nº 31/2010, decorrente do Pregão Eletrônico nº 27/2010, Processo 00190.022045/2010-25 que já renova pela quarta vez com uma Microempresa um contrato que o montante anual é de R$ 1.737.047,90. E o órgão Contratante, por incrível que possa parecer, é a Controladoria-geral da União. 

Não faz sentido crer que a partir da LC 123/06, por mais benefícios que a norma complementar trouxe, que em apenas 1 anos depois tais benefícios tenham atraído mais de 3 milhões de indivíduos, que antes não possuíam qualquer empreendimento, para desenvolver de forma inédita atividade empresarial. É evidente que esse crescimento mais do que em dobro da quantidade de micro e pequenas empresas deveu-se ao seguinte fato: muitos médios e grandes empreendedores terem criado pequenas e médias empresas a toque de caixa para utilizar dos benefícios da Lei e quando desse algum problema, não afetar o verdadeiro patrimônio que é o da empresa principal. E para o grande empresário tudo isso é muito célere e facilitado, uma vez que ele consegue crédito fácil para financiar operações mercantis e possui de todo um aparato de despachantes e contadores para promover a abertura de uma ME ou EPP sem qualquer empecilho. 

E quando o assunto é Licitação, torna-se muito mais coerente a tese aqui levantada de que nem todas as ME ou EPP que fornecem bens e serviços à Administração Pública são na sua essência hipossuficientes e que respeitam o teto de receita bruta anual, condição sine qua non para a natureza de micro e pequena empresa. Na verdade, resta evidente, que na sua maioria - até pelo fato de um contrato por si só já ultrapassar o teto da renda permitido - são grandes e médios empresários que criam as MPEs a fim de poder gozar das prerrogativas no procedimento licitatório, como o empate ficto ou a da habilitação diferida, entre outros. 

Para combater esse problema, o Legislativo ainda não encontrou a solução, porém diante de tanta evolução nos sistemas de fornecimento não é utopia imaginar em instrumentos que coíbam ou até acabem com as "pseudo ME e EPP", que na essência é artifício de uma grande ou média empresa não detentora de benefícios da LC 123/06. Isso porque, o verdadeiro micro ou pequeno empreendedor desenvolve sua atividade e expande seu empreendimento aos poucos, até porque empresa nova no mercado enfrenta grandes dificuldades creditícias, que vai sumindo paulatinamente com o tempo de exercício, diferente dessas mencionadas "pseudo ME ou EPP" que já ingressam no mercado com toda a infraestrutura de uma grande ou média empresa que a controla, apesar de teoricamente ser uma personalidade jurídica recém-nascida.  

Esses problemas não são exclusivos do Brasil e acontecem também inclusive nos países que foram pioneiros no tratamento diferenciado das ME e EPP nas licitações, como o exemplo dos Estados Unidos. Nos EUA, esse beneficiamento se deu graças às implicações econômicas da II Guerra Mundial que prejudicou bastante as pequenas empresas, sendo criadas diversas corporações com o fim de estimular contratos governamentais com tais pequenas empresas. Passando pela SWPC, OSB, SDPA até que em 1953 foi criada a Lei de Apoio à Pequena Empresa (Small business act - Public Law 83-163, 67 Stat. 232) que é responsável pela agência independente SBA (Small business administration). O Japão foi o outro que no contexto pós-guerra fez-se pioneiro no assunto ao estabelecer política específica através da Agência da Média e Pequena Empresa (SPE). [11]

E no Ordenamento paradigma, o americano, ocorrem os mesmos problemas: por exemplo, de 2000 a 2005, mais de 100 bilhões de dólares foram desviados das cotas reservadas às pequenas empresas por grandes companhias, que de forma oculta criaram pequenas empresas de fechada apenas para gozar dos benefícios. E o rigor foi critério para penalizar as grandes companhias que incorreram nessa fraude, sendo excluídos mais de 600 cadastros irregulares, peticionamento pela The american small business league - (ASBL) para multa de U$ 500.000,00 e prisão de até 10 anos aos envolvidos, sem prejuízo de impedir a contratação com o governo em até 3 anos. Além de que, a atenção e cuidado dos órgãos fazendários ao certificar e re-certificar as empresas acerca dos critérios de enquadramento. 


DA FACILIDADE PARA O ENQUADRAMENTO

Dessas soluções apontadas, a que se refere ao alerta do Estado quanto ao enquadramento parece ser a mais imediata e emergencial para o Brasil, uma vez que os sistemas são de fato bastante evoluídos, a exemplo do SICAF, mas não conseguem inibir a prática das fraudes contra a economia nacional questionadas acima. Não se questiona o avanço do Brasil nesse sentido de sistema de fornecedores, que gera segurança e um ambiente propício a cada vez mais cotações e pregões eletrônicos que acabam sendo mais céleres e probos. Para se ter como exemplo, uma empresa que queira contratar perante  a Administração em Recife, poderá fazê-lo nos 3 âmbitos através de portais de compras específicos: o SICAF em relação à União, o CADFOR perante o Governo do Estado de Pernambuco e o SICREF na Prefeitura Municipal do Recife. 

Apesar de bastante avançados e seguros, os sistemas de cadastro no Brasil apenas exigem da ME ou EPP a apresentação da declaração de enquadramento feita e arquivada na Junta Comercial do respectivo estado. A regulação legal para tanto advém da própria LC123/06, destrinchada pela Instrução normativa nº 103 de 2007, a qual exige do empresário para o enquadramento, nos termos do art. 1º § único, II, alínea a da referida IN 103/07;  alguns documentos e uma declaração do próprio sócio que a sociedade se enquadra na qualidade de ME ou EPP, sob as penas da lei. 

Esta questão de o próprio sócio se declarar ME ou EPP e arquivar na Junta Comercial com facilidade, adquirindo neste ato certidão de enquadramento a qual utilizará no cadastro de fornecedores e gozará de todas as prerrogativas desse tipo empresarial em licitações é onde reside a brecha para a fraude. Como já foi visto as prerrogativas são muitas e visam estimular as pessoas jurídicas hipossuficientes, por isso que a Lei brasileira deveria ser mais rigorosa nesse aspecto, com escopo de impedir que as grandes e médias empresas gozem desses benefícios.  

Perde o sentido uma norma tão inovadora como a LC 123/06, diante dessa tamanha facilidade para se obter uma certidão de enquadramento, pois já foi demonstrado que as tantas benesses da lei não estão sendo utilizadas apenas por ME e EPP. A simples falta de rigidez no que tange ao enquadramento tem significado ao longo dos anos que o objetivo da Lei 123/06, que é atingir a igualdade material através do tratamento isonômico das ME e EPP, tem sido em vão, pois todos os dias e em todas as esferas da Administração Pública são celebrados contratos que no seu objeto já ultrapassam os limites legais para uma ME e EPP e demonstram que na sua maioria na verdade são grandes empresários que fundam pessoas jurídicas de fachada para gozar das prerrogativas legais.


REFERÊNCIAS

[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 272 

[2] MAFFINI, Rafael. Direito Administrativo. 2º ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008 

[3] DWORKING, Ronald. apud SANTOS, Fernando Ferreira dos Santos. Princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Celso Bastos Editor, São Paulo, 1999, p. 44 

[4] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6. ed. Brasília: Editora UNB, 1995. p. 113  [5] HESSE, Konrad. Princípios do direito constitucional da República Federal da Alemanha. Reimpressão da 20 ª edição. Müller, Heidelberg. 1999 

[6] SARLET, Ingo Wolfgang. Valor de Alçada e Limitação do Acesso ao Duplo Grau de Jurisdição. Revista da Ajuris 66, 1996, p. 121. 

[7] BARBOSA, Ruy. Oração aos moços. Marcelo Módolo (Org.). São Paulo: Hedra, 2009 [8] MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo / Alexandre Mazza. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 

[9] Disponível em <http://www2.planalto.gov.br/excluir-historico-nao-sera-migrado/microempresas-representam-99-das-empresas-do-pais-e-sao-responsaveis-por-51-de-todos-empregos-existentes-diz-ipea>. Portal Planalto publicado: 07/05/2013 19:40 última modificação: 07/05/2013 19:45. Acesso 10 de setembro de 2014. 

[10] A evolução das micro e pequenas empresas do estado de Rondônia a partir de investimentos advindos do PAC. Disponível em <http://www.excelenciaemgestao.org> Acesso em 15 de setembro de 2014.

[11] Licitações para pequenas empresas: novidade da década de 40 por Jonas Lima. Disponível em:< http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/24044>

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORTIZO, Lucas. Participação das ME e EPP em licitações.: Princípios antagônicos envolvidos e as implicações práticas do tratamento diferenciado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4279, 20 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32138. Acesso em: 24 dez. 2024.

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