INTRODUÇÃO
O contrato de concessão envolve não apenas os interesses dos usuários, mas também os do Estado e da empresa concessionária. Por isso é importante se analisar em que medida a disciplina jurídica do Código de Defesa do Consumidor pode influenciar no regime jurídico de direito público aplicável aos serviços públicos concedidos, sem prejudicar os interesses das partes envolvidas, principalmente o interesse público.
1. OS INTERESSES ENVOLVIDOS: CONCESSIONÁRIAS, USUÁRIOS E O ESTADO
A concessão de serviços públicos é um contrato de natureza especial, caracterizado pela trilateralidade e pelo cunho associativo, já que envolve em um só instrumento interesses de ordens diversas.
A atividade administrativa do Estado é regida pelos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade dos interesses públicos, o que corresponde, respectivamente, às prerrogativas e sujeições da Administração Pública, conteúdo do regime jurídico administrativo, conforme doutrina de Celso A. Bandeira de Mello (2002, p. 38). A atividade privada, representada pelos interesses do concessionário, é norteada pelo princípio da intangibilidade da propriedade privada e tem como principal objetivo o lucro. Já os usuários buscam a satisfação das necessidades essenciais, através da utilização de serviços públicos eficientes.
Cada parte envolvida com o contrato de concessão possui interesses os quais não podem ser considerados de modo isolado. O Estado detém prerrogativas quanto à modificação das condições de prestação do serviço, independentemente da anuência do concessionário e dos usuários, mas tal poder não poderá ser utilizado para anular os interesses das outras partes envolvidas. Da mesma forma, o concessionário não pode pretender obter o lucro a qualquer custo, em detrimento da qualidade da prestação, bem como os usuários não podem exigir a satisfação de suas necessidades essenciais de forma gratuita, sem remunerar o concessionário pelo serviço.
2. PRINCÍPIOS: A PROPORCIONALIDADE
Cada um dos princípios envolvidos sofre limitações sob certos aspectos e extensões sob outros, de acordo com o princípio da proporcionalidade. Haverá casos em que será necessário se privilegiar os interesses de uma das partes, em detrimento dos interesses das outras. É o que ocorre, por exemplo, quando há um aumento na tarifa, em atendimento ao princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, que visa a proteger o concessionário do poder do Estado de modificar unilateralmente as cláusulas contratuais. Outro caso, já reconhecido pela jurisprudência (STJ, RESP n.º 442.814 – RS, Relator Ministro José Delgado, data do julgamento: 03/09/2002, DJU: 11/11/2002), é o que permite ao usuário gozar de serviços públicos essenciais, como a energia elétrica, mesmo diante da falta de pagamento da tarifa, em razão do princípio da continuidade, que proíbe a interrupção do fornecimento.
Isso porque, na concessão, os vários princípios que a integram fazem parte de um conjunto, de uma unidade, que é responsável pelo caráter associativo do contrato.
Desta forma, não se admite a invocação pura e simples dos princípios da supremacia e indisponibilidade do interesse público para determinar o regime jurídico da concessão. Essa é a opinião de Marçal Justen Filho (2003, p. 290-291), expressa nas seguintes palavras:
A concessão não se reduz a uma manifestação da atividade administrativa do Estado, mas representa a integração de interesses estatais, coletivos e privados. O princípio da associação impõe considerar a supremacia e indisponibilidade do interesses público de modo compatível e harmônico com o princípio da intangibilidade da propriedade privada e da satisfação das necessidades coletivas.
No mesmo sentido, também não se admite que a concessão possa ser influenciada apenas pelos interesses dos usuários, com a aplicação do CDC em qualquer caso, sem nenhuma ponderação. Isso seria privilegiar o interesse privado em detrimento dos demais interesses.
O Direito do Consumidor pressupõe a desigualdade das partes e, na tentativa de equipara-las, outorga superioridade jurídica ao consumidor para compensar a sua inferioridade técnica e econômica, na maioria dos casos, diante do fornecedor.
A concessão é regida pelo princípio da associação, que representa a síntese de todos os interesses presentes no contrato. Isso significa que, na prestação do serviço público concedido deve-se compatibilizar e harmonizar ao máximo os interesses envolvidos, segundo os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Ou seja, não se pode aplicar o CDC ampla e irrestritamente aos serviços públicos concedidos, pois essa disciplina tem como principal objetivo proteger o consumidor, garantindo-lhe superioridade frente ao fornecedor para equilibrar a relação de consumo. E, nos contratos de concessão, nenhuma das partes deve receber tratamento privilegiado de forma constante, a exemplo do que ocorre com o consumidor nas relações de consumo de serviços privados.
Isso evidencia, portanto, a necessidade de se oferecer um tratamento diferenciado aos usuários de serviços públicos e aos consumidores de serviços privados. Estes apresentam um regime mais simples, envolvendo somente interesses privados e disponíveis, sem cogitar do alcance do interesse público em sua prestação. Nesse caso, a proteção ao consumidor deve ser feita de forma mais incisiva e rígida, com a aplicação de todas as normas do CDC, o que não deve acontecer no caso dos serviços públicos concedidos.
Em alguns casos, não poderia prevalecer o interesse dos usuários ao invés dos interesses do poder concedente e do concessionário. Por isso é que não se deve admitir a aplicação pura e simples do CDC aos serviços públicos concedidos. É preciso que haja um sopesamento das conseqüências para que não haja prejuízo à tutela do interesse público e para que se possa obter a máxima realização dos interesses envolvidos.
Todavia, também não se pode tentar restringir ou negar a aplicação do CDC aos serviços públicos concedidos com base no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, conforme pretendem alguns autores, como Antônio Carlos Cintra do Amaral (2002). Neste caso, estar-se-ia cometendo o mesmo erro, isto é, considerar de forma isolada e abstrata apenas um dos interesses presentes na concessão.
Os serviços públicos concedidos são objeto de relação de consumo e os usuários possuem direitos também previstos na Lei n.º 8.078/90. Então, nem o Estado, nem o concessionário podem se esquivar, antecipadamente, de seu cumprimento.
Ademais, a existência da supremacia do interesse público como um princípio estrutural para a explicação do Direito Administrativo vem sendo questionada por uma doutrina mais moderna. A principal crítica reside na impossibilidade de se elevar ao status de norma-princípio a determinação prévia e abstrata da supremacia do interesse público em detrimento do interesse privado, algo que só poderia ocorrer a partir de situações concretas.
Os princípios caracterizam-se estruturalmente por serem concretizáveis em vários graus, por encontrarem o seu fundamento de validade no próprio ordenamento jurídico, seja de forma explícita ou implícita, e por servirem de fundamento para a interpretação e aplicação do Direito.
No entanto, nenhuma dessas características podem ser vislumbradas no princípio da supremacia do interesse público, o que leva a conclusão de que, na verdade, trata-se de um axioma, justamente porque é auto-demonstrável. Essa é a opinião de Humberto Ávila (2001, p. 21):
Trata-se, em verdade, de um dogma até hoje descrito sem qualquer referibilidade à Constituição vigente. A sua qualificação como axioma bem o evidencia. Esse nominado princípio não encontra fundamento de validade na Constituição brasileira. Disso resulta uma importante conseqüência, e de grande interesse prático: a aplicação do Direito na área do Direito Administrativo brasileiro não pode ser feita sobre o influxo de um princípio de prevalência (como norma ou como postulado) em favor do interesse público.
A explicação abstrata da supremacia do interesse público exclui qualquer hipótese de ponderação, pois o interesse público sempre terá maior peso que o privado, sem que diferentes opções de solução sejam levadas em conta para a máxima realização das normas em conflito. E uma relação de prevalência só pode ser constatada diante do caso concreto, e não de forma abstrata.
Ou seja, o que se propõe não é afirmar a prevalência do regime jurídico de Direito Administrativo, quanto aos direitos dos usuários de serviços públicos concedidos, em razão do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Até porque a solução não é tão simples assim e não se poderia afastar a incidência da Lei n.º 8.078/90 aos usuários, tendo como base somente tal princípio, de validade questionável. Isso também seria contra o regime jurídico da concessão, que pressupõe um conjunto de interesses, e não a prevalência de só um deles.
O raciocínio oposto também não é correto, porque se um serviço é público e a ele se aplicarem indiscriminadamente todas as normas do Direito do Consumidor, haverá determinadas situações em que isso poderá provocar conseqüências prejudiciais ao Estado, ao concessionário e à própria coletividade que acabarão arcando com esse ônus.
Da mesma forma que não se deve aplicar automaticamente e sem nenhuma ponderação todas as normas do CDC, também não se deve limitar ou excluir previamente essa aplicação tendo como fundamento o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.
Não é com fundamento em escolhas prévias, feitas no campo abstrato, que se chegará a uma compatibilização entre as duas disciplinas. Isso deverá ser feito em concreto, através do princípio da proporcionalidade, para que, dentre todas as medidas igualmente eficazes para se atingir um fim, deva ser adotada a menos gravosa em relação ao direito das partes envolvidas.
Na prática, fica difícil adotar esse critério, mas essa se demonstra como sendo a solução mais adequada. Qualquer atitude extremista com relação ao problema seria descabida e estaria ferindo o próprio princípio da associação nas concessões.
3. COMO COMPATIBILIZAR OS REGIMES
Não há incompatibilidade entre os regimes, no sentido de não se admitir a aplicação do Direito do Consumidor a uma atividade administrativa, mas também não se deve entender pela total e indiscriminada aplicação do CDC aos serviços públicos concedidos, da mesma forma como se dá com os serviços privados.
A Lei n.º 8.987/95 traz a regulamentação sobre os contratos de concessão de serviços públicos, inclusive no que diz respeito aos direitos do usuário. O art. 7º, que apresenta uma relação de direito e obrigações, ressalva que a sua aplicação não prejudica os direitos previstos no CDC. O art. 7º do CDC também faz a ressalva de que os direitos nele previstos não excluem outros decorrentes da legislação ordinária. Como se pode ver, as disciplinas das Leis n.º 8.078/90 e 8.987/95 não se excluem, se complementam.
Assim, os direitos dos usuários são os previstos no Direito Administrativo e no Direito do Consumidor, sendo este último responsável por apresentar um número maior de mecanismos de proteção.
Entretanto, na aplicação dos direitos previstos do CDC em proteção aos usuários, também devem ser levados em conta os interesses do poder concedente e do concessionário para que não sejam ultrapassados limites que venham prejudicar a própria prestação do serviço e o interesse público.
Nem todos os direito do consumidor podem ser considerados direitos dos usuários, em certas circunstâncias, pois os serviços públicos concedidos apresentam peculiaridades inerentes à sua prestação, o que os difere dos serviços privados, em que o CDC é aplicado sem nenhuma restrição.
Os usuários de serviços públicos concedidos poderiam invocar em seu favor tanto as normas inerentes ao desenvolvimento dos serviços públicos da Lei n.º 8.987/95, quanto as de Direito do Consumidor, mas dentro de alguns limites.
Sobre o assunto, Marçal Justen Filho (1997, p. 131) afirma que:
Deve limitar-se essa extensão aos limites do que for cabível, tendo em vista as peculiaridades do regime de direito público e do direito do consumidor. Nem todas as regras e princípios do Código de Defesa do Consumidor são aplicáveis ao relacionamento com o usuário de serviço público.
Um exemplo disso é que, nas concessões, o Estado tem o poder de modificar as condições da prestação do serviço unilateralmente. E, para o Código de Defesa do Consumidor, isso seria inadmissível. As cláusulas exorbitantes, mutáveis a qualquer tempo pelo poder concedente, seriam consideradas cláusulas abusivas e, portanto, nulas de pleno direito, conforme o art. 51, incisos X e XIII:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas as fornecimento de produtos e serviços que:
X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;
XIII - autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após a sua celebração.
Qualquer possibilidade de se permitir ao fornecedor modificar cláusulas contratuais sem a anuência do consumidor se caracteriza como uma situação abusiva e que representa um desequilíbrio na relação jurídica estabelecida, algo incompatível com a sistemática da Lei n.º 8.078/90.
No entanto, os poderes exorbitantes do Estado são inerentes ao contrato de concessão de serviços públicos. Eliminar esses poderes, através da aplicação do CDC, seria o mesmo que negar a existência de um contrato de concessão de serviço público.
CONCLUSÃO
Assim, é necessário que se verifique as peculiaridades de cada caso concreto e as conseqüências da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, segundo os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da associação nas concessões, para que sejam compatibilizados os interesses do Estado, do concessionário e do usuário, sem grandes prejuízos para nenhum deles.
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