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Dissolução de sociedade anônima por quebra da affectio societatis

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01/11/2002 às 00:00
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6. Condições da ação

No que se refere à análise processual da ação de dissolução da sociedade anônima por quebra da affectio societatis, é preciso estudar os conceitos de interesse, legitimidade e possibilidade jurídica do pedido. Analisaremos separadamente cada um dos requisitos para a ação de dissolução de sociedade anônima.

a) Interesse de agir

Para se requerer o provimento jurisdicional é imperioso que se tenha interesse. Para se aferir esse interesse o jurisdicionado precisa demonstrar a necessidade da prestação e postulá-la por meio da providência adequada. É o binômio necessidade e adequação, de que nos falam Antonio Carlos de Araujo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido R. Dinamarco confira-se:

"Essa condição da ação assenta-se na premissa de que, tendo embora o Estado o interesse no exercício da jurisdição (função indispensável para mantes a paz e a ordem na sociedade), não lhe convém acionar o aparato judicial sem que dessa atividade de possa extrair algum resultado útil. É preciso, pois, sob esse prisma, que, em caso concreto a prestação jurisdicional seja necessária e adequada Repousa a necessidade da tutela jurisdicional na impossibilidade de se obter a satisfação do alegado direito sem a intervenção do Estado (ou porque a parte contrária se nega a satisfazê-lo, sendo vedado ao autor o uso da autotutela, ou porque a própria lei exige que determinados direitos só possam ser exercidos mediante prévia declaração judicial – são as chamadas ações constitutivas necessárias no processo civil, e a ação penal condenatória, no processo penal.

(...) Adequação é a relação existente entre a situação lamentada pelo autor ao vir a juízo e o provimento jurisdicional concretamente solicitado. O provimento, evidentemente, deve ser apto a corrigir o mal de que o autor se queixa, sob pena de não ter sentido."[28] (grifamos)

Assim, para propor a ação de dissolução de sociedade anônima é imprescindível que se esteja – como já salientado no capítulo 4 – diante de uma situação em que não haja hipótese de direito de recesso, e, além disso, em que o acionista não possa retirar-se da companhia pela simples venda de sua posição acionária, uma vez que, nessas hipóteses ventiladas, não haveria a necessidade de postular-se a dissolução.

Por outro lado, é fundamental a utilização do meio processual adequado. A ação de dissolução é ação ordinária que, em razão de tratar-se fundamentalmente de questão fática, envolve um prolongado procedimento probatório, com uma profunda análise de documentos, e muitas vezes com inquirição de testemunhas.

Vele destacar, ainda, que o procedimento a ser adotado nas ações de dissolução de sociedades – conforme disposto no artigo 1218, inciso VII do código de processo civil – é o procedimento do antigo Código de 1939, artigos 655 a 674[29].

Assim, a dissolução de sociedades anônimas está regulada pelo disposto no art. 674 do Código de 1939, que dispõe, in verbis:

"Art. 674. A dissolução das sociedades anônimas far-se-á na forma do processo ordinário.

Se não for contestada, o juiz mandará que se proceda a liquidação, na forma estabelecida para a liquidação das sociedades civis ou mercantis"

Portanto às sociedades anônimas adota-se o procedimento ordinário para a dissolução.

b.1) Legitimidade ativa

É legitimado ativo para propor a ação de dissolução é o sócio dissidente que, como reza o disposto no art. 206 da lei 6.404/76, detenha no mínimo 5% do capital social.

Todavia há acórdãos reconhecendo legitimidade para autores que detenham menos de 5% do capital social. Tais acórdão, entretanto, em atenção ao princípio da preservação da empresa adotam como solução a dissolução parcial, com a conseqüente apuração de haveres do sócio dissidente — de que cuidaremos a seguir. Veja-se o teor das ementas das decisões:

"SOCIEDADE ANÔNIMA – Dissolução total – Pretensão formulada por acionistas detentores de menos de cinco por cento do capital social – Inépcia da inicial inocorrente – Dissolução parcial, mediante a retirada dos autores e recebimento dos valores correspondentes à participação no capital acionário como medidas adequadas – Sentença confirmada" (Ac. Un. do TJSP – Ap. Civ. nº 260.594-1 – rel. Des. Toledo César – j. 04.03.1997 – in Paulo de Lorenzo Messina e Paula Forgioni. "Sociedades por Ações. Jurisprudência. Casos e Comentários". São Paulo, RT, 1.999, pp. 323-324/RJTJESP nº 198, p. 166)

"Sociedade Anônima – Pedido de dissolução por sócio minoritário – Quebra da ‘affectio societatis’ – Prosseguimento da sociedade, com retirada do sócio minoritário – Apuração dos haveres em função do valor real do ativo e passivo. Recurso parcialmente provido.

"(...) Absurdo, do ponto de vista social, cogitar-se da dissolução de sociedade de tal porte e com tal pujança em razão de querela entre sócios, particularmente quando o insatisfeito detém pouco mais de 4% (quatro por cento) do capital social. A questão é de percepção imediata e dispensa maiores demonstrações.

"A solução está, portanto, na preservação da empresa e da sociedade, com a dissolução parcial desta, saindo os autores.

"A r. sentença só merece reparo no que diz respeito à forma contábil de apuração dos valores correspondentes aos sócios retirantes.

"Embora constituída sob forma anônima, trata-se de sociedade fechada, constituída por dois únicos grupos familiares ou econômicos, mais próxima, portanto das sociedades de pessoas de que das típicas sociedades de capital."

"(...) Devem-se, assim, adotar os critérios vigentes para a dissolução parcial das sociedades de pessoas, conforme a farta jurisprudência constante das razões e do parecer do Prof. Modesto Carvalhosa" (Ac. Un. da 8ª C.C. do TJSP - Ap. Cív. n.º 217.352-1/7 - Rel. Des. José Osório – j. 03.05.1995)

b.2) Legitimidade passiva

São legitimados para integrar o polo passivo da lide: i) a sociedade que se pretende dissolver; ii) e os sócios que geraram a controvérsia.

Os sócios figuram no polo passivo porque é justamente em relação a eles que vislumbra-se a ruptura da affectio. Já a sociedade deve figurar porque, como ela possui personalidade jurídica e existência distinta da dos seus membros, conforme dispõe o art. 20 do Código Civil, e a ação de dissolução tem por objetivo final a sua extinção, logicamente possui ela interesse na demanda. Até porque, como ensina Alexandre Freitas Câmara:

"A primeira condição da ação é a legitimidade das partes, também designada legitimatio as causam. Esta pode ser definida como a pertinência subjetiva da ação. Em outros termos, podemos afirmar que têm legitimidade para a causa os titulares da relação jurídica deduzida, pelo demandante, no processo."[30]

Assim, como titulares da relação deduzida em juízo, a sociedade e os acionistas são partes legitimas para figurar na demanda.

c) Possibilidade jurídica do pedido

De tudo quanto foi demonstrado até agora não resta duvidas quanto à possibilidade jurídica do pedido de dissolução de sociedade anônima com fulcro na ruptura da affectio societatis. Isso porque, em tese, o pedido é tutelado pelo direito. Repita-se, ex-abundantia, que a procedência ou não de uma demanda dessa natureza terá relação diretamente com os fatos.Apurada a discórdia entre os sócios que inviabilize a continuação da atividade empresarial, a demanda deverá ser julgada procedente.

A possibilidade jurídica do pedido constitui-se, segundo a doutrina processual, na "tutelabilidade abstrata do pedido do autor. Em outras palavras cumpre ao autor formular pedido que, em tese (isto é, abstraida a situação por ele levada a juízo), possa ser concedido"[31].

Vale destacar que, especificamente à ação de dissolução de sociedade anônima, nossos Tribunais vêm reconhecendo a possibilidade jurídica do pedido, confira-se:

"Ação de dissolução de Sociedade. Dissolução Parcial – Sociedade anônima. Impossibilidade Jurídica do Pedido – Incorrência.... Assim, inexistindo a ‘affectio societatis’ e constituindo ela no suporte da sociedade, deve-se autorizar a sua dissolução com o afastamento de alguns sócios" (Ac. Un. da 3ª C.C. do TAPR - Ap. Cív. nº 78.835-6 – Juiz Rel. Lídio de Macedo – apud Luciano Campos de Albuquerque. "Dissolução das Sociedades", Curitiba, JM, 1999, p. 190).

Por fim, não há que se falar em impossibilidade jurídica quando há no ordenamento, ex-vi do art. 206 da Lei 6.404/76 a previsão legal do provimento jurisdicional referente ao pedido de dissolução de sociedade anônima.

d) Natureza jurídica da sentença

Segundo Candido Dinamarco:

"Vulgarmente chamada ‘ação de dissolução de sociedade’, a demanda movida por sócios retirantes ou excluídos, ou por herdeiros do pré-morto, é na realidade uma autêntica ação condenatória que tem por objeto a pecúnia equivalente à participação dos primeiros ou do autor da herança no patrimônio líquido da sociedade. Não é uma ação constitutiva, como o nome falsamente sugere, simplesmente porque nada dissolve"[32]

Todavia, não coadunamos desse entendimento. A sentença que acolhe o pedido de dissolução – parcial ou não – de sociedade anônima tem natureza dúplice, constitutiva e condenatória.. Nesse sentido, confira-se a lição de Pontes de Miranda:

"A dissolução dependente de sentença tem de ser decretada. A ação é constitutiva negativa com elemento condenatório assaz forte. A eficácia, ex nunc." [33] (grifamos)

Isso porque, além de condenar a dar dinheiro, a sentença que julga procedente a ação de dissolução de sociedade, inegavelmente, dissolve o vinculo entre o acionista dissidente e a sociedade

Assim, percebe-se, sem muito esforço, que em razão de a sentença, além de condenar ao pagamento de dinheiro, criar uma nova situação na qual se dissolve a relação entre o sócio retirante e a sociedade, ela possui natureza, inequivocamente, condenatória e constitutiva.


7. Dissolução Parcial

Finalmente o presente trabalho não estaria completo se não nos referíssemos à excelente construção doutrinária, largamente admitida pelos nossos Tribunais, da dissolução parcial das sociedades. Esta solução tem em muito beneficiado a sociedade e os sócios dissidentes, pois abre a possibilidade da continuação da atividade empresarial.

Conforme Mauro Rodrigues Penteado, autor de excelente monografia sobre o tema, são três os motivos que levaram ao acolhimento da tese:

"o primeiro deles de índole constitucional, na medida em que entre os postulados que informam nossa ordem econômica figuram o da justiça social e o da função social da propriedade (CF de 1988, art. 170), e é indisputável que às sociedades mercantis está assinada tal função (Lei. N.6.404/76, art. 116, parágrafo único); em segundo lugar e consequentemente porque, tal seja a participação do quotista na sociedade e o perfil patrimonial e organizacional desta, a resilição parcial com a retirada do sócio poderá levá-la à dissolução e liquidação total, fora das hipóteses em que a lei sanciona essa solução drástica, dada a impossibilidade do prosseguimento das atividades sociais com o desfalque dos valores necessários ao pagamento dos haveres – o que importa na negação do princípio que inspirou tal elaboração doutrinária; por fim, o tipo societário em tela pode ter feição predominantemente capitalista, que o aproxima da própria sociedade por ações, fechada – e, nesse caso, a admissibilidade da dissolução parcial eqüivale praticamente a deferir o direito de recesso ou de retirada, sem que se verifique uma das hipóteses, taxativas, previstas em lei"[34].

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Razões de cunho eminentemente econômico alicerçam a tese que defere, de forma indireta, o direito de recesso quando não previsto expressamente em lei. Trata-se de uma solução equânime que permite resolver a maior parte dos problemas inter-sócios, sem maiores danos para a empresa, preservando empregos e a própria circulação de riquezas na sociedade.

Confira-se o entendimento de nossa jurisprudência:

"Sociedade Anônima – Pedido de dissolução por sócio minoritário – Quebra da ‘affectio societatis’ – Prosseguimento da sociedade, com retirada do sócio minoritário – Apuração dos haveres em função do valor real do ativo e passivo. Recurso parcialmente provido.

"(...) Absurdo, do ponto de vista social, cogitar-se da dissolução de sociedade de tal porte e com tal pujança em razão de querela entre sócios, particularmente quando o insatisfeito detém pouco mais de 4% (quatro por cento) do capital social. A questão é de percepção imediata e dispensa maiores demonstrações.

"A solução está, portanto, na preservação da empresa e da sociedade, com a dissolução parcial desta, saindo os autores.

"A r. sentença só merece reparo no que diz respeito à forma contábil de apuração dos valores correspondentes aos sócios retirantes.

"Embora constituída sob forma anônima, trata-se de sociedade fechada, constituída por dois únicos grupos familiares ou econômicos, mais próxima, portanto das sociedades de pessoas de que das típicas sociedades de capital.

"(...) Devem-se, assim, adotar os critérios vigentes para a dissolução parcial das sociedades de pessoas, conforme a farta jurisprudência constante das razões e do parecer do Prof. Modesto Carvalhosa" (Ac. Un. da 8ª C.C. do TJSP - Ap. Cív. n.º 217.352-1/7 - Rel. Des. José Osório – j. 03.05.1995)

Percebe-se, portanto que a dissolução parcial atende tanto a questão do interesse social na continuidade da empresa quanto a posição do acionista dissidente, minoritário, que sem a ação de dissolução não teria como desfazer-se de sua participação acionária. Confira-se, a esse propósito, a lição de Mauro Rodrigues Penteado:

"Nas companhias fechadas – sobretudo aquelas típicas de nosso meio empresarial, com reduzido quadro acionário, composto por núcleo de ações detido por titular que dita a maioria na assembléia, bem estruturado e defendido por pactos parassociais – o acionista minoritário fica à mercê dos acionistas controladores para defazer-se de sua participação acionária, que dificilmente poderá interessar a terceiros. O único corredor de escape, estreitíssimo, reside na faculdade de pleitear a dissolução judicial da sociedade, possível apenas em circunstâncias anômalas e quase sempre obstaculizadas pelos Tribunais, nas quais caber-lhe-á o difícil senão insuperável ônus de provar que a companhia não preenche os seus fins (cf. item 69, abaixo).

"Este é, seguramente, um dos motivos que vem levando nossos pretórios a estender a construção doutrinária da dissolução parcial também para as sociedades por ações, fechadas, dada a identidade da ratio essendi do reconhecimento dessa prerrogativa, nas sociedades de pessoas e nas limitadas"[35]. (grifamos)

Assim, não restam dúvidas de que a dissolução parcial é um recurso de extrema valia que atende aos interesses das partes direta ou indiretamente envolvidas.

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Sobre o autor
Leonardo Corrêa

advogado no Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRÊA, Leonardo. Dissolução de sociedade anônima por quebra da affectio societatis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3408. Acesso em: 25 abr. 2024.

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