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Quem investiga quem tem prerrogativa de função?

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09/10/2014 às 13:40
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4) Quem deve, então, investigar em casos como tais? - A Lei Orgânica da Magistratura Nacional - LOMAN: art.: 33, parágrafo único, da Lei Complementar nº. 35/79 - O Sistema Acusatório

Desde logo, devo advertir que o tema em epígrafe não diz respeito diretamente a uma das mais importantes atribuições do Ministério Público e, muitas das vezes, de fundamental importância para a persecução criminal: a investigação direta de infrações penais, razão pela qual não vamos enfrentar esta questão (que já o fizemos, aliás), que está para ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal.[14]

Aqui a questão é ainda mais grave: atentemos que o “Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da Constituição Federal). Parece-nos ser este um primeiro e grande indicativo da não recepção do acima referido dispositivo da Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

Com efeito, diz o art. 129, VIII da Constituição Federal que são funções do Ministério Público, dentre outras, “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”, cabendo-lhe “exercer outras funções que lhe sejam conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.” (inciso IX).

Como se nota pelo inciso I do art. 129, a Constituição deu ao Ministério Público, com exclusividade, a titularidade da ação penal pública e, como diz Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, “não seria razoável que a Constituição concedesse o direito de ação[15] com uma mão e retirasse os meios de ajuizá-la adequadamente com a outra. Por isso, deve-se admitir que o Ministério Público possa colher os elementos de convicção necessários para que sua denúncia não seja rejeitada.”[16]Acrescento: inclusive, se for necessário, ou seja, se não houver justa causa para o exercício da ação penal (indícios suficientes da autoria e prova da existência do crime).

Aqui, mutatis mutandis, acolhe-se a teoria dos poderes implícitos, na forma explicada pelo Ministro Celso de Mello: “Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos. Cabe assinalar, ante a sua extrema pertinência, o autorizado magistério de MARCELO CAETANO (“Direito Constitucional”, vol. II/12-13, item n. 9, 1978, Forense), cuja observação, no tema, referindo-se aos processos de hermenêutica constitucional – e não aos processos de elaboração legislativa - assinala que, ´Em relação aos poderes dos órgãos ou das pessoas físicas ou jurídicas, admite-se, por exemplo, a interpretação extensiva, sobretudo pela determinação dos poderes que estejam implícitos noutros expressamente atribuídos` (grifei). Esta Suprema Corte, ao exercer o seu poder de indagação constitucional - consoante adverte CASTRO NUNES (Teoria e Prática do Poder Judiciário, p. 641/650, 1943, Forense) - deve ter presente, sempre, essa técnica lógico-racional, fundada na teoria jurídica dos poderes implícitos, para, através dela, mediante interpretação judicial (e não legislativa), conferir eficácia real ao conteúdo e ao exercício de dada competência constitucional, consideradas as atribuições do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça, tais como expressamente relacionadas no texto da própria Constituição da República. Não constitui demasia relembrar, neste ponto, Senhora Presidente, a lição definitiva de RUI BARBOSA (Comentários à Constituição Federal Brasileira, vol. I/203-225, coligidos e ordenados por Homero Pires, 1932, Saraiva), cuja precisa abordagem da teoria dos poderes implícitos - após referir as opiniões de JOHN MARSHALL, de WILLOUGHBY, de JAMES MADISON e de JOÃO BARBALHO - assinala: ´Nos Estados Unidos, é, desde MARSHALL, que essa verdade se afirma, não só para o nosso regime, mas para todos os regimes. Essa verdade fundada pelo bom senso é a de que - em se querendo os fins, se hão de querer, necessariamente, os meios; a de que se conferimos a uma autoridade uma função, implicitamente lhe conferimos os meios eficazes para exercer essas funções. (...). Quer dizer (princípio indiscutível) que, uma vez conferida uma atribuição, nela se consideram envolvidos todos os meios necessários para a sua execução regular. Este, o princípio; esta, a regra. Trata-se, portanto, de uma verdade que se estriba ao mesmo tempo em dois fundamentos inabaláveis, fundamento da razão geral, do senso universal, da verdade evidente em toda a parte - o princípio de que a concessão dos fins importa a concessão dos meios (...).” (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.797-2 - Distrito Federal).

Ora, a Lei n.º 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público – LOMP), no seu art. 26, IV, dispõe caber ao Ministério Público “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, observado o disposto no art. 129, VIII, da Constituição Federal, podendo acompanhá-los”. Excluiu-se o inquérito policial que tenha por objeto apurar um crime cujo suposto autor tem prerrogativa de foro?

Comentando este artigo assim se pronunciou Pedro Roberto Decomain: “Trata-se de todas as providências preliminares que possam ser necessárias ao subsequente exercício de uma função institucional qualquer. Providências administrativas de âmbito interno poderão ser de rigor para o melhor exercício de alguma função institucional, em determinadas circunstâncias. Por força deste inciso, está o Ministério Público habilitado a tomá-las. Aliás, nem poderia ser diferente. É claro que a Instituição está apta a realizar todas as atividades administrativas que sejam indispensáveis ao bom desempenho de suas funções institucionais. Tal será uma direta consequência do princípio de sua autonomia administrativa, que orienta não apenas o funcionamento global da Instituição, mas também a sua atuação em cada caso concreto que represente exercício de suas funções institucionais.” (Grifo nosso).[17]

Continuando a análise da referida Lei Orgânica temos no seu art. 27, verbo ad verbum: “Art. 27 - Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito: I - pelos poderes estaduais e municipais; “II - pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta ou indireta; “(omissis). Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este artigo, cabe ao Ministério Público, entre outras providências: I - receber notícias de irregularidades, petições ou reclamações de qualquer natureza, promover as apurações cabíveis que lhes sejam próprias e dar-lhes as soluções adequadas; II - zelar pela celeridade e racionalização dos procedimentos administrativos.”

Vemos, destarte, que não há dificuldades em se admitir a requisição pelo Ministério Público de instauração de procedimentos administrativos investigatórios de natureza criminal (trate-se de qualquer crime, inclusive eleitoral), desde que haja a necessidade da apuração de determinado fato que, por sua vez, enquadre-se no leque institucional das atribuições ministeriais. Portanto, não podemos conceber que se diga ser defeso ao Ministério Público requisitar a investigação e a coleta de atos investigatórios para um futuro processo criminal, se houver justa causa, como se disse: indícios suficientes da autoria e prova da existência do crime eleitoral.                       

Costuma-se opor ao entendimento acima esposado o art. 144, § 4º. da Constituição Federal, cuja redação diz caber à Polícia Civil a apuração de infração penal, exceto a de natureza militar, ressalvada, também, a competência da União.

Ocorre que tal atribuição constitucional não é exclusiva da Polícia Civil (nem da Federal[18]), sendo esta a correta interpretação deste dispositivo constitucional, pois não se deve interpretar uma norma jurídica isoladamente, mas, ao contrário, deve-se utilizar o método sistemático, segundo o qual cada preceito é parte integrante de um corpo, analisando-se todas as regras em conjunto, a fim de que possamos entender o sentido de cada uma delas: “Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio.”[19]

A propósito, Karl Larenz, após advertir que se aplicam os princípios interpretativos gerais das leis também à interpretação da Constituição, ensina que “o contexto significativo da lei determina, em primeiro lugar, da mesma maneira, a compreensão de cada uma das frases e palavras, tal como também, aliás, a compreensão de uma passagem do texto é determinada pelo contexto.” Esclarece este autor que “uma lei é constituída, as mais das vezes, por proposições jurídicas incompletas – a saber: aclaratórias, restritivas e remissivas -, que só conjuntamente com outras normas se complementam numa norma jurídica completa ou se associam numa regulação. O sentido de cada proposição jurídica só se infere, as mais das vezes, quando se a considera como parte da regulação a que pertence.”[20]

Aliás, segundo Luiz Alberto Machado “o criminalista ortodoxo pensa e age, sem confessar e até dizendo o contrário, como se coexistissem dois ordenamentos jurídicos: um ordenamento jurídico-criminal e outro ordenamento para as demais ciências jurídicas.”[21]

Partindo-se desse pressuposto, não nos esquecemos que ao conceder exclusividade ao Ministério Público para a propositura da ação penal pública (art. 129, I), a Constituição Federal implicitamente outorgou à Instituição a possibilidade de requisitar inquérito policial para respaldar a respectiva peça acusatória.

Lênio Luiz Streck e Luciano Feldens escreveram: “Recorrentemente, aqueles que desafiam a legitimidade do Ministério Público para proceder a diligências investigatórias na seara criminal esgrimem o argumento de que tal possibilidade não se encontraria expressa na Constituição, locus político-normativo de onde emergem suas funções institucionais. Trata-se, na verdade, de uma armadilha argumentativa. Esconde-se, por detrás dessa linha de raciocínio, aquilo que se revela manifestamente insustentável: a consideração de que as atribuições conferidas ao Ministério Público são taxativas, esgotando-se em sua literalidade mesma. Equívoco, data venia, grave.”[22]

Ainda bem a propósito, veja-se a lição de Diego Diniz Ribeiro:

“Sendo assim, respaldando-se na teoria dos poderes implícitos, conclui-se que, se o constituinte atribuiu a uma determinada instituição uma atividade-fim, também está ele, ainda que implicitamente, outorgando-lhe a atividade-meio, pois, do contrário, aquela atividade restaria prejudicada, não passando a disposição legal que a previu de uma determinação vazia e sem efetividade prática. Sendo assim, de tal assertiva se extrai a conclusão lógica de que se o parquet pode o mais, que é a interposição da ação penal pública, também pode ele, ainda que de forma implícita, o menos, qual seja, a investigação criminal pré-processual, pois, do contrário, o permissivo constitucional que outorga ao MP a função titular da ação penal seria totalmente inócuo, não passando de mero discurso retórico.” (Boletim do IBCCrim nº. 121, dezembro/2002).

Da mesma forma pensa o já citado Marcellus Polastri Lima: “Como já salientamos, de há muito Frederico Marques defendia que o MP poderia, como órgão do Estado-administração e interessado direto na propositura da ação penal, atuar em atividade investigatória.”                                                   

Até Júlio Fabbrini Mirabete afirmava: “Como titular do jus puniendi, nada impede que o Ministério Público possa requisitar informações e documentos para instruir procedimentos (artigo 129, IX).”[23]

Objetamos também o seguinte: mesmo em se admitindo que a Lei Orgânica do Ministério Público não permitisse a requisição de inquérito policial (o que, absolutamente, não é verdade), ainda assim, por força do art. 80 da referida Lei Federal poderíamos utilizar, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar Federal nº. 75/93), que “não deixa margem de dúvidas quanto à operacionalização das investigações criminais diretas no âmbito do Ministério Público”, como argumenta Polastri, no livro já aludido (p. 91), referindo-se, com certeza (ainda que não o diga expressamente), aos arts. 7º., I e 8º. in verbis: “Art. 7º. - Incumbe ao Ministério Público da União, sempre que necessário ao exercício de suas funções institucionais: (...) II – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, podendo acompanhá-los e apresentar provas.” “Art. 8º. - Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência: (omissis) II – requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta.”

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Há vários sistemas jurídicos alienígenas que ao priorizarem em suas reformas processuais penais o fortalecimento do Ministério Público, passaram a permitir de maneira ampla a investigação criminal pelo parquet. No Direito comparado observamos a existência de dois sistemas principais: o inglês (a Polícia detém o poder de conduzir as investigações preliminares) e o continental (o Ministério Público conduz a investigação criminal).

Neste segundo sistema, encontramos, por exemplo, países como a Itália, Alemanha, França e Portugal. Na Alemanha, lê-se no Código de Processo Penal: “StPO § 160: (1) (omissis)(2). A Promotoria de Justiça deverá averiguar não só as circunstâncias que sirvam de incriminamento, como também as que sirvam de inocentamento, e cuidar de colher as provas cuja perda seja temível.(3). As averiguações da Promotoria deverão estender-se às circunstâncias que sejam de importância para a determinação das conseqüências jurídicas do fato. Para isto poderá valer-se de ajuda do Poder Judicial. § 161: Para a finalidade descrita no parágrafo precedente, poderá a Promotoria de Justiça exigir informação de todas as autoridades públicas e realizar averiguações de qualquer classe, por si mesma ou através das autoridades e funcionários da Polícia. As autoridades e funcionários da Polícia estarão obrigados a atender a petição ou solicitação da Promotoria.”

Na Itália não é diferente no seu “Codice di Procedura Penale”: “Art. 326 – O Ministério Público e a Polícia Judiciária realizarão, no âmbito de suas respectivas atribuições, a investigação necessária para o termo inerente ao exercício da ação penal.” “Art. 327 – O Ministério Público dirige a investigação e dispõe diretamente da Polícia Judiciária.”

Em Portugal, conforme lição de Germano Marques da Silva, “os órgãos de polícia criminal coadjuvam o Ministério Público no exercício das suas funções processuais, nomeadamente na investigação criminal que é levada a cabo no inquérito, e fazem-no sob a direta orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional (arts. 56 e 263).”[24] Ainda em solo lusitano, a Lei Orgânica do Ministério Público, no seu art. 3º., diz competir ao Ministério Público “dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades” e “ fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal.”

Em França não é diferente, à vista do art. 41 do respectivo Código de Processo Penal: “O Procurador da República procede ou faz proceder a todos os atos necessários à investigação e ao processamento das infrações da lei penal. Para esse fim, ele dirige as atividades dos oficiais e agentes da polícia Judiciária dentro das atribuições do seu tribunal.”                                                 

Diante de tudo quanto foi exposto não deveria o próprio órgão julgador (Tribunais, Tribunais Superiores ou mesmo, e principalmente, a Suprema Corte) presidir a investigação criminal de quem, após, será por ele julgado! É um absurdo...

Não esqueçamos que o Processo Penal funciona em um Estado Democrático de Direito como um meio necessário e inafastável de garantia dos direitos do acusado. Não é um mero instrumento de efetivação do Direito Penal, mas, verdadeiramente, um instrumento de satisfação de direitos humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado. Dentro desta perspectiva, o sistema acusatório é o que melhor encontra respaldo em uma democracia, pois distingue perfeitamente as três funções precípuas em uma ação penal, a saber: o julgador, o acusador e a defesa. Tais sujeitos processuais devem estar absolutamente separados (no que diz respeito às respectivas atribuições e competência), de forma que o julgador não acuse, nem defenda (preservando a sua necessária imparcialidade), o acusador não julgue e o defensor cumpra a sua missão constitucional de exercer a chamada defesa técnica[25].

Observa-se que no sistema acusatório estão perfeitamente definidas as funções de acusar, de defender e a de julgar, sendo vedado ao Juiz proceder como órgão persecutório e, principalmente, como gestor da prova ou de atos investigatórios. É conhecido o princípio do ne procedat judex ex officio, verdadeiro dogma do sistema acusatório. Nele, segundo o professor da Universidade de Santiago de Compostela, Juan-Luís Gómez Colomer, “hay necesidad de una acusación, formulada e mantenida por persona distinta a quien tiene que juzgar, para que se pueda abrir y celebrar el juicio e, consecuentemente, se pueda condenar”[26], proibindo-se “al órgano decisor realizar las funciones de la parte acusadora”[27], “que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregue do julgamento”[28].

Dos doutrinadores pátrios, talvez o que melhor traduziu o conceito do sistema acusatório tenha sido José Frederico Marques: “A titularidade da pretensão punitiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público, e não ao juiz, órgão estatal, tão-somente, da aplicação imparcial da lei para dirimir os conflitos entre o jus puniendi e a liberdade do réu. Não há, em nosso processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de acusar e a função jurisdicional. (...) O juiz exerce o poder de julgar e as funções inerentes à atividade jurisdicional: atribuições persecutórias, ele as tem muito restritas, e assim mesmo confinadas ao campo da notitia criminis. No que tange com a ação penal e à função de acusar, sua atividade é praticamente nula, visto que ambas foram adjudicadas ao Ministério Público.”[29]

É bem verdade que já houve no Brasil a chamada ação penal ex officio, prevista expressamente na Lei n.º 4.611/65 (revogada pela Lei nº. 9.099/95) e nos arts. 26 e 531 do Código de Processo Penal, onde se permitia que a ação penal fosse iniciada por Portaria da autoridade judiciária: era o chamado procedimento “judicialiforme” previsto para as contravenções penais e para as lesões e homicídios culposos com autoria conhecida nos primeiros quinze dias. Estes dois últimos artigos do código processual evidentemente não foram recepcionados pela nova ordem constitucional, à vista do art. 129, I da Carta Magna.[30]

Ainda como corolário dos princípios atinentes ao sistema acusatório, aduzimos a necessidade de se afastar o Juiz, o mais possível, da atividade persecutória[31]. Um dos argumentos mais utilizados para a admissão do Juiz na colheita da prova é a decantada busca da verdade real, verdadeiro dogma do processo penal[32]. Ocorre que este dogma está em franca decadência, pois hoje se sabe que a verdade a ser buscada é aquela processualmente possível, dentro dos limites impostos pelo sistema e pelo ordenamento jurídico.

Como ensina Muñoz Conde, “el proceso penal de un Estado de Derecho no solamente debe lograr el equilibrio entre la búsqueda de la verdad y la dignidad de los acusados, sino que debe entender la verdad misma no como una verdad absoluta, sino como el deber de apoyar una condena sólo sobre aquello que indubitada e intersubjetivamente puede darse como probado. Lo demás es puro fascismo y la vuelta a los tiempos de la Inquisición, de los que se supone hemos ya felizmente salido.”[33]

Com efeito, não se pode, por conta de uma busca de algo muitas vezes inatingível (a verdade...)[34] permitir que o Juiz saia de sua posição de supra partes, a fim de auxiliar, por exemplo, o Ministério Público a provar a imputação posta na peça acusatória. Sobre a verdade material ou substancial, ensina Ferrajoli, ser aquela “carente de limites y de confines legales, alcanzable con cualquier medio más allá de rígidas reglas procedimentales. Es evidente que esta pretendida ´verdad sustancial´, al ser perseguida fuera de reglas y controles y, sobre todo, de una exacta predeterminación empírica de las hipótesis de indagación, degenera en juicio de valor, ampliamente arbitrario de hecho, así como que el cognoscitivismo ético sobre el que se basea el sustancialismo penal resulta inevitablemente solidario con una concepción autoritaria e irracionalista del proceso penal”. Para o mestre italiano, contrariamente, a verdade formal ou processual é alcançada “mediante el respeto a reglas precisas y relativa a los solos hechos y circunstancias perfilados como penalmente relevantes. Esta verdad no pretende ser la verdad; no es obtenible mediante indagaciones inquisitivas ajenas al objeto procesal; está condicionada en sí misma por el respeto a los procedimientos y las garantías de la defensa. Es, en suma, una verdad más controlada en cuanto al método de adquisición pero más reducida en cuanto al contenido informativo de cualquier hipotética ´verdad sustancial´[35]”.

Não se pode permitir uma perigosa e desaconselhável investigação criminal determinada unicamente pelo Juiz. Não é possível tal disposição em um sistema jurídico acusatório, pois que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo[36] caracterizado, como diz Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”, ou seja, este sistema “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”[37], sob pena, como afirma Luiz Flávio Gomes, de se criar “uma monstruosidade, qual seja, a figura do juiz inquisidor, nascido na era do Império Romano, mas com protagonismo acentuado na Idade Média, isto é, época da Inquisição. (...) Não é da tradição do Direito brasileiro e, aliás, também segundo nosso ponto de vista, viola flagrantemente a atual Ordem Constitucional”.[38]

É evidente que o dispositivo da citada Lei Orgânica é teratológico, pois não se pode admitir que uma mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses, possa avaliar como “necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que não podem ficar nas mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração da justiça. (...) Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor’”.[39]

Parece-nos claro que há, efetivamente, uma mácula séria aos postulados do sistema acusatório, precipuamente à imprescindível imparcialidade[40] que deve nortear a atuação de um Juiz criminal. Como se disse acima, neste sistema estão divididas claramente as três funções básicas da Justiça Penal, quais sejam: o Ministério Público acusa, o advogado defende e o Juiz apenas julga, em conformidade com as provas produzidas pelas partes. “Este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas procesales. En la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem acentua Alberto Binder.[41]

Quanto à neutralidade, faz-se uma ressalva, pois não acreditamos em um Juiz neutro (como em um Promotor de Justiça ou um Procurador da República neutro). Há sempre circunstâncias que, queiram ou não, influenciam em decisões e pareceres, sejam de natureza ideológica, política, social, etc., etc. Como notou Eros Roberto Grau, “ainda que os princípios os vinculem, a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas.”[42] São inconfundíveis a neutralidade e a imparcialidade. É ingenuidade acreditar-se em um Juiz neutro, mas absolutamente indispensável um Juiz imparcial.

Um Magistrado imparcial, como afirmam Alexandre Bizzotto, Augusto Jobim e Marcos Eberhardt, implica em um “formal afastamento fático do fato julgado, não podendo o Magistrado ter vínculos objetivos com o fato concreto colocado à discussão processual. Coloca-se daí na condição de terceiro estranho ao caso penal. (...) Já a neutralidade é a assunção da alienação judicial, negando-se ingenuamente o humano no juiz. Este agente político partícipe da vida social sente (a própria sentença é um ato de sentir), age, pensa e sofre todas as influências provocadas pela sociedade pós-moderna. Afirmar que o juiz é neutro é ocultar uma realidade.”[43]

E aqui há um outro gravíssimo problema: como se sabe, os arts. 69, VI, 75, parágrafo único e 83 do Código de Processo Penal estabelecem como um dos critérios determinadores da competência exatamente a prevenção. Por ela, e em linhas gerais, qualquer ato praticado por um Juiz de Direito, ainda que anterior ao processo torna-o prevento (o Juízo, evidentemente). Entendemos que tais disposições não deveriam constar de um diploma processual de um Estado Democrático de Direito, pois a prevenção, longe de atrair a competência judicial, deveria excluí-la, visto que a prática deste ato judicial anterior ao processo criminal atinge inevitavelmente a imparcialidade do julgador. Não por menos que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos vem decidindo reiteradamente pela exclusão do julgador que de alguma forma interferiu na fase investigatória, segundo nos informa Aury Lopes Jr.

Para este autor, “sem dúvida, chegou o momento de repensar a prevenção e também a relação juiz/inquérito, pois ao invés de caminhar em direção à figura do juiz garante ou de garantias, alheio à investigação e verdadeiro órgão supra partes, está sendo tomado o caminho errado do juiz instrutor. E, mais: a imparcialidade do julgador está comprometida não só pela atividade de reunir material ou estar em contato com as fontes de investigação, mas pelos diversos pré-julgamentos que realiza no curso da investigação preliminar (como na adoção de medidas cautelares, busca e apreensão[44], autorização para intervenção telefônica[45], etc.).”[46]

O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já decidiu que “o princípio constitucional do justo processo legal manda que cada causa tenha um magistrado competente para decidi-la”, explicou. Neste julgamento, ao votar pela concessão do habeas corpus, o relator, Ministro Cézar Peluso afirmou que “o juiz já teria feito um pré-julgamento do réu ao receber a ação penal”. “Ele teve um contato com o réu que não foi superficial”. A sentença condenatória penal estaria, segundo o Ministro, “repleta de remissões aos atos das investigações prévias, além de ter opiniões anteriormente concebidas e expostas”. O Ministro argumentou que houve quebra da imparcialidade do julgamento. “Ele teve um contato com o réu que não foi superficial”, alegou Peluso. A sentença condenatória penal estaria, segundo o Ministro, “repleta de remissões aos atos das investigações prévias, além de ter opiniões anteriormente concebidas e expostas”. (Habeas Corpus 94641).

A propósito, importante transcrever, pelo brilhantismo do subscritor, artigo de Augusto Aras, Professor Doutor da Faculdade de Direito da UnB, Subprocurador-Geral da República e Ouvidor-Geral do Ministério Público Federal:

“No dia 30/12/2013, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) publicou parte das Instruções destinadas a explicitar a legislação eleitoral para o pleito de 2014. Dentre elas se encontra a Resolução nº 23.396 que dispõe sobre Crimes Eleitorais, abordando a atividade da polícia judiciária, a notícia-crime e o inquérito policial. Consta do art. 8º que “o inquérito policial eleitoral somente será instaurado mediante determinação da Justiça Eleitoral, salvo a hipótese de prisão em flagrante. “De logo, aventou-se a hipótese de o TSE ter vedado ao Ministério Público Eleitoral investigar e/ou requisitar a instauração de inquérito policial, a pretexto de que somente o juiz poderia fazê-lo. A Constituição Federal de 1988, seguindo a tradição, assegurou a harmonia e a independência entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Somente ao Legislativo cabe a edição de Leis, não se admitindo aos demais Poderes inovar o ordenamento jurídico, sob pena de usurpação. Outrossim, a Carta diz competir ao Executivo o poder de regulamentar a Lei, explicitando-a, para sua fiel execução. Igual competência tem o Judiciário Eleitoral para “expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código” Eleitoral, ora vigente desde 1965.Neste diploma, o art. 355 dispõe: “As infrações penais definidas neste Código são de ação pública”, cujo titular, nos termos do art. 129, I da CF/88, é o Ministério Público. A Lei Complementar 75/93 (Estatuto do Ministério Público da União) impõe a mesma atribuição ao parquet (art. 6º, V) e disciplina a função eleitoral (art. 72).A ordem jurídica impõe ao art. 8º uma interpretação conforme a Constituição para reconhecer a existência, validade e eficácia das investigações e requisições do MP Eleitoral, na esteira de toda a jurisprudência da Suprema Corte e do próprio TSE, tudo isso reafirmado pela soberania popular externada pelo legítimo representante do povo brasileiro, o Congresso Nacional, ao rejeitar a PEC 37.Neste aspecto, nada de novo no front!” (http://jornalggn.com.br/noticia/tse-nao-pode-avancar-nas-atribuicoes-do-mpf-por-augusto-aras).

Portanto, Senhores Ministros é preciso estudar o Direito Processual Penal à luz da Constituição Federal e parar com esta "mania" de ser Juiz-Inquisidor!

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. Quem investiga quem tem prerrogativa de função?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4117, 9 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32633. Acesso em: 19 abr. 2024.

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