3. Affectio Societatis
Já demonstramos, no capítulo antecedente, que certas sociedades anônimas encontram-se revestidas de um inequívoco caráter intuitu persone, caráter esse, que, como será demonstrado, implica necessariamente em reconhecer a inegável affectio que permeia estas sociedades.
Com efeito entende-se por affectio societatis, conforme a lição de Enrico Soprano, como "o desejo dos sócios de operar como membros da coletividade social, aderindo um ao outro, com o propósito de explorar o objeto social num mesmo caminho." [18]
O grande tratadista do direito comercial brasileiro J. X. Carvalho de Mendonça, em analise do instituto salienta, in verbis:
"Dizem comumente os tratadistas que os contratantes da sociedade devem ter a vontade de formá-la. Ulpiano denominou-a affectio societatis, exprimindo a intenção de reunir esforços para a realização do fim comum. Não há, porém, precisão nesta formula.
(...)
Melhor e mais exato será dizer que os sócios devem manifestar a vontade de cooperar ativamente para o resultado que procuram obter, reunindo capitais e colocando-se na mesma situação de igualdade. É indispensável à sociedade a identidade de interesses, a cooperação econômica, na frase de Rippert, ou a vontade de colaboração ativa dos sócios, na expressão de Thaller, tendo estes sempre em vista o fim comum, a realização de um enriquecimento pelo concurso de seus capitais e da sua atividade. Muito bem explicava o nosso João Monteiro que ‘na colaboração está a idéia visceral de toda sociedade’.
Se esta cooperação é evidente nas sociedades em nome coletivo, encontra-se, também, nas sociedades em comandita e nas anônimas, manifestando-se pela fiscalização dos comandatários, dos acionistas e do conselho fiscal." [19]
À essa constatação, que não é única em nossa doutrina, analisando o fenômeno diante das sociedades anônimas fechadas, vem somar-se a brilhante lição do Professor Fábio Konder Comparato:
"Se ainda é aceitável classificar a companhia aberta na categoria das sociedades de capitais, pelo seu caráter marcadamente institucional, a companhia fechada já apresenta todas as características de uma sociedade de pessoas, animada por uma affectio societatis que se funda no intuito personae. Ao contrário da simples consideração dos capitais, na companhia fechada prepondera, tanto entre acionistas quanto perante terceiros, a confiança e a consideração pessoal" [20]
Da lição do prof. Comparato, que é de clareza solar, extrai-se que o fundamento para aferir a existência da affectio societais em uma sociedade deve partir, necessariamente, da busca do caráter intuitu personae, pois é a constatação desse caráter que determinará a incidência daquele instituto.
É o intuitu personae, portanto, que determinará a existência de affectio em qualquer sociedade. Da mesma forma que será a constatação do aspecto institucional da sociedade que excluirá a ocorrência da affectio (Conforme explicitado no capítulo anterior).
4. Dissolução de Sociedade
Demonstrado que algumas sociedades anônimas podem ser consideradas intuito personae estando, portanto, animadas por um forte vínculo de affectio societatis, passaremos a analisar se a ruptura dessa affectio pode ser fundamento para a ação de dissolução de sociedade anônima.
As hipóteses de dissolução das sociedades anônimas, estão, com efeito, enumeradas no artigo 206 da lei 6.404/76, in verbis:
"Art. 206. Dissolve-se a companhia:
I - de pleno direito:
a) pelo término do prazo de duração;
b) nos casos previstos no estatuto;
c) por deliberação da assembléia geral (art. 136, X);
d) pela existência de um único acionista, verificada em assembléia geral ordinária, se o mínimo de dois não for reconstituído até à do ano seguinte, ressalvado o disposto no art. 251;
e) pela extinção, na forma da lei, da autorização para funcionar;
II - por decisão judicial:
a) quando anulada a sua constituição, em ação proposta por qualquer acionista;
b) quando provado que não pode preencher o seu fim, em ação proposta por acionistas que representem cinco por cento ou mais do capital social;
c) em caso de falência, na forma prevista na respectiva lei;
III - por decisão da autoridade administrativa competente, nos casos e na forma previstos em lei especial".
Não há, especificamente, no referido dispositivo, uma hipótese cristalina de dissolução de sociedade por quebra da affectio societatis. Todavia há uma para o pedido de dissolução judicial que pode comportar tal fundamento: é o que se infere da alínea b, do inciso II do artigo 206, ou seja "quando provado que não pode preencher o seu fim, em ação proposta por acionistas que representem cinco por cento ou mais do capital social".
Como bem salienta Luiz Leonardo Cantidiano, "a impossibilidade de a sociedade preencher seu fim é tema que se presta a inúmeras interpretações" [21]. E Prossegue o mestre:
"dentre as situações descritas pela doutrina, assim como pela jurisprudência, determinantes da impossibilidade de a companhia atingir os seus objetivos, temos aquela relativa ao término da affectio societatis, isso é, a existência de uma insuperável divergência entre dois grupos de acionistas. Tal divergência, mormente nas sociedades fechadas e familiares, é motivo bastante para impedir que a sociedade possa preencher os seus fins." [22]
Confira-se, também, no mesmo sentido, trecho do parecer, já anteriormente citado, elaborado pelo Professor Modesto Carvalhosa, in verbis:
"Entre as causas mais comuns que justificam a dissolução de sociedade, doutrina e jurisprudência pátrias apontam a desinteligência entre os sócios, inviabilizando a continuidade do empreendimento comum.
Temos, assim, o insanável rompimento da affectio societatis, elemento caracterizado pela vontade de colaboração dos sócios. Quebrado tal vínculo representado pela affectio societatis e, portanto, deixando de existir os elementos essenciais de confiança e colaboração à permanência da sociedade, torna-se inevitável a sua dissolução."
Assim, seguindo a linha de raciocínio dos citados juristas, entendemos que a ruptura da affectio societatis pode encaixar-se na hipótese em que fica "provado que [a sociedade] não pode preencher o seu fim", quando há uma insuperável discordância entre dois grupos de acionistas, que demonstre a absoluta incompatibilidade recíproca de manutenção da convivência, tornando-se impossível manter a sociedade operando para realizar o seu objeto social [23].
Resta saber, portanto, em que consistiria essa prova de que a sociedade não pode preencher o seu fim que demonstraria a ruptura da affectio societatis.
Dentre as hipóteses de fato que podem determinar a ruptura da affectio societatis, encontram-se, dentre outras, as seguintes: (i) quando, em uma sociedade composta por dois grupos nitidamente definidos, o que detém a vantagem de uma pequena maioria domina a sociedade e a dirige na conformidade de seus particulares interesses [24]; ou (ii) quando os controladores tomam atitudes no sentido de diluir a participação acionária dos minoritários, através de desnecessários aumentos de capital e errônea fixação do preço de emissão das ações.
Basicamente, podemos considerar que esses fatos estarão, na maioria das vezes, relacionados à opressão perpetrada pelo bloco controlador contra os minoritários.
Mais rica é a discussão no âmbito das operações de reorganização societária envolvendo as sociedades Holding. Essas sociedades são criadas para permitirem a melhor gestão ou organização dos negócios sociais envolvendo grupos empresariais. Visam, portanto, a otimizar a estrutura e não a alterar a composição do quadro social. Ocorre que, em determinadas situações, a transferência de ações dos acionistas para sociedades Holding pode gerar um desequilíbrio nas relações societárias. Esse desequilíbrio é muitas vezes corrigido por meio de acordos de acionistas. Mas, não sendo corrigido, e restando alteradas as relações de poder dentro da companhia, parece-nos claro que restará rompida a affectio.
Salta aos olhos a ruptura da affectio societatis na hipótese sob análise. As Holding são constituídas, necessariamente, cum intuitu personae, isso porque, sem a confiança mútua, sem o interesse comum, ninguém transfere gratuitamente ações a uma outra sociedade.
Essas são, portanto, algumas hipóteses em que pode-se pedir a dissolução judicial de sociedade anônima por quebra da affectio societatis.
Todavia, é preciso frisar que a ação de dissolução é o remédio extremo, e será certamente repudiado pelo Poder Judiciário quando houver outro meio para o sócio descontente retirar-se da companhia.
É por esse motivo que o acionista – ao requerer a dissolução judicial – não pode estar diante de nenhuma das hipóteses de direito de recesso previstas na Lei 6.404/76, e elencadas por Modesto Carvalhosa:
"1) criação de classes de ações preferencias ou aumento de classe existente sem guardar proporção com as demais, salvo se já previstas ou autorizadas pelo estatuto (art. 137); 2) alterações nas preferenciais, vantagens e condições de resgate ou amortização de uma ou mais classes de ações preferenciais ou criação de nova classe mais favorecida (art. 137); 3) redução de dividendo obrigatório (art. 137, III); 4) mudança do objeto da companhia (art. 137); 5) fusão da companhia ou sua incorporação em outra (arts. 137, IV, 223, 225 e 230); 6) incorporação de companhia controlada ou sua fusão (art. 264); 7) cisão de companhia aberta, se não for cumprido o previsto no § 3º do art. 223; 8) incorporação de todas as ações para constituição de subsidiária integral (art. 252); 9) participação da companhia em grupo de sociedades (arts. 265 270); 10) transformação da companhia (arts. 221 e 298, III); 11) desapropriação de ações de controle de companhia nos termos e para os fins previstos no art. 236; e, 12) aquisição por companhia aberta, do controle de sociedade mercantil, nos termos do art. 256, § 2º." [25]
Nesse passo, é preciso frisar que a nossa jurisprudência vem aceitando o pedido de dissolução de sociedades anônimas em situações como as descritas, como se infere dos arestos abaixo transcritos:
"SOCIEDADE COMERCIAL – Anônima ‘holding’ – Objetivos não atingidos – Lucros nunca distribuídos – Prejuízos constantes – Discórdia – Dissolução pleiteada – Ação procedente.
"A discórdia entre acionistas em sociedade anônima constituída por elementos da mesma família e, ainda, a impossibilidade de atingir seus objetivos e os prejuízos justificam sua dissolução" (Ac. V.u. da 5ª C.C. do TJSP – Ap. Civ. nº 3.345-1 – rel. Des. Joaquim Francisco – j. 21.05.1981 – RT nº 554, pp. 74-76).
"SOCIEDADE ANÔNIMA – Capital Fechado – Dissolução Parcial – Admissibilidade – Ruptura da ‘Affectio Societatis’ – Ação Procedente.
"A sociedade anônima fechada é constituída essencialmente ‘cum intuitu personae’, para cuja formação não se prende, exclusivamente, à constituição do capital, mas também, e, sobretudo, a qualidade pessoal dos sócios ou acionistas, que, por vezes, mantêm uma relação de parentesco, por isso que chamada, também, de sociedade anônima familiar. Assim, diluída a ‘affectio societatis’, isto é, não existindo mais a confiança mútua entre alguns acionistas, não há como obrigá-los a permanecer em sociedade. Recurso provido" (Ac. V.m. do TJSP – Ap. Civ. nº 003.299-4/0 – rel. Des. Mohamed Amaro – j. 19.02.1998 – in Paulo de Lorenzo Messina e Paula Forgioni. "Sociedades por Ações. Jurisprudência. Casos e Comentários". São Paulo, RT, 1.999, pp. 316-318).
Do que foi exposto, podemos inferir que se afigura possível o requerimento de dissolução de sociedade anônima em razão da quebra da affectio societais "quando provado que [a sociedade] não pode preencher o seu fim, em ação proposta por acionistas que representem cinco por cento ou mais do capital social"; para tanto é preciso verificar se a sociedade em questão está revestida do caráter intuitu personae e animada por uma affectio societatis, não sendo em qualquer hipótese possível recorrer-se ao remédio da ação de dissolução quando se estiver diante de uma das hipóteses do direito de recesso.
5. Sociedade Anônima Aberta
Conforme se explicitou no capítulo antecedente – diante da análise de nossa doutrina e de nossa jurisprudência – o pedido de dissolução de sociedade anônima por ruptura da affectio societatis pode-se enquadrar na hipótese do artigo 206, inciso II, alínea b da lei 6.404/76. É imperioso afirmar que o referido dispositivo não faz qualquer distinção no que se refere às sociedades anônimas abertas ou fechadas. Não há, portanto, na lei, qualquer limitação a utilização da via judicial do pedido de dissolução quanto as abertas.
Segundo a doutrina de Modesto Carvalhosa, sociedade anônima aberta é aquela em que:
"a companhia procura recursos de capital próprio (ações) ou de terceiros (debêntures) junto ao público, oferecendo a qualquer pessoa desconhecida ações e debêntures de sua emissão." [26]
Naturalmente que nessa espécie de sociedade será mais difícil a existência de affectio societatis, porque, havendo pulverização do capital social, através da negociação das ações em Bolsa, não se poderá falar de intuito personae.
Ocorre que, segundo o art. 4° da Lei 6.404/76, o requisito para que uma companhia seja considerada aberta é o de que "os valores mobiliários de sua emissão estejam" "admitidos à negociação em Bolsa ou no mercado de balcão", e não que esses valores sejam efetivamente negociados.
Considerando esse fato, e o de que frequentemente são constituídas sociedades abertas apenas para atender a requisitos legais — como a emissão pública de debêntures —, sem a efetiva negociação em Bolsa ou balcão das ações da companhia, não se pode afastar a hipótese de uma sociedade anônima de capital aberto ser constituída intuito personae.
Nesse passo, vale uma consideração de suma importância ao presente trabalho monográfico. No correr da presente exposição vem-se salientando insistentemente a importância que deve ser dada à analise dos fatos societários, da estrutura e do funcionamento interno da sociedade — sem os quais é impossível a averiguação da existência da affectio em determinada sociedade. Não é de forma diferente que reconheceu o E. Superior Tribunal de Justiça:
"Processo Civil e Comercial. Recurso especial. Admissibilidade. Sociedade Anônima. Dissolução.
Ruptura da affectio societatis constitui questão que apresenta contornos fáticos
, atraindo, assim, a incidência da Súmula nº 07. A falta de lucratividade ajusta-se à hipotese de dissolução do art. 206, II, "b", da Lei de Sociedades Anônimas, desde que reponte o malogro no intento de lucro, o que não foi reconhecido pelo acórdão, deixando o fundamento em que se estabeleceu entrever causa conjuntural. Recurso não conhecido. (STJ – Terceira Turma – Rel. Min. Costa Leite – D.J. Publ. 03 de agosto de 1998.) (grifamos)Tal acórdão vem corroborar o que tem sido dito no presente trabalho: a questão da dissolução de sociedade anônima por quebra da affectio societatis é questão de fato. Portanto, não revela-se de todo impossível, muito ao contrário, a hipótese de uma companhia aberta em que possa haver, e desaparecer, a affectio societatis.
Como a questão é, sem sombra de dúvida, fática e não há na Lei de Sociedades Anônimas qualquer disposição que limite a utilização do instituto da dissolução às anônimas fechadas, parece-nos lógico que o pedido de dissolução de companhia aberta torna-se não só possível mas perfeitamente viável.
No entanto, da mesma forma que combatemos veementemente a petição de princípio de que sociedades anônimas são desprovidas de affectio societatis, também não podemos, do outro lado, argumentar que as sociedades anônimas abertas podem, indistintamente, ser dissolvidas em razão da ruptura da affectio societatis. Até por que, como se disse, essa será uma questão de fato.
Logo, além de todos requisitos apontados no capítulo anterior que viabilizariam o pedido de dissolução judicial com a base na ruptura da affectio societatis às sociedades anônimas de um modo geral, deve-se acrescentar, no que se refere especificamente às abertas, um outro requisito, qual seja; a procedência do pedido de dissolução não pode atingir o interesse de quem tenha investido sua poupança na empresa.
Em outras palavras, a sociedade anônima de cunho institucional, com as ações pulverizadas em bolsa, que se utiliza da poupança popular para se financiar, não poderá ser objeto do pedido de dissolução por falta de affectio societatis, que, nesse caso, iria contra o interesse público. Até porque, nesta hipótese, o acionista dissidente poderia facilmente vender suas ações no mercado, sem causar nenhum dano no corpo social.
Por outro lado, há sociedades anônimas apenas formalmente abertas[27] que não possuem ações negociadas em bolsa, nas quais o acionista dissidente pode encontrar sérias dificuldades em retirar-se da sociedade. Nestas situações, não vemos porque estaria ele impossibilitado de recorrer à ação de dissolução.
Do que foi exposto, reafirma-se que a questão versa iminentemente sobre fatos, que a lei não veda o pedido de dissolução, e, que, desse modo, não se pode excluir peremptoriamente essa pretensão do acionista da companhia aberta.