Concretização do direito fundamental ao descanso semanal

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Análise do direto fundamental ao descanso semanal, com destaque à proteção aos judeus, adventistas do sétimo dia e outros guardadores do sábado, que têm sua consciência violada ao serem obrigados a trabalhar, estudar ou realizar provas aos sábados.

INTRODUÇÃO

Na análise da problemática proposta, evidencia-se, de plano, uma colisão de direitos fundamentais. De um lado a dignidade da pessoa humana, a liberdade de religião, consubstanciada no livre exercício do direito de descansar no dia de guarda religioso, e de outro lado, a igualdade (isonomia) e a legalidade.

Existem aqueles que, por motivo de convicção íntima, conforme os ditames de sua fé (como judeus, adventistas do sétimo dia e outros guardadores do sábado) têm sua consciência violada ao serem obrigados a trabalhar, estudar ou realizar provas de concurso público ou vestibulares nos dias destinados à guarda religiosa – dias destinados às atividades sacras e não seculares. Estariam, pois, privados do acesso e exercício laboral e educacional pelo fato do dia de guarda, determinado por suas doutrinas religiosas, coincidir com dia de trabalho e ensino ou data designada para a realização de provas de concursos públicos e exames vestibulares?

Tendo em vista a problemática apresentada, será de suma importância a abordagem dos princípios constitucionais em colisão, as principais premissas que pairam sobre a liberdade religiosa e o princípio da separação entre Estado e Igreja, mais especificamente sobre a fundamentalidade atribuída ao descanso semanal, segundo o legítimo direito de descansar conforme a tradição desta ou aquela religião.

No âmago da problemática proposta destaca-se a máxima da proporcionalidade preconizada pelo jurista Robert Alexy. Tecer-se-ão considerações acerca da dogmática apresentada pelo alemão, seguindo-se de uma aplicação ao caso concreto, a qual terá como objetivo precípuo uma justificativa metódica, no âmbito da hermenêutica constitucional, objetivando demonstrar a sua eficiência no sopesamento de princípios.

A pesquisa jurídica se valerá da metodologia de pesquisa analítico-dogmática[1], perquirindo, na definição e estrutura normativa dos direitos fundamentais, uma investigação acerca do sistema jurídico-constitucional e sua relação com o direito fundamental ao descanso semanal, sob a óptica da liberdade religiosa, destacando, para tanto, a necessidade de elucidar parâmetros jurídico-conceituais no âmbito da efetividade do princípio da proteção ao núcleo essencial, mais especificamente no método de interpretação de sopesamento de princípios, porquanto será apresentada a definição conceitual e incidência prática da já mencionada máxima da proporcionalidade de Alexy. Para tanto, valer-se-á da técnica de levantamento documental e bibliográfica, a qual inclui pesquisa na jurisprudência, legislação, doutrina e dados históricos.

Nesse sentido, portanto, convidam-se todos aqueles que intentam compreender o significado de descanso semanal, relativamente à sua proteção conferida como norma de direito fundamental, sobretudo quanto à concretude que deverá ser conferida nas decisões e atos da Administração Pública, com grande destaque, nesse sentido, ao descanso semanal sabático.

1. DIREITOS FUNDAMENTAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS EM COLISÃO

  1. Teoria dos Direitos Fundamentais

Em apertada síntese, os direitos fundamentais assumem hoje, na Constituição Federal de 1988, um papel extremamente relevante, na medida em que constituem o núcleo essencial da Constituição. Segundo Paulo Gustavo Gonet Branco, “O avanço que o direito constitucional apresenta hoje é resultado, em boa medida, da afirmação dos direitos fundamentais como núcleo da proteção da dignidade da pessoa”[2]. Por conseguinte, segundo esta definição, os direitos fundamentais assumem papel precípuo na proteção da dignidade da pessoa humana. Assim, os direitos fundamentais, tomados em seu sentido material – fundamentalidade material – são pretensões, conforme determinado momento da história, que “se descobrem a partir da perspectiva do valor da dignidade humana”.[3]

Muitas expressões têm sido empregadas para conceituar os direitos fundamentais, entre elas direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem.[4]

Os direitos fundamentais “constituem parâmetro hermenêutico e valores superiores de toda a ordem constitucional e jurídica”[5]. Em outras palavras, os valores aqui consagrados são superiores às demais normas constitucionais e infraconstitucionais, possuindo status jurídico destacado. Vale lembrar ainda que os direitos fundamentais são cláusulas pétreas, ex vi do art. 60, §4º, da CF, o que impede que sejam suprimidos ou revogados, sejam propriamente os direitos fundamentais ou seus derivados, por ato do poder constituinte derivado.[6]

No que pertine às características, os direitos fundamentais são relativos, não-universais, inalienáveis, indisponíveis, irrenunciáveis, constitucionalizados e vinculados aos Poderes Públicos.[7] A constitucionalização é conditio sine qua non dos direitos fundamentais. Sem constituição não há que se falar em direitos fundamentais. É justamente aqui que reside a distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais, na medida em que os direitos fundamentais devem estar positivados, e, no Brasil, estão na Constituição Federal, ao passo que os direitos humanos são de ordem jusnatural e índole filosófica, não reclamando a sua positivação como característica elementar. Em decorrência do status constitucional, há a vinculação aos Poderes Públicos – Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.  Assim, todos os atos praticados nas três esferas de poder devem estar em conformidade com os direitos fundamentais, sob pena de invalidação dos mesmos.[8]

Merece também especial destaque a definição de direitos individuais (também direitos fundamentais), que são os direitos concernentes às pessoas físicas e estão arrolados no art. 5º da Constituição Federal. Os direitos individuais ou, na concepção de José Afonso da Silva, direitos fundamentais do homem-indivíduo, “[...] são aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado.”[9]

1.2. Regras e princípios como espécies normativas

A distinção entre regras e princípios consubstancia-se em um dos pilares para a compreensão da teoria dos direitos fundamentais. Para além de uma distinção precisa entre regras e princípios, traçaremos doravante uma utilização sistemática dessa distinção.[10]

Tanto regras como princípios são normas, na medida em que dizem o que deve ser, ou seja, podem ser expressas por proposições deônticas básicas do dever-ser, da permissão e da proibição. Assim, tanto os princípios quanto as regras são “razões para juízos concretos de dever-ser, ainda que de espécie muito diferente.”[11] A distinção, portanto, é fundada entre duas espécies de normas – regras e princípios.[12]

Segundo o critério da generalidade, os princípios possuem elevado grau de generalidade, ao passo que nas regras, o grau de generalidade é baixo. Como exemplo, temos a norma-princípio que garante a liberdade de crença, a qual possui grau de generalidade relativamente elevado. Nas regras, podemos citar o direito que todo preso tem de converter outros presos à sua crença. Assim, segundo o critério da generalidade, pode-se classificar a primeira norma como princípio, e a segunda norma como regra.[13]

Traçando uma distinção qualitativa, os princípios são mandamentos de otimização, na medida em que “[...] são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes [...]”[14], haja vista que a sua satisfação far-se-á em níveis variados, sendo que a medida satisfativa não depende apenas, e tão somente, das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas.[15] Já quanto às regras, estas podem ou não podem ser satisfeitas. Deve-se fazer exatamente o que lhes é exigido, não podendo sua satisfação situar-se além ou aquém das determinações no âmbito das possibilidades fáticas e jurídicas.[16]

O conflito entre regras, por sua vez, somente pode ser solucionado pelo critério de validade ou pela cláusula de exceção. A cláusula de exceção resolve o conflito antinomínico entre duas regras, permitindo que ambas continuem vigorando no ordenamento jurídico. Caso contrário, tendo em vista não ser possível validar dois juízos concretos e contraditórios na esfera do dever-ser (deontologia), uma das regras deve ser declarada inválida.[17] A problemática que envolve o conflito antinomínico pode ser solucionado segundo o critério cronológico (lex posterior derrogat legi priori), critério da especialidade (lex specialis derrogat legi generali), e critério hierárquico (lex superior derrogat legi inferiori).[18]

Diversamente, na colisão principiológica, um dos princípios terá que ceder, mas isso não significa que um dos princípios será declarado inválido, nem que haverá cláusula de exceção introduzida. Os princípios, quando aferidos in concreto, possuem diferentes pesos, e o princípio com maior peso prevalecerá sobre o outro. Assim, ao contrário das regras, em que o conflito se resolve na dimensão da validade, nos princípios a colisão se resolve na dimensão do peso. A solução, portanto, dar-se-á através do sopesamento de interesses.[19]

1.3. Princípio da dignidade da pessoa humana

           

Na Constituição Federal de 1988, a dignidade da pessoa humana revela-se como fundamento da República Federativa do Brasil, estando insculpida no seu art. 1º, inciso III. Novidade no constitucionalismo pátrio, a dignidade foi concebida após a Segunda Guerra Mundial, no bojo da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, e, após a promulgação da Constituição de 1988, faz parte do núcleo essencial da constituição material, donde decorrem todos os direitos fundamentais. Influencia, portanto, muitos outros princípios dela decorrentes. Como significado e conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, importa, num primeiro momento, no reconhecimento de que o Estado é que existe em função do homem, e não o contrário.[20]

Quanto ao seu conteúdo, faz parte de uma categoria axiológica aberta, não contemplando o conceito fixista, do qual não seria capaz de abarcar a pluralidade axiológica contemporânea.[21] A dignidade caracteriza-se, pois, como direito fundamental imprescritível, irrenunciável e inalienável, por sua própria natureza, independente das circunstâncias do sujeito[22]. Segundo prescreve o art. 1º, da Declaração Universal da ONU de 1948, todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade.”

Nesse sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se na base de todos os direitos constitucionais consagrados, tais como nos direitos e liberdades individuais, nos direitos a prestações sociais, nos direitos de participação política, bem como nos direitos dos trabalhadores.[23] Em outras palavras, o princípio da dignidade da pessoa humana está consagrado no âmbito dos direitos de defesa dos indivíduos contra atos do Estado (direitos de defesa), dos direitos de exigir prestações materiais do Estado em face dos cidadãos (direitos prestacionais), como também dos direitos dos indivíduos de participação política (direitos de participação).

           

1.4. Princípios da liberdade de consciência, crença e religião e a fundamentalidade do descanso semanal

O princípio fundamental da liberdade de crença é princípio decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana, estando, pois, nesse sentido, intimamente relacionado com a própria dignidade no que concerne à sua garantia constitucional. Nesse sentido, afirma Manoel Jorge e Silva Neto que “Fácil é concluir acerca da associação existente entre dignidade da pessoa humana e liberdade religiosa, certo que aquele postulado inspira o sistema do direito positivo de uma maneira geral [...][24]

Vejamos o disposto no art. 5º, incisos VI, VII e VIII, da Constituição Federal, in verbis:

“VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”

Conforme o inciso VI, do art. 5º, da CF, José Afonso da Silva afirma que a liberdade de religião, incluída entre as liberdades espirituais, pode ser expressa em três formas de liberdades: liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa.[25] No mesmo sentido, Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro afirma que a liberdade religiosa projeta-se em três dimensões: uma dimensão subjetiva consubstanciada na liberdade de crença; uma dimensão coletiva ou social, fundada na liberdade de culto; e uma dimensão institucional, pautada na organização e administração dos movimentos religiosos.[26]

A liberdade de consciência “[...] é a liberdade de foro íntimo do ser humano, que impede alguém de submeter outrem a seus próprios pensamentos [...]”[27], sendo verdadeiro pressuposto de concretização para que o sujeito possa exercitar as demais liberdades, como a de pensamento, de religião (crença e culto) e de convicção político-filosófica. Assim, pode-se inferir que a liberdade de religião compreende a liberdade de crença e a liberdade de culto, quais sejam, a liberdade de acreditar ou não em algo, e o modo pelo qual se exercita uma crença.[28]

Outrossim, o direito à liberdade de religião (e de culto), aqui debatido nos seus desdobramentos como direito subjetivo, individual ou coletivo, revela-se um direito subjetivo público, individual e coletivo, conquanto exigível por iniciativa própria dos seus titulares em face do Poder Público,  o qual tem o dever de realização das prestações positivas e negativas, fáticas ou normativas, necessárias ao seu exercício. [29] Assim, o entendimento ultrapassado dos direitos fundamentais como direitos de defesa do indivíduo contra o Estado[30], mostra-se insuficiente para abarcar toda a densidade normativa do princípio da liberdade de religião, exigindo, a partir da função prestacional dos direitos fundamentais, uma atuação positiva do Poder Público.[31]

Notadamente, observa-se a existência do direito fundamental ao descanso semanal, que é princípio decorrente e implícito da própria liberdade de religião, segundo os preceitos desta ou aquela religião. Tal ilação decorre da posição, segundo exegese que se faz do art. 5º, inciso II, da CF, de que todos os direitos fundamentais, sejam expressos (constitucionais ou internacionais), implícitos ou decorrentes (do regime e dos princípios constitucionais), teriam as mesmas prerrogativas de autenticidade e eficácia quanto ao conteúdo e dignidade.[32] Justifica-se, portanto, que tal direito decorra da fundamentalidade inerente à dignidade da pessoa humana, na medida em que sua importância não pode ser abandonada à disponibilidade do Poder Legislativo.[33]

Ademais, cumpre aqui abrir um parêntese e citar que o dia de guarda (ou descanso semanal) é amplamente legislado no âmbito de diversos tratados internacionais, tratando especificamente sobre esse assunto, garantindo que o fiel possa observar dias de descanso ou comemorar festividades e cerimônias em conformidade com os preceitos desta ou aquela religião. E é exatamente na partir daqui que se confere conteúdo fundamental ao descanso semanal, em decorrência, portanto, dos diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.[34]

Nesse sentido, a ausência de previsão legal expressa a respeito da prestação alternativa por objeção de consciência determinada por motivo religioso, na espécie, o direito de descanso semanal em face de prova/concurso designado previamente para esse dia, ou necessidade de comparecimento à aula ou trabalho, não pode inviabilizar a eficácia do direito fundamental ao descanso semanal. Assim, a objeção de consciência, consubstanciada em convicção íntima arraigada nos valores individuais, em que sua violação ocasiona intenso sofrimento moral, deve ser preservada pela prestação alternativa (art. 5º, VIII, da CF), em manutenção da garantia à não privação de direitos (direito de acesso e exercício educacional e profissional) por motivo de convicção religiosa (art. 5º, VI, da CF).[35]

1.5. Princípio da separação e Estado laico.

A partir do Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, de autoria do jurista Rui Barbosa, recepcionado pela Constituição republicana de 1891, o Brasil tornou-se um Estado laico ou leigo, ou seja, ocorreu a separação entre a Igreja Católica e o Estado. As instituições políticas passaram então a se submeter somente à soberania popular – não mais a determinada confissão religiosa. A forma de convivência social passou a ser determinada a partir da laicidade do Estado, momento em que a Igreja Católica teria perdido todos os seus privilégios e deixado de ser a igreja (ou religião) oficial do Estado brasileiro. Ocorreu nesse momento da história uma ampliação significativa da liberdade de crença e de culto.[36]

Vejamos classificação das diversas configurações existente na relação Estado-Igreja apresentada por Jorge Miranda, a qual perpassa o fenômeno religioso e o Estado, conforme as diferentes épocas e lugares, diversos regimes políticos, tipos de Estado e as diversidades de religiões existentes. Assim, as relações entre o Estado e as confissões religiosas podem ser classificadas em 3 (três) grandes troncos: Há a identificação entre Estado e Igreja, entre comunidade política e comunidade religiosa, que é o Estado confessional; há a oposição do Estado à religião; e há a não identificação, que é propriamente o Estado laico.[37]

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Na identificação entre Estado e Igreja, consubstanciado no Estado confessional, há os regimes da Teocracia e do Cesaropapismo. Na Teocracia, o poder religioso, a Igreja, exerce domínio sobre o poder político, o Estado. Já no Cesaropapismo há o domínio do poder político sobre o poder religioso, ou seja, o Estado exerce domínio sobre a Igreja. No segundo tronco, temos a oposição do Estado à religião, que pode ser relativa ou absoluta. Na oposição relativa há o Estado laicista, e na oposição absoluta há uma confessionalidade negativa, porquanto o Estado é ateu.[38]

Por sua vez, temos o terceiro tronco, isto é, o sistema da não identificação entre Estado e Religião, ou Estado laico. Temos a união entre o Estado e uma determinada confissão religiosa (religião de Estado), que pode ser a união com ascendentes de um poder sobre o outro – o Clericalismo (ascendente do poder religioso) e o Regalismo (ascendente do poder político) – e a união com autonomia relativa. Ainda no Estado laico, há a separação relativa e absoluta. Na separação relativa, há tratamento especial ou privilegiado a um determinado seguimento religioso, ao passo que na separação absoluta há um tratamento absolutamente igual para todas as confissões religiosas.[39]

O regime de tolerância, também conhecido como da separação absoluta ou Estado laico, é o adotado pelo Brasil, conforme se lê do disposto no art. 19, da CF, in verbis:

“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

[...]”

A laicidade do Estado não significa, por seu turno, que o Estado é inimigo da religião, ou que há qualquer espécie de inimizade com a fé. Não há impedimento de colaboração da Igreja quando se trata de interesse público, conforme se infere do disposto no art. 19, I, da CF. São acolhidas pela sistemática constitucional medidas que promovam o bem comum com atividades conjuntas entre o Poder Público e as confissões religiosas, a ponto de reconhecer como oficiais atos praticados no âmbito das liturgias eclesiásticas, como v.g. o reconhecimento dos efeitos civis ao casamento religioso.[40]

A Igreja e o Estado devem manter uma relação neutra entre si, como verdadeira garantia fundamental da liberdade religiosa, pois, ao olhar o passado a história nos relembra os problemas resultantes da interferência da Igreja no Estado, resultando em aniquilamento da consciência e da liberdade, promovendo intolerância e perseguições.[41] Não obstante, o caráter principal da separação não deve ser tomado, em termos absolutos, do tudo ou nada (all or nothing), mas, sobretudo, devem ser mantidos os princípios do núcleo essencial – igual dignidade e liberdade a todos os cidadãos – procurando otimizar soluções razoáveis entre a separação do Estado e a liberdade de religião, a ponto de não sufragar nem eleger determinadas práticas.[42]

Ao se reconhecer a liberdade religiosa, evidencia-se nítida contribuição de prevenção a tensões sociais decorrentes do veto oficial a crenças quaisquer, porquanto se instala um pluralismo de ideias e crenças, permitindo ao indivíduo exercer plenamente sua prerrogativa volitiva no que tange à sua escolha em matéria de fé. Tal reconhecimento também se mostra clarificado ao argumento de que a formação moral religiosa contribui para modelar a figura do bom cidadão. Todavia, tais argumentos não são suficientemente capazes de explicar a razão de existência propriamente da liberdade de religião. A religião é, pois, tomada como boa em si mesma, propiciando, aos indivíduos que buscam a Deus, o livre exercício dos seus deveres, sem obstáculos para tanto.[43]

O reconhecimento pelo Estado de um dia de descanso religioso não viola o princípio de separação entre Igreja e Estado, pelo contrário, reconhece o livre exercício da religião por seus cidadãos. Não há comprometimento quanto à neutralidade estatal, pois o Estado não adotou este ou aqueloutro costume religioso, tampouco impõe tal prática. Mas, por outro lado, negar o livre exercício do direito subjetivo de liberdade religiosa, no tocante ao descanso semanal, diversamente do dia eleito pela maioria, demonstra a vinculação da identidade axiológica do Estado.[44]

Ademais, vejamos parecer do jurista Rui Barbosa acerca da igualdade material no que pertine à escolha do Estado de um dia específico para o repouso semanal.

“A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem. Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez de supremacia do trabalho, a organização da miséria.”[45]

A concretização, portanto, da liberdade de religião, no caso de dispensa ao trabalho e às aulas/provas por motivo religioso – descanso semanal sagrado – consubstancia-se no dever estatal de criar condições organizacionais no âmbito da Administração Pública, como também regulamentar, normativa e procedimentalmente, nos âmbitos laborais e educacionais, objetivando o pleno exercício do princípio da liberdade de religião.[46] “O silêncio perante a religião, na prática, redunda em posição contra a religião [...]”[47], pois “[...] quando se sustenta que o Estado deve ser surdo à religiosidade de seus cidadãos, na verdade se reveste este mesmo Estado de características pagãs e ateístas que não são e nunca foram albergadas pelas Constituições brasileiras. [...]”[48]

1.6. Princípios da igualdade e isonomia.

O princípio da igualdade encontra-se no preâmbulo da Constituição Federal incluído como valor supremo da República Federativa do Brasil. Igualdade conforme previsto na própria lei (igualdade formal), o qual confere tratamento isonômico (igualitário) a todos, visto no sentido de universalização, poderá acarretar, quando concretizado, discriminação quanto ao seu conteúdo. Assim, necessário, pois, que se compreenda a igualdade no seu sentido material, conferindo tratamento igual aos iguais, e tratando desigual aos desiguais.[49]

Certo que os homens nunca foram e nem serão iguais, sendo a desigualdade inerente à condição de ser humano. A igualdade existiria, portanto, entre os seres humanos quanto aos direitos, obrigações, faculdades e deveres. Deve-se, nesse sentido, almejar uma igualdade proporcional, visto que não se deve tratar todos igualmente em situações oriundas de fatos desiguais. Busca-se o sentido real da igualdade, e não meramente nominal. Logo, os desequiparados devem receber tratamento na medida de suas desigualdades.[50]

Ademais, Jónatas Machado, acerca do princípio da igualdade em matéria religiosa, aduz que o direito inerente à liberdade de consciência, religião e culto, em conformidade com a própria ideia inerente à dignidade da pessoa humana, clarifica-se a partir da visão de uma comunidade política “como sistema justo de cooperação entre cidadãos livres e iguais.”[51]

Outrossim, decorre do princípio da igualdade, o direito fundamental de acesso igualitário a cargos públicos e acesso igualitário à educação pública. O art. 206, inciso I[52], da CF, prevê que o ensino será ministrado segundo o princípio de que todos devem ter igualdade de condições de acesso e permanência na educação. Já o princípio de acesso igualitário aos cargos públicos está assentado no princípio da isonomia (decorrente do princípio da igualdade), ao fundamento de que todos os interessados em ingressar na carreira pública devem disputar as vagas em idênticas condições, ou seja, todos devem realizar concursos públicos de provas ou de provas e títulos como forma de ingresso no serviço público – que é o princípio da competição.[53]

Essa Isonomia, portanto, deve ser entendida como tratamento igualitário para todas as pessoas, exprimindo igualdade normativa. Tal princípio é oriundo do art. 5º, caput, da Constituição Federal, instituindo que “todos são iguais perante a lei”. Assim, indistintamente e em igualdade de condições, todas as pessoas devem ser submetidas às mesmas condições jurídico-normativas impostas.[54]

Este princípio está presente na aplicação de provas de concursos públicos e exames vestibulares, mas também se pode supor estar presente na questão de concessão de certos benefícios ao profissional que não trabalha aos sábados, em verdade medida alternativa, ou mesmo ao acadêmico que não frequenta as aulas aos sábados, beneficiário de poder tomar nota das aulas por meio eletrônico e realizar tarefas extraclasse para compensar a ausência motivada.

2. ORIGEM HISTÓRICA E DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS

O direito de observar um dia específico de descanso religioso é visto como uma garantia subjetiva de separar um dia para cultuar e adorar a divindade. Conforme veremos, há aqueles que separam o sábado ou o domingo para esta finalidade específica, e aqueles que observam a sexta-feira como dia santo. Revela-se, portanto, uma necessidade de foro íntimo, segundo os atributos físicos, espirituais e sociais.[55]

Para os Adventistas do Sétimo Dia, a observância do sábado é uma prova de fidelidade e lealdade do fiel para com o seu Deus. Uma questão de obediência ao tempo sagrado reservado pela lei eterna e imutável de Deus. Assim, as horas sagradas do sábado pertencem a Deus, devendo ser utilizadas somente para Ele. As atividades do deleite próprio do crente, seus negócios, seus pensamentos, não se coadunam com a observância do sábado. Toda a família deve se reunir nas horas sagradas, de um pôr do sol a outro pôr do sol, em cânticos, louvores e orações em favor do eterno amor de Deus. As atividades seculares, tanto televisivas como de qualquer outra espécie, devem ser postas de lado, não se realizando nenhuma tarefa desnecessária.[56]

Para a tradição judaica, o sábado – sabá ou shabbat – vem da raiz hebraica shin-bet-tav, que significa descansar ou cessar de trabalhar. No sabá, sétimo dia da semana, os judeus dedicam-se à oração e ao lar, dando boas vindas ao sabá, bem como despedindo-se dele na noite seguinte. O sabá começa dezoito minutos antes do pôr do sol da sexta-feira, e termina, aproximadamente, quarenta minutos após o pôr do sol de sábado. Hoje, cada um dos quatro ramos do judaísmo (ortodoxo, conservador, reformista e reconstrucionista) observa o sabá em conformidade com seus respectivos protocolos. A tradição ortodoxa é a mais rigorosa na obediência a todas as regras e mandamentos referentes ao sabá. Entretanto, apesar das diferenças, o sabá é observado com alta estima por todos os ramos do Judaísmo.[57]

Para muitos dos judeus praticantes, no sabá não é permitido dirigir, ascender luzes, ligar a televisão, sair para jantar, ou até mesmo fazer uma xícara de café fresco. Segundo o Mishna (código de lei judaico), é proibido arar, assar, matar um animal, escrever, construir, acender fogo, bater com um martelo, tecer, dar nós, entre outras restrições. Em verdade, tais restrições não possuem um caráter punitivo[58], mas servem para “remover o devoto da vida mundana e ajudá-lo a experimentar plenamente as maravilhas do sabá”.[59] Segundo os profetas, as restrições na observância do sabá são necessárias para se alcançar o estado espiritual desejável.[60]

O catecismo da Igreja Católica prescreve que o domingo, dia da ressurreição de Jesus Cristo, é um dia sagrado, devendo os fiéis se dedicar à celebração comunitária da eucaristia dominical, abstendo-se de trabalhos ou atividades que impedem o devido culto a Deus. As necessidades da família e de relevância social consubstanciam motivos legítimos para dispensa do repouso dominical. O domingo é tradicionalmente separado às boas obras de assistência social em prol dos doentes, enfermos e idosos. É tempo de reflexão, de silêncio, de cultura e meditação, objetivando o crescimento interior da vida cristã.[61]

Para os católicos, a guarda do domingo é um objetivo a ser alcançado, mas pode ser relativizada em algumas situações. Vejamos:

“Dentro do respeito à liberdade religiosa e ao bem comum de todos, os cristãos precisam envidar esforços no sentido de que os domingos e dias de festa da Igreja sejam feriados legais. A todos têm de dar um exemplo público de oração, de respeito e de alegria de defender suas tradições como uma contribuição preciosa para a vida espiritual da sociedade humana. Se a legislação do país ou outras razões obrigarem a trabalhar no domingo, que, apesar disso, este dia seja vivido como o dia de nossa libertação, que nos faz participar desta ‘reunião de festa’, desta ‘assembléia dos primogênitos cujos nomes estão inscritos nos céus’ (Hb 12,22-23)”[62]

Já para o Islã – Islamismo – a sexta-feira é a festa semanal dos muçulmanos. O dia deve ser dedicado para a invocação a Deus, e esta deve ser realizada sempre em uma mesquita, estendendo-se a todo muçulmano que seja maior, capaz e residente (excluídos os que estiverem em viagem). O profeta Muhammad afirma que na “[...] oração no dia da sexta-feira dirigi-vos para a invocação de Deus e deixai as vendas, porque isso é melhor para vós, sabiamente”. Em outras palavras, é vedado ao muçulmano, segundo suas crenças, trabalhar na sexta-feira, porquanto dia santo dedicado à oração. E ainda afirma o profeta que “O Senhor dos dias é o de sexta-feira: nele há uma hora na qual se o muçulmano rogar a Deus, certamente será ouvido”.[63]

Pelo que se observa, o domingo é o único dia de guarda que pode ser relativizado, segundo obrigação legal imposta, haja vista que a sexta-feira e o sábado possuem natureza absoluta quanto à sua guarda, segundo os preceitos acima abordados.

Nesse ínterim, verifica-se que legítimo e sagrado direito que assiste a cada confissão religiosa, o qual resguarda o direito de descanso semanal conforme consta dos protocolos de suas doutrinas, é direito de foro íntimo intrinsecamente ligado ao exercício da fé. Para tanto, há que se considerarem as divergências apresentadas no tocante ao dia eleito, conquanto seja dever do Estado garantir e promover a livre consciência de adorar a Deus conforme individual convicção. Nesse sentido, não pode o Estado promiscuir-se com aparatos religiosos e querer dar a todos a mesma coisa – normatizar um dia específico de descanso semanal para todos. Assim, a cada qual deve ser concedido o direito de descansar conforme sua consciência e os ditames de sua fé, garantindo o pleno exercício da liberdade de religião.[64]

3. CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO DESCANSO SEMANAL

3.1. Princípio da proteção do núcleo essencial

A proteção dos direitos fundamentais pode ser vista sob uma perspectiva formal ou material. Formalmente, a proteção dá-se pela posição privilegiada situada no ápice do ordenamento jurídico-constitucional. São protegidos como cláusulas pétreas (art. 60, §4º, da CF)[65], como também possuem aplicabilidade imediata (art. 5º, §1º, da CF)[66]. Materialmente, compreende-se a possibilidade de inclusão de outros direitos fora do catálogo de direitos fundamentais.[67]

Em especial, há de se destacar o princípio da proteção do núcleo essencial, disposto expressamente em algumas Constituições, como na Lei Fundamental alemã de 1949 (art. 19, II) e na Constituição Portuguesa de 1976 (art. 18, III). No Brasil, apesar da Constituição de 1988 não ter adotado expressamente este princípio, é inequívoca a sua existência, porquanto decorre do próprio modelo garantístico adotado pelo constituinte. Visa obter, nesse sentido, maior proteção aos direitos fundamentais, notadamente quando há um conflito entre princípios, visando dar proteção “ao mínimo insuscetível de restrição ou redução”.[68]

Segundo o princípio da proteção do núcleo essencial, há a proteção aos direitos de defesa contra leis restritivas – “núcleo essencial como reduto último de defesa” – e a proteção à efetivação mínima dos direitos notadamente prestacionais (sociais) – “núcleo básico de direitos sociais” – porquanto devem consubstanciar uma gama de direitos sociais a serem efetivados, objetivando propiciar aos indivíduos uma existência mínima indispensável para garantir a fruição de qualquer outro direito.[69] Na hipótese de colisão entre direitos fundamentais, através da ponderação de valores na busca da obtenção de equilíbrio e concordância prática, deve-se preservar, na melhor medida possível, a essência de cada um.[70]

A proteção do núcleo essencial é a “garantia do núcleo essencial como restrição das restrições”[71]. A restrição a um direito fundamental somente poderá existir, in concreto, em face de princípios colidentes, momento em que se atribuirá maior peso a um direito fundamental em detrimento de outro.[72] Pode-se dizer, nesse sentido, que a garantia conferida ao núcleo essencial do direito, mais especificamente ao seu conteúdo mínimo, é consequencia direta que decorre da aplicação da máxima da proporcionalidade, notadamente nos casos em que houver restrições a direitos fundamentais.[73]

3.2. A máxima da proporcionalidade na colisão de princípios

A máxima da proporcionalidade é compreendida em 3 (três) máximas parciais, quais sejam, a máxima da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito[74] (mandamento do sopesamento propriamente dito).[75] A colisão de princípios se resolve através do sopesamento de princípios, exige-se método específico para que se chegue a uma solução adequada, qual seja, a aplicação da máxima da proporcionalidade.

A proporcionalidade em sentido estrito, segundo a premissa de que “princípios são mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas e fáticas”[76], requer um sopesamento de princípios, o qual decorre de uma relativização em detrimento das possibilidades jurídicas.[77] Nesse sentido, Robert Alexy faz a seguinte afirmação:

“A máxima da proporcionalidade em sentido estrito decorre do fato de princípios serem mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas. Já as máximas da necessidade e da adequação decorrem da natureza dos princípios como mandamentos de otimização em face das possibilidades fáticas.”[78]

As máximas parciais da adequação e necessidade, conforme o conceito de princípio como mandamento de otimização, expressam uma exigência segundo uma máxima realização relativamente às possibilidades fáticas existentes. Todavia, a máxima da adequação não aponta para um ponto máximo, mas em verdade para um critério negativo, pelo qual deve haver a tentativa de eliminar os meios não adequados, sem, contudo, determinar tudo. Semelhantemente ocorre com a máxima da necessidade. Esta exige que, entre dois meios aproximadamente adequados, seja eleito o meio que interfira de modo menos intenso ou gravoso.[79]     

A máxima da proporcionalidade em sentido estrito, da mesma forma que a lei do sopesamento, expressa que “quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro.”[80] Por conseguinte, mostra-se possível a divisão da máxima da proporcionalidade em sentido estrito em 3 (três) etapas. Na primeira, avalia-se o grau de não satisfação ou afetação concernente a um dos princípios em colisão. Na segunda, deve-se avaliar quão importante é o princípio em colisão. Por fim, na terceira etapa, deverá ser avaliado se a afetação ou não satisfação de um dos princípios pode ser justificada pela importância da satisfação conferida ao outro princípio colidente.[81]

No Brasil, a recepção da ideia de proporcionalidade se deu a um mero exame de razoabilidade[82], o qual é intrínseco à tradição common law e também recepcionado em vários países europeus. Em suma, razoabilidade e proporcionalidade são tidas como sinônimas. Em outros termos, evidenciou-se um rebaixamento da finalidade atribuída à proporcionalidade a mero instrumento retórico, ou seja, à método de interpretação teleológica objetiva, que trata de critérios objetivos de uma relação meio-fim na esfera de tutela de bens jurídicos em conflito. Por conseguinte, verifica-se que esta posição adotada “[...] subverte o sentido do controle de proporcionalidade, na medida em que pode ser apta a ampliar a margem de ação da medida estatal limitadora ou restritiva do direito individual.”[83]

3.3. Incidência concreta da máxima da proporcionalidade

O sopesamento revela-se inevitável, na medida em que deve haver uma fina sintonia entre o legítimo direito estatal de impor suas normas e o direito individual de pautar-se de acordo com sua consciência e valores escolhidos. Há de se sopesar a prerrogativa conferida ao fiel – direito de descanso semanal – em detrimento das prerrogativas preconizadas pela Administração Pública, porquanto uma extensão ilimitada de concessões poderia pôr em cheque a própria ordem jurídica. Nesse diapasão, o Estado abre mão do princípio democrático que impõe os valores da maioria para todos, objetivando não sacrificar o direito de foro íntimo do cidadão individualmente considerado.[84]

Assim, importa clarificar a questão das partes que poderão envolver o presente conflito. De um lado teremos os particulares que se sentirem lesionados quanto à sua convicção íntima de descansar no dia de guarda. De outro lado teremos a Administração Pública, na organização de concursos públicos e vestibulares, instituições privadas de ensino, na realização de vestibulares e a frequência em aulas, e entidades pública ou privadas que exigem a presença do servidor/empregado.

O primeiro passo para se aplicar a máxima da proporcionalidade ao caso concreto é identificar e verificar os princípios que estão em colisão. De um lado temos os princípios da dignidade da pessoa humana, liberdade de religião, descanso semanal, acesso e exercício educacional e profissional. De outro lado temos os princípios da igualdade (isonomia) e da legalidade. A igualdade que aqui se trata é a igualdade no seu sentido formal, a qual prescreve tratamento universal a todos. Já a legalidade é a prevista no art. 5º, II, da CF.

O caso evidenciado trata do direito fundamental da dignidade da pessoa humana, do qual decorre o acesso e exercício educacional e laboral. Segundo aqueles que, conforme suas convicções religiosas, acreditam que determinado dia sagrado é reservado unicamente às atividades sacras, a designação do exame/certame ou exigência de comparecimento para trabalhar/estudar neste dia entra em conflito com as convicções íntimas de professar e exercer a fé.

Por outro lado, é postulado intrínseco de avaliação dos candidatos, seja no vestibular ou concurso público, a aplicação da avaliação ou exame no mesmo dia e horário, visto que o conteúdo avaliado deve ser o mesmo para todos, o que justifica o princípio da igualdade no seu sentido formal, o qual imprescinde de tratamento isonômico e universal. Não menos importante, temos a legalidade, a qual incide na medida em que o certame ou exame é designado por ato do administrador público (ou delegatário), consubstanciado na formalização de um edital, que é a lei do certame ou exame.

Segundo Alexy, o intérprete deverá seguir o caminho estrito passando por 3 (três) máximas parciais, que são: a máxima da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Também a máxima da proporcionalidade em sentido estrito deve passar por 3 (três) etapas. Na primeira, avalia-se o grau de não satisfação ou afetação concernente a um dos princípios em colisão. Na segunda, deve-se avaliar quão importante é o princípio em colisão. Por fim, deverá ser avaliado se a afetação ou não satisfação de um dos princípios pode ser justificada pela importância da satisfação conferida ao outro princípio colidente.[85]

Ademais, deve-se considerar que, entre todos os dias de guarda existentes, a sexta-feira e o sábado são os que representam valores absolutos, tendo em vista que o domingo pode ser relativizado por obrigação legal, conforme mencionado. Dessa forma, eleger-se-á como dias de guarda a sexta-feira e o sábado, tendo em vista que sua relativização irá afetar sobremaneira o núcleo essencial do direito fundamental à liberdade religiosa.

O fim almejado, universalmente, é a educação universitária, o exercício profissional e acesso aos cargos públicos através da uma avaliação a todos imposta. O meio para que se cheque ao fim almejado é exatamente a realização do certame ou exame, ou exercício educacional ou laboral. O meio mais adequado, certamente, é aquele que possa garantir que todos possam acessar e exercer – acesso e exercício universal. Sem tudo determinar, infere-se que o meio mais adequado para atingir o fim almejado de conceder uma medida alternativa, é alterar a data do vestibular ou concurso, ou permitir a compensação de horas ou não exigibilidade de frequencia às aulas no dia de guarda. Desta forma, garante-se que esta medida não fira a consciência e a liberdade de religião, ainda que das minorias. Assim, a liberdade de religião não pode ser descartada, sob pena de atingir a universalidade de acesso e exercício à educação universitária e às carreiras profissionais.

Segundo a máxima da necessidade, se a decisão for manter a data anteriormente designada ou obrigar a frequência no dia de guarda, o órgão judicante afetará os núcleos essenciais da liberdade de religião, da dignidade da pessoa humana e do livre acesso e exercício educacional e laboral.

No caso dos concursos públicos e vestibulares, se a decisão for uma medida alternativa, confinando incomunicáveis os candidatos, os judeus – devido às suas restrições milenares quanto à observância do sábado – serão afetados substancialmente com tal medida. Conforme alhures, não existe óbice à grande maioria das religiões em realizar atividades seculares no dia de domingo. Portanto, segundo a máxima da necessidade, a medida que se impõe ao fim almejado é designar data que não seja o dia de guarda (sexta-feira ou sábado).

Em se tratando da obrigatoriedade de exercício laboral e educacional no dia de guarda, verifica-se que podem ser tomadas medidas alternativas. No caso das aulas que coincidam com o dia de guarda, podem-se utilizar meios eletrônicos para registrar as aulas e realizar provas e outras tarefas em data alternativa, sem qualquer prejuízo quanto ao acatamento da igualdade. Já quanto ao exercício laboral, é plenamente possível que o profissional reponha a falta em outra data. Excepcionalmente, em casos de serviços emergenciais, tais como salvamento de vidas (médico e bombeiro), e segurança pública (policial e militar), em havendo a necessidade personalíssima, a própria razoabilidade da religião permite que o fiel trabalhe neste dia, contanto que não seja para seu proveito próprio, ou seja, não fique com a remuneração desse dia trabalhado. Mas, claro, tal deve ser uma exceção e não uma regra. O ideal é que se procure trocar o plantão ou o dia de trabalho com outro profissional.

Segundo a primeira etapa da máxima da proporcionalidade em sentido estrito, verifica-se que a afetação da legalidade e da igualdade garante a eficácia mínima de ambos, ao passo que a não afetação da dignidade da pessoa humana e da liberdade religiosa mostram-se necessária, na medida em que é direito fundamental de todo cidadão acessar cargos públicos, acessar vagas em universidades, e exercer atividades educacionais e laborais.

Na segunda etapa da máxima da proporcionalidade – avaliação da importância do princípio em colisão[86] – a não afetação da dignidade da pessoa humana (e princípios decorrentes), mostra-se de suma importância em detrimento à afetação do princípio da igualdade e da legalidade, porquanto a dignidade da pessoa humana é o fundamento de todo o sistema constitucional, revestindo-se de valor supremo, construído pela razão jurídica.[87]

Quanto à terceira etapa, cumpre agora analisar se a afetação ou não satisfação de um dos princípios pode ser justificada pela importância da satisfação conferida ao outro princípio colidente.[88] Esta análise pode ser verificada quanto ao prejuízo causado pela decisão que se tome. Para tanto, segundo a importância do direito fundamental da dignidade da pessoa humana e a necessidade de preservar o direito fundamental ao descanso semanal, há que prevalecer a decisão que altere a data do exame ou certame ou conceda medida alternativa ao exercício laboral e educacional.

Por fim, há que se fazer um questionamento. Há algum prejuízo em designar a data do exame e vestibular para o dia de domingo? Segundo a análise das doutrinas religiosas, não haveria motivo plausível em prevalecer, por motivo de conveniência e oportunidade, a vontade do administrador público ou particular em designar o dia que bem entender. A designação do domingo resguardaria todos os princípios ora analisados, garantindo a máxima eficácia dos direitos fundamentais e a concretude necessária a resguardar o princípio fundamental que orienta toda a gama de direitos fundamentais, sobretudo, a dignidade da pessoa humana.

CONCLUSÃO

Consubstanciado na prestação alternativa por motivo religioso (art. 5º, VIII, da CF), amparado no direito de acesso e exercício laboral e educacional – assegurado pelo direito fundamental ao descanso semanal – há que se garantir aos acadêmicos e profissionais medida alternativa para que não sejam obrigados a violar suas consciências nas horas sagradas destinadas à guarda religiosa. Para tanto se deve levar em conta, sobretudo, a forma e o modo pelo qual cada religião observa o dia de descanso semanal, pois é de extrema relevância para compreender a postura que o Estado deve adotar para garantir, nesse sentido, uma proteção efetiva.

Neste norte, a aplicação in concreto da máxima da proporcionalidade, revela-se importante ferramenta para delinear e compreender o fenômeno da colisão de direitos fundamentais, em especial, da colisão entre os princípios, de um lado a dignidade da pessoa humana, liberdade de religião, acesso e exercício educacional e profissional, e, de outro lado, a igualdade (isonomia) e a legalidade.

O resultado, portanto, a partir da aplicação das máximas parciais da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, demonstrou que, no caso da realização de concursos públicos e vestibulares, a única medida proporcional e adequada suficientemente capaz de garantir a subsistência do núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, relativamente a todas as convicções religiosas, é a medida alternativa que altere a data para o domingo ou outro dia da semana que não seja o sábado ou a sexta-feira, compreendidos de um pôr do sol a outro pôr do sol, ou permita medida alternativa para não frequentar a aula e/ou o trabalho.

A designação da data da prova/concurso no sábado ou sexta-feira não se mostra adequada conforme a necessidade de interesse público, na medida em que a finalidade precípua do administrador público deve ser garantir a inclusão de todos os indivíduos (universal) na disputa por vagas nas universidades e órgãos públicos.

Por sua vez, a obrigatoriedade de frequência às aulas na sexta-feira ou no sábado também não se mostra um imperativo necessário, na medida em que podem ser utilizados meios eletrônicos para registrar as aulas e exigir trabalhos extraclasse. No mesmo sentido, a obrigatoriedade de trabalhar nestes dias pode ser excepcionada por trocas de plantão, ou compensação de horas, encontrando, ainda, a exceção de trabalhar quando o motivo for de força maior em atividades de segurança pública e emergenciais, contanto que não se torne uma prática frequente. Deve-se observar, nesse sentido, a razoabilidade na guarda destes dias, não buscando os próprios interesses, mas, contudo, não se abstendo de trabalhos solidários e imperiosos ao bem estar da sociedade.

Nesse norte, deve o Estado propiciar, no que concerne ao direito fundamental ao descanso semanal, uma atuação prestacional no sentido de criar condições organizacionais e procedimentais no âmbito da Administração Pública, fomentando a criação e instituição de legislação e diretrizes suficientemente capazes de conferir ampla proteção à pluralidade de crenças existentes no Brasil.

Imperioso, portanto, traçar novos horizontes e definir novos caminhos no âmbito da Administração Pública, conferindo ampla e efetiva proteção ao direito fundamental ao descanso semanal, isto é, a concretude necessária para propiciar efetividade suficiente à garanta plena do descanso semanal, sobretudo pela coexistência – em uma sociedade axiologicamente plural – de crenças e tradições religiosas.

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Sobre o autor
Yuri Schmitke Almeida Belchior Tisi

Advogado associado da Girardi & Advogados Associados. Especialista em Direito de Energia Elétrica pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Atuou na função de Assessor Jurídico na Defensoria Pública do Distrito Federal – CEAJUR (2009-2011), e como advogado e consultor na AS Consultoria em Comércio Exterior nas clássicas medidas de Defesa Comercial: antidumping, medidas compensatórias e salvaguardas (2011-2012).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Este artigo foi publicado, sem exclusividade autoral, com a seguinte referência: TISI, Yuri Schmitke Almeida Belchior. Concretização do direito fundamental ao descanso semanal. In: BITTENCOURT, Josias e LELLIS, Lélio (Orgs.). Ensaios em Estado, cultura e religião. Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2013.

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