Contrato Social e Sustentabilidade Societária

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As disposições do contrato social de uma sociedade limitada são determinantes para a sua sustentabilidade. O uso não criterioso de minutas padrão pode acarretar toda sorte de problemas precisamente quando o contrato social deveria propiciar soluções.

Quem funda sociedade não compõe interesses contrapostos, traça linhas comuns para interesses que são os mesmos, ou que vão ser os mesmos.” (MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, 3ª ed., tomo 38, p. 6)

Constata-se assiduamente que os contratos sociais utilizados por um grande número de sociedades limitadas não refletem de forma efetiva o acordo, a intenção e as necessidades dos sócios. Ao invés de darem a roupagem jurídica adequada e retratarem com fidelidade, clareza, detalhes e especificidade o que os sócios vislumbram para a sua sociedade, com frequência transformam-se em mero instrumento para que se consiga formalizar a existência da sociedade. Em outras palavras, o contrato social perde a função fundamental de um contrato, sendo-lhe atribuído o papel inapropriado de ser tão somente o documento a ser utilizado para suprir uma exigência legal erroneamente percebida como meramente burocrática.

Sem dúvida, é fato notório que nosso País possui um sistema em que a constituição e a completa formalização de uma sociedade são excessivamente demoradas e repletas de percalços. Seja como consequência deste fator, seja em decorrência da escassez de recursos para a contratação de um advogado especializado, ou por qualquer outro motivo, muitas vezes, os empresários, ansiosos por fazer aquilo que lhes é afeto – ou seja, empreender – e desconsiderando a complexidade envolvida nos passos que estão dando, acabam por deixar de dedicar a devida atenção a este importante instrumento jurídico que regulará as suas relações e a vida desta terceira pessoa, a sociedade.

Não é incomum, por exemplo, que sejam utilizadas as minutas padrão de escritórios de contabilidade, sem qualquer adaptação relevante para a realidade do negócio almejado pelos sócios com a constituição de uma sociedade. Tal ocorre não somente com microempresas e empresas de pequeno porte, como seria provavelmente mais lógico de se pressupor, mas também com sociedades com objeto e capital mais ambiciosos.

Como sói ocorrer em outras áreas do Direito, enquanto tudo caminha bem, a inadequação e a fragilidade das disposições do contrato social assim adotado não costumam ser evidentes. Pelo contrário, geralmente vêm à tona nos piores momentos, precisamente quando a robustez de uma boa redação contratual deveria constituir a essência da salvaguarda dos sócios e da sociedade. Por exemplo, quando há perspectivas distintas ou dissidência entre os sócios com relação a aspectos significativos da vida da sociedade (necessidade de realização de aportes de capital ou investimentos, inclusão ou exclusão de atividades no objeto social etc.), quando a sociedade ou os sócios enfrentam dificuldades financeiras, ou quando ocorre efetiva ruptura na affectio societatis.

Com base nestas colocações introdutórias, o presente artigo chama a atenção, sem qualquer pretensão de exaustão, para alguns elementos importantes que devem merecer a atenção e a cautela dos sócios em suas negociações com vistas à constituição de uma sociedade limitada e na elaboração do contrato social como instrumento que as reflita com exatidão.

O primeiro elemento que os sócios tendem a considerar é o objeto social, cuja consecução será objetivada pela sociedade. Surpreendentemente, no entanto, não é incomum que a própria cláusula do objeto social seja incompleta, ambígua ou mesmo apresente algum grau de descompasso com a intenção dos sócios. Por vezes, é excessivamente genérica e, em outros casos, é excessivamente restritiva, “engessando” a sociedade.

Outro elemento a considerar é o arcabouço jurídico que regerá a sociedade. É somente a análise das características específicas de cada caso que indicará com propriedade se, em caráter supletivo, a sociedade deve ser regida pela Lei das Sociedades por Ações ou pelas normas relativas às sociedades simples.

Outra área que frequentemente não é explorada pelos sócios é a autorização do artigo 1.055 do Código Civil para que as quotas em que o capital social se divide sejam iguais ou desiguais. Em uma gama de empreendimentos, a adoção de quotas desiguais pode permitir uma estrutura similar à das golden shares, com poderes diferenciados.

Ainda com relação ao capital social, este deve ser suficiente ao desenvolvimento das atividades da sociedade, levando em conta as peculiaridades da sua atuação almejada. Assim, caso pretenda contratar com a Administração Pública, poderá haver exigência de capital social mínimo. Igualmente, parceiros comerciais poderão ter a legítima expectativa de que o capital da sociedade seja condizente com a atuação mercantil desejada. Como outro lado da moeda, se o capital social for excessivo, a sua posterior redução observará um procedimento consideravelmente rigoroso, em que os credores quirografários da sociedade terão voz.

Convém também destacar que, segundo o sistema adotado pelo legislador no Código Civil, o direito de preferência na alienação não se pressupõe, ao passo que o direito de preferência na subscrição é de certa forma relativo. Desta forma, é importante enfatizar que, caso o contrato social não contenha previsão específica para reger a matéria diversamente, os sócios estarão livres para ceder a totalidade ou parte das suas quotas a outro sócio, sem a necessidade de conferir qualquer direito de preferência proporcional aos demais. A cessão das quotas também poderá, na hipótese aventada, ocorrer para qualquer terceiro estranho à sociedade se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social.

Por sua vez, com relação ao direito de preferência na subscrição, a lei somente prevê o seu exercício proporcional no prazo de trinta dias após a deliberação de aumento do capital, aplicando-se, ainda, à cessão deste direito as regras relativas ao direito de preferência na alienação. Haja vista a afeição societária que congrega os sócios na direção de um objetivo mercantil, pode ser absolutamente fundamental que o contrato social preveja ambos direitos de preferência e, possivelmente, estratégias que envolvam mecanismos de direito ou obrigação de venda conjunta, conhecidos, respectivamente, como direitos de tag along e drag along. Nas sociedades limitadas regidas supletivamente pela Lei das Sociedades por Ações, tais direitos também podem ser contemplados no âmbito de um acordo de quotistas, o qual deverá ser arquivado tanto no Registro de Comércio, quanto na sede da sociedade.

Além disso, se o direito de preferência e o procedimento de alienação de quotas forem objeto de regulamentação no âmbito do contrato social, não basta a sua mera indicação. É imprescindível que todo o respectivo procedimento seja previsto minuciosamente, incluindo a realização de notificações, seus prazos e as informações que devem constar destas (com especial destaque para a identidade do potencial terceiro adquirente, o valor ajustado para a alienação, a forma de pagamento, eventuais garantias e as demais condições do negócio), bem como o prazo para exercício do direito.

No mesmo sentido, tendo em vista os seus efeitos práticos posteriores, é necessário regular com o devido cuidado a possibilidade – ou não – de qualquer forma de oneração das quotas representativas do capital social.

A designação dos administradores da sociedade também deve ser objeto de especial cautela. Em vista do preceito do parágrafo único do artigo 1.060 do Código Civil, a designação genérica dos sócios como administradores não é recomendada. Caso contrário, o sócio que ingressar posteriormente na sociedade não será automaticamente considerado administrador, ainda que isto tenha sido objeto de acordo entre as partes.

Também com relação à administração, os quotistas devem acordar a definição mais apropriada para o quórum competente para a destituição de sócios que atuem como administradores. Na falta de disposição específica no contrato social, o parâmetro adotado pelo legislador é de dois terços do capital social. Há hipóteses, no entanto, em que porcentagens distintas podem ser necessárias, dependendo do número de sócios, das suas respectivas participações no capital e do fato de as suas quotas serem iguais ou desiguais.

Mantendo o enfoque na matéria de deliberações sociais, é relevante fazer remissão à previsão legal. No sistema do Código Civil, o legislador estabeleceu quóruns de deliberação mínimos para certas matérias. Assim, para a aprovação das contas da administração e a nomeação e destituição dos liquidantes e o julgamento das suas contas, o quórum mínimo é a maioria dos presentes na assembleia ou reunião de quotistas. Para a designação dos administradores (quando feita em ato separado), a destituição dos administradores e o modo de sua remuneração, quando não estabelecido no contrato, e o pedido de recuperação, o quórum mínimo legal é a metade do capital social mais uma quota. Por fim, para a modificação do contrato social, a incorporação, fusão e dissolução da sociedade, ou a cessação do estado de liquidação e a nomeação e destituição dos liquidantes e o julgamento das suas contas, requer-se mais de três quartos, também do capital social.

Importante notar que se trata aqui de quóruns mínimos. Desta forma, no âmbito do contrato social, é possível exigir quórum superior ao legal, inclusive, se necessário, a integralidade do capital social. Além disso, para que estes quóruns realmente funcionem, é preciso considerar a realidade fática da sociedade. Por exemplo, em uma sociedade com dois sócios em que cada um é titular de quotas iguais representativas de cinquenta por cento do capital social, na prática, será sempre necessário que ambos votem no mesmo sentido. Portanto, o contrato social precisa conter mecanismos para evitar possíveis impasses e, assim, promover a sustentabilidade administrativa na hipótese de os sócios terem visões distintas.

A mesma reflexão é necessária com relação à forma de representação da sociedade. Se, por um lado, o dinamismo das relações mercantis exige praticidade e celeridade, em determinados atos faz-se indispensável que se tenha zelo especial. Por exemplo, se a denominação social da sociedade pode ser utilizada e a sociedade pode ser obrigada pela assinatura de um único sócio administrador em determinados atos corriqueiros, o mesmo certamente não ocorre obrigatoriamente no que diz respeito a todas as matérias. A título exemplificativo, mas não exaustivo, isto ocorre com a alienação de bens do ativo imobilizado. Por sua natureza, o ativo imobilizado é necessário à manutenção das atividades da sociedade. Por este motivo, é importante que os sócios considerem se, para esta finalidade, não é mais prudente que a sociedade somente possa ser representada pela totalidade dos sócios administradores.

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A possibilidade de instalação, ainda que em caráter não permanente, do conselho fiscal constitui outro ponto relevante para a consideração dos sócios. Este mecanismo mostra-se mais expressivo quando um dos sócios situa-se no exterior e confere ao sócio situado no País poderes para agir em seu nome. Por exemplo, compete ao conselho fiscal denunciar os erros, fraudes ou crimes que descobrir, sugerindo providências úteis à sociedade, e examinar os livros e papéis da sociedade e o estado do caixa e da carteira, fazendo jus a que os administradores lhes prestem as informações solicitadas. Esta é uma possibilidade que não deve ser negligenciada, sobretudo em razão da previsão legal de que as atribuições e os poderes conferidos pela lei ao conselho fiscal são exclusivos deste, não podendo ser outorgados a outro órgão da sociedade.

Há que se considerar também a conveniência de a sociedade limitada realizar reuniões de sócios ou assembleias e as respectivas formalidades. Esta escolha se limita aos casos em que a sociedade possua até dez sócios, uma vez que, caso o número seja superior, a sociedade deverá necessariamente realizar assembleias. Caso se decida por reuniões de sócios, é necessário que o seu procedimento seja descrito no contrato social. Caso contrário, serão aplicáveis as disposições legais referentes a assembleias por força do parágrafo 6º do artigo 1.072 do Código Civil.

A exclusão de sócio por justa causa é permitida pelo Código Civil, mas requer previsão contratual expressa. Para tanto, o contrato social deve ser detalhado e estabelecer o procedimento de notificação do sócio, a possibilidade de ampla defesa e como os seus haveres serão apurados e pagos – pela sociedade ao sócio retirante em caso de patrimônio líquido positivo, ou pelo sócio à sociedade em caso de patrimônio líquido negativo.

Prosseguindo em questão que também toca na apuração de haveres, o contrato social não deve se silenciar quanto à retirada, ao falecimento, à separação judicial e ao divórcio e à incapacidade dos sócios. Faz-se imprescindível que todas estas possibilidades estejam devidamente reguladas entre os sócios no contrato social e, sobretudo, que os mecanismos estabelecidos sejam efetivamente viáveis.

Desta forma, o contrato social deverá prever se meeiros, herdeiros e sucessores poderão ingressar na sociedade e, em caso positivo, mediante quais condições. Igualmente, o contrato social poderá estabelecer um mecanismo para a retirada de sócio dissidente ou não, a apuração do patrimônio líquido da sociedade e como os haveres serão pagos. Por exemplo, a retirada de um sócio pode seguir procedimento distinto, mais célere e seguramente mais conveniente que aquele imposto em caso de sociedades simples. Ademais, os haveres apurados poderão ser objeto de pagamento de uma forma que seja economicamente sustentável para a sociedade e para os sócios, o que se aplica mutatis mutandis com relação a herdeiros, sucessores e meeiros. Uma das formas de abordar a questão é o pagamento parcelado dos haveres, salientando-se que, em caso de pagamento por cheque, eventual cláusula de quitação constante do contrato social deverá ter caráter exclusivamente pro solvendo.

Adicionalmente, na hipótese de incapacidade de sócio, em razão de doença ou por qualquer outro motivo, uma rede de segurança pode ser acordada para proteger este sócio e aqueles que dependem do seu sustento sem oneração excessiva para a sociedade. A título exemplificativo, é possível acordar que o sócio incapaz continue recebendo uma retirada a título de pró labore por alguns meses e seus direitos políticos sejam exercidos por aquele que suprir a sua incapacidade. Findo este período predeterminado, pode-se proceder à apuração e ao pagamento dos haveres, visando, em última análise, à sobrevivência da sociedade.

Por fim, em caso de empreendimentos com maior grau de sofisticação, a cláusula de eleição de foro pode ser substituída por uma cláusula compromissória para que eventuais dúvidas e controvérsias sejam resolvidas por arbitragem, de forma que os sócios e a sociedade não se sujeitem à morosidade ou mesmo à falta de conhecimento técnico especializado do Poder Judiciário. Nesta hipótese, é necessário que as partes compreendam as demandas, inclusive de natureza financeira, de um procedimento arbitral sustentável. Naturalmente, tanto em caso de arbitragem institucional, quanto em caso de arbitragem ad hoc, também é necessário que a cláusula compromissória seja redigida “sob medida”, retratando detalhadamente o acordo das partes e prevendo um procedimento realmente eficaz.

Como se depreende da breve análise acima, a elaboração de um contrato social eficiente e eficaz – que permita a continuidade da sociedade em situações difíceis e seja equitativo para com os sócios, conforme os seus investimentos e a sua exposição – é crucial. Com efeito, a prática de utilizar minutas padrão e copiar e colar cláusulas de forma não criteriosa é um desserviço aos empresários e ao empreendedorismo, não atendendo às suas necessidades mais prementes.

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Sobre o autor
Geraldo Luiz dos Santos Lima Filho

Árbitro e Advogado. <br>Atuação em Arbitragem, Direito do Comércio Internacional e Direito Internacional Privado (forma, fundo e arbitragem), Direito Empresarial (comercial e societário), Direito Bancário e Mercado de Capitais, Direito Civil e Direito do Consumidor. <br>Formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mestre em direito comercial e societário pela The London School of Economics and Political Science, e doutorando na Faculdade de Direito da Universiteit Leiden. <br>Para consultas, palestras e entrevistas: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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